Completo hoje o décimo quarto ano encerrado nesta prisão. Meus
dias têm transcorrido repletos de monotonia; passo-os a refletir, procurando
a razão da minha derrota, uma vez que amei e não fui correspondido.
Ao decidir revelar a história que vai a seguir, minha memória
é remexida e lançada a um passado tão distante quanto inesquecível.
Aconteceu há 15 anos e eu não conhecia o amor. Fui, portanto,
iniciado neste terreno cheio de mistério e encantamento enquanto o medo
me invadia, tolhendo-me a alma e a iniciativa. Tão jovem na época,
era-me penoso avaliar as consequências de uma paixão como
a minha. Se Leonora hoje viesse a mim para pedir perdão não sei
se o conseguiria. Digo não sei por não encontrar outra forma de
justificar a fraqueza que envolveu aquele relacionamento.
Estudávamos na mesma escola, mas em turmas separadas. Subíamos
os degraus que conduziam ao prédio totalmente alheios um do outro, até
que um olhar, um rápido e inocente olhar, tocou o meu interior, despertando-o
para a beleza mágica de Leonora. Ela própria não se deu
conta disso, creio, pois era tão natural e espontânea como o calor
do dia e a luz das estrelas. O gesto ficou de tal maneira gravado em minha memória,
que desisti de tentar esquecê-lo; não consigo fechar os olhos sem
pensar em Leonora, pois me vem à mente aquele instantâneo.
Neste dia Beatriz, minha irmã, a acompanhava. Era tomada de alegre ansiedade
e não via o momento de retornar à convivência de sua turma,
posto que vinha, totalmente recuperada, de uma licença médica
de vários dias. As duas, muito amigas, não escondiam segredos,
o que, para mim, só trouxe vantagens e fez facilitar a nossa aproximação.
Havia atrás do prédio um magnífico jardim, repleto de árvores,
que fazia do lugar um paraíso, dado a paz que dele emanava. Era ali que
eu gastava longas horas do dia a devorar livros do meu interesse que trazia
da biblioteca. Nunca cruzava com Leonora após as aulas por sair ela antes
de mim. Descia quase correndo as escadarias, esvoaçando a loura e comprida
cabeleira ao ver, lá em baixo, o pai, dentro do automóvel preto,
já de porta aberta para ela.
Tinha eu dezessete anos e Leonora quinze quando começamos a namorar.
Não sei se por influência de Beatriz ou levada pelos apelos curiosos
de uma paixão juvenil, o fato é que passei a notar a delonga de
Leonora em ir para casa e até dispensar as vindas do pai. Contudo, suas
estadas inéditas no jardim, como na biblioteca, acabaram por desnudar
sua verdadeira intenção. Vivemos os três anos seguintes
ao sabor de um romance, não mais inocente como foi o seu intróito,
mas base de um relacionamento feito para durar, embora não o suficiente
para o amor, se é que isto seja possível.
O tempo só fazia acrescentar em minha namorada aqueles encantos tão
comuns às mais lindas mulheres. Os anos generosos esculpiam suas formas
com esmero e paciência própria desta categoria chamada tempo. Ao
atingir vinte anos já trazia na mão direita a prova da minha decisão
de passar ao seu lado o resto dos meus dias. A sorte já me favorecia
profissionalmente e, durante semanas, distanciados de tudo, ganhamos mundo para
viver, na íntegra, a intensidade do nosso amor.
Só me dei conta do apego e da entrega total do meu destino a Leonora
pouco tempo depois do nosso retorno. Ela, que nunca sentira a necessidade, tão
pouco o desejo, de ser independente, passou a exercer uma profissão e
encantar clientes e empresários com o seu inigualável talento
como assistente social. Foi Sebastian o meu insuportável rival e o crime
que cometi, levado pelo ciúme, não aplacou a minha ira, mas consola-me
o coração, não o crime em si, mas a certeza de que fiz
o que achei que seria a minha felicidade.
Não consigo conceber em meu espírito a profundidade da trama contra
mim arquitetada, posto que carinho e atenção não lhe faltavam;
tampouco um amor sincero e exclusivo. Amava Leonora com toda força de
minha alma, mas o que ela mais ansiava, não sei porque, não conseguia
lhe proporcionar: um filho. E é justamente o que foi buscar ao cair nos
braços de outro homem. E o pior aconteceu. Ao retornar de uma viagem
que nos obrigou a um afastamento de alguns dias não encontrei Leonora.
Minhas suspeitas deixaram em mim um temperamento voluntarioso e um tanto agressivo.
Havíamos discutido na véspera da minha partida e minha boca não
conseguira calar a ira e o ciúme que me vinham dominando.
Nenhuma notícia para acalmar meu coração, tampouco os pais
se abriram quanto ao paradeiro de minha amada; o transcorrer do tempo deixava-me
enlouquecido. Semanas se passavam sem uma pista sequer. Torturado, procurei-os
mais uma vez.
- Por que me causam este tormento? Acaso desconhecem o que é sofrer por
amor? A felicidade que desfrutam vivendo todo este tempo esta feliz união
me está sendo negada. Será que não sou merecedor do amor
de Leonora? Será que me situo, em reputação e status, muito
abaixo do meu concorrente ou existe razão outra que não querem
me esclarecer?
- De nada sabemos - disse a mãe -, ela a todos deixou chocados com tal
atitude inesperada. Seus contatos são escassos; falamos ao telefone muito
rapidamente. Creia-nos, se pudéssemos ajudar já o teríamos
feito. Não queira comparar a consideração e simpatia que
temos pelo senhor com a mais remota possibilidade de apoio a uma paixão
tão ilusória; não avalia como estou sofrendo.
Saí dali decidido a encontrar Leonora, mas a frustração
esteve mais presente do que a esperança. Somente anos mais tarde, levado
por uma situação trágica que foi a morte da mãe,
pude reencontrá-la. Em meio à cerimônia fúnebre estive
o tempo todo praticamente a seu lado; metros nos separavam. Tive assim que suportar,
sem sequer uma palavra, a sua presença. Na mão esquerda uma aliança.
Envolvendo esta mão, uma outra, a de um homem, o meu rival. Por cima
dos óculos escuros, senti o olhar de Leonora, tão frio, tão
indiferente e tão sofrido. Lembrei daquele momento nas escadarias do
colégio e como sofri de saudades e de dor. Nunca a vira mais bela. O
vestido comprido e negro dava-lhe um aspecto brioso e afetado e a blusa azul-marinho,
colada ao corpo, insinuava a intenção de manter-se jovem e sensual
em toda e qualquer situação. Descobri em seguida o que culminou
com a derrota do meu dia já triste e ensombrecido. Conheci o filho de
minha ex-amada. Melhor dizendo, vi-o de longe ao sair do carro, acompanhado
de uma mulher que me pareceu ser sua babá. De meu próprio automóvel,
pronto a dar a partida, acompanhei toda a cena com o coração espremido
no peito, num frêmito de admiração e revolta.
O menino, ao ver a mãe, desvencilhou-se da outra e ganhou daquela o colo,
além de mil beijos e carícias. Sebastian aproximou-se, beijando
também a criança, enquanto abria para ambos a porta do automóvel.
Impossível descrever com palavras a mistura de sentimentos de que passei
a ser alvo. Foram segundos apenas, mas que eternidade! Desci imediatamente do
carro e me fiz notado. O casal, estático, me encarava assustado e sem
ação. A mãe desceu o menino sem afastar de mim o olhar
de espanto.
- O que pensa que é? - falei indignado. Acaso não tem sentimentos?
Como pode ser tão mesquinha e indiferente?
- Leo - era assim que ele a chamava -, quem é este sujeito, como pode
falar assim com você? - dizendo isto, veio em minha direção,
mas com um gesto de mão fiz que desistisse do seu intento.
- Fique fora disso - falei, com tamanha inflexão na voz que consegui
dominá-lo temporariamente. - Reconheço a falta de delicadeza e
exagero de intimidade ao dirigir-me a sua companheira, mas certamente, já
sabe quem sou e não deve desconhecer a nossa história. Contudo,
asseguro que tudo daria para não estar no meu lugar porque sofri a dor
da traição e da maldade. Se quer um conselho, durma com um olho
aberto, pois tudo se pode esperar desta impostora. Quem sabe, não será
o próximo a ir para a geladeira?
Neste momento, senti no queixo a dor de um golpe. Juntei isto à ira que
já me dominava e parti em revide contra o meu agressor. Em meio a socos
e empurrões ouvimos gritos de desespero e choros convulsos. A turba que
já se dissipava retornou e um semicírculo de curiosos formou-se
a nossa volta. Mas, se queriam um espetáculo, este não chegou
a acontecer, pois fomos separados abruptamente por guardas uniformizados. Diante
do depoimento de Leonora que, obviamente, recaiu contra mim, fui algemado e
preso, sendo libertado no meio na noite após horas de espera e de um
processo humilhante e sem nexo.
A partir daquele episódio, esforçava-me a cada dia para mudar
o meu interior. Deixar de ser alguém que sucumbe facilmente à
dor de uma paixão não correspondida. Leonora seria para mim um
passado mal vivido e ignorado. Admito que não foi fácil, pois,
mesmo casado, vivendo em outro estado e com um casal de filhos, que se tornara
para mim a razão maior do meu esforço para alcançar a felicidade,
tirá-la de minha mente constituía um exercício ao qual
me entregava na mais pura intenção de não macular a rotina
do meu relacionamento. Minha esposa, na condição de amiga, era
o apoio nas horas difíceis. Juro que ama-la-ia de verdade não
tivesse sido o passado um vilão atroz e intrometido.
Porém, quem conseguiria resistir à falta do amor verdadeiro? Daí
para a separação foi um curto passo. Felizmente houve um acordo
e deixamos um ao outro o caminho aberto a novas tentativas. Quantos aos filhos,
evitei ao máximo que sofressem, dando a ambos, especialmente à
mais velha, de sete anos, toda a assistência de um pai nas minha condições.
Foi, portanto, um malogro a decisão de riscar de minha vida a influência
de Leonora. Mais uma vez vi-me só e desamparado. Foi um período
amargo de solidão e revolta, onde um vazio intransponível me acompanhava
sem trégua. Senti a fleuma da juventude esvair-se de mim. Aos 43 anos,
cabelos brancos e ombros curvados era eu um moço velho e abatido. Como
estaria aquela mulher? Será que me esquecera de vez? Era feliz? Envolto
nestas dúvidas seguia eu rumo a um destino incerto. Até que o
espírito, não mais disposto a arcar com o peso da dor, sugere
uma ação a qual acatei prontamente. Fui em busca de uma saída
para o meu tormento. Retornei à cidade que me viu nascer, crescer e amar
Leonora. Fui, levado pela ideia fixa de cometer uma loucura; queria dar
a ela um castigo em dose dupla.
Planejei, durante dias, um sequestro seguido de morte. Cheguei num domingo
à noite, hospedando-me em um hotel. Conciliar o sono foi empresa dificílima,
diria mesmo impossível, dado as condições psicológicas
em que me encontrava. Planejei, na lentidão de uma noite infindável,
cada passo do dia seguinte. Abordei o menino na saída da escola e, em
menos de uma hora, já o tinha como refém, em local seguro e totalmente
insuspeito. Liguei para Leonora nas primeiras horas da manhã seguinte.
Usando um disfarce na voz, adornei-a de tons característicos ao crime
e à maldade, não faltando as ameaças. Juntei a isto o valor
de um resgate.
- O quer de mim? - sua voz exprimia uma mistura de surpresa e desespero - deve
ter cometido um engano, não tenho dinheiro. - Precisei de um cuidado
redobrado no tom de voz como, também agora, no uso correto das palavras.
Demais, tive que controlar minha emoção.
- Não importa o que diz - respondi -, o que está feito está
feito. Se quer ver o filho querido com vida, apareça no horário
e local que vou lhe indicar, mas, previno, venha só, se não quiser
se arrepender.
- Como eu esperava. Leonora chegou só e pontualmente. O local era ermo
e praticamente abandonado; veículos quase não circulavam, tampouco
pessoas. Uma fileira de casas abandonadas tomava toda a extensão de um
dos lados da pequena rua. Em frente a uma dessas casas, já em ruínas,
havia uma escada que conduzia ao segundo andar de um galpão. Da janela
de uma das salas que formavam este sobrado, eu conseguia uma visão que
permitia acompanhar a chegada de qualquer ser vivente. Em meu poder, o sequestrado
dormia pesadamente sobre um sofá em um dos cantos da sala. O dia não
clareara totalmente. Utilizando uma lanterna, sinalizei minha posição.
O foco luminoso conduzia Leonora até minha presença sem suspeitar
ainda de nada. Ao alcançar o patamar a porta se abriu a sua frente, colocando-a
diante do filho. Mantive-me escondido atrás da porta até que sua
emoção de ver e abraçar a criança fosse superada.
- Tranquilize-se, não é o garoto que me interessa - falei
e percebi o medo que se apossou de sua fisionomia ao encarar, de olhos arregalados,
a arma apontada em sua direção. Ao ver-me e calcular meu propósito,
não conteve também o ódio.
- Como pode ser tão cruel, o que pretende causando-me todo este sofrimento?
Mate-me se acha que assim vai se sentir melhor. - Comecei a sentir que me tremia
a mão. - Vejo que não tem coragem - continuou -, então,
se é assim, por que não nos deixa e desaparece de uma vez de nossas
vidas?
Não sei porque, mas a presença de Leonora, depois de tantos anos,
ali diante de mim, amoleceu-me totalmente. Passei em memória os anos
vividos ao seu lado e, ao mesmo tempo, compreendi a impossibilidade disto vir
novamente a acontecer. O dedo no gatilho da arma era só impaciência.
A morte de Leonora, longe de solucionar o problema, arruinaria de vez minha
vida. Porém, suicidando-me em seguida, daria, para esta trama insuportável,
o seu melhor desenlace. Pensei, por outro lado, que deixá-la viver seria
para si o pior castigo após presenciar minha morte. Sendo assim, levei
a arma engatilhada até o ouvido. Leonora levou a mão à
boca soltando um enorme grito. Isto fez acordar a criança que, ao inteirar-se
da cena, ergueu-se e correu até a mãe, agarrando-a pela cintura.
- Não conseguirá provar nada a ninguém se praticar esta
loucura. Deixará evidenciada apenas a sua covardia. Pense bem.
Neste momento, senti o ruído de passos na escadaria. - Você me
enganou. Disse para não trazer a polícia. - Ouvi a voz de prisão
e não titubeei. Corri até o garoto, arrancando-o dos braços
dela. Dois tiros foram disparados, o que fez ceder a fechadura e escancarar
totalmente a porta, colocando diante de mim vários policiais. Mantinha
o menino preso em meus braços e a arma encostada em seu peito.
- Não tenho mais o que esperar da vida, depois de tudo que me fez passar.
É o fim da linha para nós dois. Vou matar seu filho, assim saberá
também o que é a dor de uma perda. Puxei a trava do gatilho e
ouvi de Leonora estas palavras que me encheram de remorso e de vergonha.
- Pelo amor de Deus, não faça isto! Ele é seu filho, também.
Paralisado, olhei para o menino e atentei para a identidade dos traços
fisionômicos que minha cegueira e meu ciúme não permitiram
descobrir. Soltei-o e ele correu mais uma vez para os braços da mãe
que, em prantos, o envolveu. Larguei o revólver e deixei-me cair sentado
e abatido, enquanto a justiça cumpria o seu papel.