A Garganta da Serpente
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Leonora

(Edgard Santos)

Completo hoje o décimo quarto ano encerrado nesta prisão. Meus dias têm transcorrido repletos de monotonia; passo-os a refletir, procurando a razão da minha derrota, uma vez que amei e não fui correspondido. Ao decidir revelar a história que vai a seguir, minha memória é remexida e lançada a um passado tão distante quanto inesquecível. Aconteceu há 15 anos e eu não conhecia o amor. Fui, portanto, iniciado neste terreno cheio de mistério e encantamento enquanto o medo me invadia, tolhendo-me a alma e a iniciativa. Tão jovem na época, era-me penoso avaliar as consequências de uma paixão como a minha. Se Leonora hoje viesse a mim para pedir perdão não sei se o conseguiria. Digo não sei por não encontrar outra forma de justificar a fraqueza que envolveu aquele relacionamento.

Estudávamos na mesma escola, mas em turmas separadas. Subíamos os degraus que conduziam ao prédio totalmente alheios um do outro, até que um olhar, um rápido e inocente olhar, tocou o meu interior, despertando-o para a beleza mágica de Leonora. Ela própria não se deu conta disso, creio, pois era tão natural e espontânea como o calor do dia e a luz das estrelas. O gesto ficou de tal maneira gravado em minha memória, que desisti de tentar esquecê-lo; não consigo fechar os olhos sem pensar em Leonora, pois me vem à mente aquele instantâneo.

Neste dia Beatriz, minha irmã, a acompanhava. Era tomada de alegre ansiedade e não via o momento de retornar à convivência de sua turma, posto que vinha, totalmente recuperada, de uma licença médica de vários dias. As duas, muito amigas, não escondiam segredos, o que, para mim, só trouxe vantagens e fez facilitar a nossa aproximação. Havia atrás do prédio um magnífico jardim, repleto de árvores, que fazia do lugar um paraíso, dado a paz que dele emanava. Era ali que eu gastava longas horas do dia a devorar livros do meu interesse que trazia da biblioteca. Nunca cruzava com Leonora após as aulas por sair ela antes de mim. Descia quase correndo as escadarias, esvoaçando a loura e comprida cabeleira ao ver, lá em baixo, o pai, dentro do automóvel preto, já de porta aberta para ela.

Tinha eu dezessete anos e Leonora quinze quando começamos a namorar. Não sei se por influência de Beatriz ou levada pelos apelos curiosos de uma paixão juvenil, o fato é que passei a notar a delonga de Leonora em ir para casa e até dispensar as vindas do pai. Contudo, suas estadas inéditas no jardim, como na biblioteca, acabaram por desnudar sua verdadeira intenção. Vivemos os três anos seguintes ao sabor de um romance, não mais inocente como foi o seu intróito, mas base de um relacionamento feito para durar, embora não o suficiente para o amor, se é que isto seja possível.

O tempo só fazia acrescentar em minha namorada aqueles encantos tão comuns às mais lindas mulheres. Os anos generosos esculpiam suas formas com esmero e paciência própria desta categoria chamada tempo. Ao atingir vinte anos já trazia na mão direita a prova da minha decisão de passar ao seu lado o resto dos meus dias. A sorte já me favorecia profissionalmente e, durante semanas, distanciados de tudo, ganhamos mundo para viver, na íntegra, a intensidade do nosso amor.

Só me dei conta do apego e da entrega total do meu destino a Leonora pouco tempo depois do nosso retorno. Ela, que nunca sentira a necessidade, tão pouco o desejo, de ser independente, passou a exercer uma profissão e encantar clientes e empresários com o seu inigualável talento como assistente social. Foi Sebastian o meu insuportável rival e o crime que cometi, levado pelo ciúme, não aplacou a minha ira, mas consola-me o coração, não o crime em si, mas a certeza de que fiz o que achei que seria a minha felicidade.

Não consigo conceber em meu espírito a profundidade da trama contra mim arquitetada, posto que carinho e atenção não lhe faltavam; tampouco um amor sincero e exclusivo. Amava Leonora com toda força de minha alma, mas o que ela mais ansiava, não sei porque, não conseguia lhe proporcionar: um filho. E é justamente o que foi buscar ao cair nos braços de outro homem. E o pior aconteceu. Ao retornar de uma viagem que nos obrigou a um afastamento de alguns dias não encontrei Leonora. Minhas suspeitas deixaram em mim um temperamento voluntarioso e um tanto agressivo. Havíamos discutido na véspera da minha partida e minha boca não conseguira calar a ira e o ciúme que me vinham dominando.

Nenhuma notícia para acalmar meu coração, tampouco os pais se abriram quanto ao paradeiro de minha amada; o transcorrer do tempo deixava-me enlouquecido. Semanas se passavam sem uma pista sequer. Torturado, procurei-os mais uma vez.

- Por que me causam este tormento? Acaso desconhecem o que é sofrer por amor? A felicidade que desfrutam vivendo todo este tempo esta feliz união me está sendo negada. Será que não sou merecedor do amor de Leonora? Será que me situo, em reputação e status, muito abaixo do meu concorrente ou existe razão outra que não querem me esclarecer?

- De nada sabemos - disse a mãe -, ela a todos deixou chocados com tal atitude inesperada. Seus contatos são escassos; falamos ao telefone muito rapidamente. Creia-nos, se pudéssemos ajudar já o teríamos feito. Não queira comparar a consideração e simpatia que temos pelo senhor com a mais remota possibilidade de apoio a uma paixão tão ilusória; não avalia como estou sofrendo.

Saí dali decidido a encontrar Leonora, mas a frustração esteve mais presente do que a esperança. Somente anos mais tarde, levado por uma situação trágica que foi a morte da mãe, pude reencontrá-la. Em meio à cerimônia fúnebre estive o tempo todo praticamente a seu lado; metros nos separavam. Tive assim que suportar, sem sequer uma palavra, a sua presença. Na mão esquerda uma aliança. Envolvendo esta mão, uma outra, a de um homem, o meu rival. Por cima dos óculos escuros, senti o olhar de Leonora, tão frio, tão indiferente e tão sofrido. Lembrei daquele momento nas escadarias do colégio e como sofri de saudades e de dor. Nunca a vira mais bela. O vestido comprido e negro dava-lhe um aspecto brioso e afetado e a blusa azul-marinho, colada ao corpo, insinuava a intenção de manter-se jovem e sensual em toda e qualquer situação. Descobri em seguida o que culminou com a derrota do meu dia já triste e ensombrecido. Conheci o filho de minha ex-amada. Melhor dizendo, vi-o de longe ao sair do carro, acompanhado de uma mulher que me pareceu ser sua babá. De meu próprio automóvel, pronto a dar a partida, acompanhei toda a cena com o coração espremido no peito, num frêmito de admiração e revolta.

O menino, ao ver a mãe, desvencilhou-se da outra e ganhou daquela o colo, além de mil beijos e carícias. Sebastian aproximou-se, beijando também a criança, enquanto abria para ambos a porta do automóvel. Impossível descrever com palavras a mistura de sentimentos de que passei a ser alvo. Foram segundos apenas, mas que eternidade! Desci imediatamente do carro e me fiz notado. O casal, estático, me encarava assustado e sem ação. A mãe desceu o menino sem afastar de mim o olhar de espanto.

- O que pensa que é? - falei indignado. Acaso não tem sentimentos? Como pode ser tão mesquinha e indiferente?

- Leo - era assim que ele a chamava -, quem é este sujeito, como pode falar assim com você? - dizendo isto, veio em minha direção, mas com um gesto de mão fiz que desistisse do seu intento.

- Fique fora disso - falei, com tamanha inflexão na voz que consegui dominá-lo temporariamente. - Reconheço a falta de delicadeza e exagero de intimidade ao dirigir-me a sua companheira, mas certamente, já sabe quem sou e não deve desconhecer a nossa história. Contudo, asseguro que tudo daria para não estar no meu lugar porque sofri a dor da traição e da maldade. Se quer um conselho, durma com um olho aberto, pois tudo se pode esperar desta impostora. Quem sabe, não será o próximo a ir para a geladeira?

Neste momento, senti no queixo a dor de um golpe. Juntei isto à ira que já me dominava e parti em revide contra o meu agressor. Em meio a socos e empurrões ouvimos gritos de desespero e choros convulsos. A turba que já se dissipava retornou e um semicírculo de curiosos formou-se a nossa volta. Mas, se queriam um espetáculo, este não chegou a acontecer, pois fomos separados abruptamente por guardas uniformizados. Diante do depoimento de Leonora que, obviamente, recaiu contra mim, fui algemado e preso, sendo libertado no meio na noite após horas de espera e de um processo humilhante e sem nexo.

A partir daquele episódio, esforçava-me a cada dia para mudar o meu interior. Deixar de ser alguém que sucumbe facilmente à dor de uma paixão não correspondida. Leonora seria para mim um passado mal vivido e ignorado. Admito que não foi fácil, pois, mesmo casado, vivendo em outro estado e com um casal de filhos, que se tornara para mim a razão maior do meu esforço para alcançar a felicidade, tirá-la de minha mente constituía um exercício ao qual me entregava na mais pura intenção de não macular a rotina do meu relacionamento. Minha esposa, na condição de amiga, era o apoio nas horas difíceis. Juro que ama-la-ia de verdade não tivesse sido o passado um vilão atroz e intrometido.

Porém, quem conseguiria resistir à falta do amor verdadeiro? Daí para a separação foi um curto passo. Felizmente houve um acordo e deixamos um ao outro o caminho aberto a novas tentativas. Quantos aos filhos, evitei ao máximo que sofressem, dando a ambos, especialmente à mais velha, de sete anos, toda a assistência de um pai nas minha condições. Foi, portanto, um malogro a decisão de riscar de minha vida a influência de Leonora. Mais uma vez vi-me só e desamparado. Foi um período amargo de solidão e revolta, onde um vazio intransponível me acompanhava sem trégua. Senti a fleuma da juventude esvair-se de mim. Aos 43 anos, cabelos brancos e ombros curvados era eu um moço velho e abatido. Como estaria aquela mulher? Será que me esquecera de vez? Era feliz? Envolto nestas dúvidas seguia eu rumo a um destino incerto. Até que o espírito, não mais disposto a arcar com o peso da dor, sugere uma ação a qual acatei prontamente. Fui em busca de uma saída para o meu tormento. Retornei à cidade que me viu nascer, crescer e amar Leonora. Fui, levado pela ideia fixa de cometer uma loucura; queria dar a ela um castigo em dose dupla.

Planejei, durante dias, um sequestro seguido de morte. Cheguei num domingo à noite, hospedando-me em um hotel. Conciliar o sono foi empresa dificílima, diria mesmo impossível, dado as condições psicológicas em que me encontrava. Planejei, na lentidão de uma noite infindável, cada passo do dia seguinte. Abordei o menino na saída da escola e, em menos de uma hora, já o tinha como refém, em local seguro e totalmente insuspeito. Liguei para Leonora nas primeiras horas da manhã seguinte. Usando um disfarce na voz, adornei-a de tons característicos ao crime e à maldade, não faltando as ameaças. Juntei a isto o valor de um resgate.

- O quer de mim? - sua voz exprimia uma mistura de surpresa e desespero - deve ter cometido um engano, não tenho dinheiro. - Precisei de um cuidado redobrado no tom de voz como, também agora, no uso correto das palavras. Demais, tive que controlar minha emoção.

- Não importa o que diz - respondi -, o que está feito está feito. Se quer ver o filho querido com vida, apareça no horário e local que vou lhe indicar, mas, previno, venha só, se não quiser se arrepender.

- Como eu esperava. Leonora chegou só e pontualmente. O local era ermo e praticamente abandonado; veículos quase não circulavam, tampouco pessoas. Uma fileira de casas abandonadas tomava toda a extensão de um dos lados da pequena rua. Em frente a uma dessas casas, já em ruínas, havia uma escada que conduzia ao segundo andar de um galpão. Da janela de uma das salas que formavam este sobrado, eu conseguia uma visão que permitia acompanhar a chegada de qualquer ser vivente. Em meu poder, o sequestrado dormia pesadamente sobre um sofá em um dos cantos da sala. O dia não clareara totalmente. Utilizando uma lanterna, sinalizei minha posição. O foco luminoso conduzia Leonora até minha presença sem suspeitar ainda de nada. Ao alcançar o patamar a porta se abriu a sua frente, colocando-a diante do filho. Mantive-me escondido atrás da porta até que sua emoção de ver e abraçar a criança fosse superada.

- Tranquilize-se, não é o garoto que me interessa - falei e percebi o medo que se apossou de sua fisionomia ao encarar, de olhos arregalados, a arma apontada em sua direção. Ao ver-me e calcular meu propósito, não conteve também o ódio.

- Como pode ser tão cruel, o que pretende causando-me todo este sofrimento? Mate-me se acha que assim vai se sentir melhor. - Comecei a sentir que me tremia a mão. - Vejo que não tem coragem - continuou -, então, se é assim, por que não nos deixa e desaparece de uma vez de nossas vidas?

Não sei porque, mas a presença de Leonora, depois de tantos anos, ali diante de mim, amoleceu-me totalmente. Passei em memória os anos vividos ao seu lado e, ao mesmo tempo, compreendi a impossibilidade disto vir novamente a acontecer. O dedo no gatilho da arma era só impaciência. A morte de Leonora, longe de solucionar o problema, arruinaria de vez minha vida. Porém, suicidando-me em seguida, daria, para esta trama insuportável, o seu melhor desenlace. Pensei, por outro lado, que deixá-la viver seria para si o pior castigo após presenciar minha morte. Sendo assim, levei a arma engatilhada até o ouvido. Leonora levou a mão à boca soltando um enorme grito. Isto fez acordar a criança que, ao inteirar-se da cena, ergueu-se e correu até a mãe, agarrando-a pela cintura.

- Não conseguirá provar nada a ninguém se praticar esta loucura. Deixará evidenciada apenas a sua covardia. Pense bem.

Neste momento, senti o ruído de passos na escadaria. - Você me enganou. Disse para não trazer a polícia. - Ouvi a voz de prisão e não titubeei. Corri até o garoto, arrancando-o dos braços dela. Dois tiros foram disparados, o que fez ceder a fechadura e escancarar totalmente a porta, colocando diante de mim vários policiais. Mantinha o menino preso em meus braços e a arma encostada em seu peito.

- Não tenho mais o que esperar da vida, depois de tudo que me fez passar. É o fim da linha para nós dois. Vou matar seu filho, assim saberá também o que é a dor de uma perda. Puxei a trava do gatilho e ouvi de Leonora estas palavras que me encheram de remorso e de vergonha.

- Pelo amor de Deus, não faça isto! Ele é seu filho, também.

Paralisado, olhei para o menino e atentei para a identidade dos traços fisionômicos que minha cegueira e meu ciúme não permitiram descobrir. Soltei-o e ele correu mais uma vez para os braços da mãe que, em prantos, o envolveu. Larguei o revólver e deixei-me cair sentado e abatido, enquanto a justiça cumpria o seu papel.

  • Publicado em: 17/09/2007
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