A Garganta da Serpente
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Recordações enterradas

(Everton Ferreira dos Santos)

Click-click soou a valise quando a fechei. De súbito um mau pressentimento de que esquecia ali, naquele enorme sobrado construído sobre o vermelho solo da Fazenda Santa Eliza, algo que poderia ser perdido para sempre. Pedi a Francis, meu hábil e eficiente mordomo, que reorganizasse a mala para ter a certeza de que tudo estava em ordem. Era meu último dia naquela casa que se traduzia pra mim em um ambiente de solidão e melancolia suportados por dez infindáveis anos.

Enquanto Francis se ocupava com a procura por algo que eu não sabia mas sentia esquecer, fui ao escritório e apanhei um livro para entreter a mente e acalmar o espírito. Na estante de mogno repleta de romances românticos de exemplares empoeirados, com folhas amarelas e devoradas pelas traças, apanhei um de Camilo Castelo Branco, escritor por quem expressava minha maior admiração.

Sentei em uma cadeira de balanço disposta na varanda e a calma brisa daquela manhã de despedida movia as folhas do imenso cafezal que se perdia no infinito. A cada página de Amor de Perdição, notei que o sofrimento e a tristeza manifestados pelos personagens se confundiam muito com a minha vida. Quando cheguei à página 102 do livro deparei com uma folha seca de macieira onde havia uma mensagem escrita a lápis:

"Os recados que você me escreveu
Guardo-os todos comigo
E tenho pensado muito em como escrevê-los de volta
"

Naquele momento um vestígio guardado nas profundezas de minha memória ressurgiu na forma de um poema lírico triste e inacabado. Um capítulo do meu destino clamava por um desfecho para que as letras não se perdessem confusas e distantes por todo o espaço em branco que precisava ser preenchido.

A mensagem me lembrou de um episódio na adolescência em que eu e Hélida enterramos um cofre com os bilhetes de amor que trocamos quando nos víamos apaixonados um pelo outro. Para demarcar o local plantamos uma macieira que hoje é a única reminiscência daquele sublime e inesquecível período desmanchado pelo sórdido coração de seu pai que a levou para bem longe de mim.

Chamei Francis e pedi a ele que cancelasse o voo e providenciasse uma enxada. Com o instrumento na mão, dirigi-me à macieira que habitava o outro lado da fazenda onde havia alguns pés de eucaliptos nativos. A terra fofa foi aos poucos cedendo a cada impacto desferido pelo metal e uma razoável abertura surgiu rapidamente. Olhei surpreso para o solo porque pelo que lembrava a profundidade que cavamos não era muito distante da superfície. Continuei e prossegui com a procura até o momento do crepúsculo desfilar uma mistura de laranja com um tom enegrecido anunciando a noite que começava a despontar.

Francis, vendo meu talhe abatido pelo cansaço de um trabalho sem resultados, indagou surpreso com meu anseio em continuar na fazenda por mais alguns dias:

- Há dez anos eu e Hélida prometemos que depois de um certo tempo iríamos desenterrar o cofre com nossos bilhetes - ela havia pedido segredo, entretanto, Francis era uma pessoa de confiança - Pretendo reabri-lo antes de deixar essas terras.

- Não teme sentir a ausência dela quando deparar com as marcas daquele passado distante? - perguntou em tom de preocupação. Considerava Francis um verdadeiro amigo.

- Temo, mas o pior é permanecer com esse vazio que não termina. Acredito que ao tocar nos bilhetes que ela escreveu eu sinta uma certa tranquilidade interior.

- Há naqueles papeis alguma forma de vocês se reencontrarem? - disse entregando-me um copo de água - refiro-me a uma pista que leve a um lugar secreto.

- Provavelmente não - respondi depois de refletir essa questão - O máximo que se pode fazer é encontrar os papéis e levar como lembrança para a Europa.

- Devo cancelar seus compromissos da semana?

-Sim, cancele tudo porque não desistirei enquanto não matar as saudades daquelas letras caprichosas que formavam vários poemas românticos.

No alvorecer do dia seguinte reiniciei as buscas como um arqueólogo faz à procura de um vestígio pré-histórico de elevada importância. A profundidade e o diâmetro aumentavam a cada golpe que o chão sentia e correspondia cedendo vários punhados de terra que se amontoavam ao redor da ferida na forma de várias pequenas montanhas. O sol escaldante fazia escorrer pelos braços o suor daquele trabalho que continuava a não ter resultados. Quando regressei a casa, apático, novamente à noite, ordenei a Francis que comprasse uma lamparina e contratasse três homens para me ajudar:

- Senhor, desculpe lhe dizer mas creio que esteja perdendo a razão. Por que tanta determinação em achar simples papéis enterrados?

- Ainda há dentro de mim uma chama acessa daquele amor inexprimível pelo mais habilidoso poeta que existe - rebati - Nas últimas palavras que Hélida ouviu de mim, antes de ser levada pelo pai, eu lhe disse que as estrelas não poderiam ser testemunhas de nosso amor porque elas morrem e o que sentíamos era a prova da eternidade.

- Deixe de falar em amor. O senhor é uma pessoa rica e candidatas não lhe faltam. É necessário retirar esta venda que o deixou cego até hoje. Por isto está condenado a viver na solidão interminável. Ela deve ser esposa e possuir muitos filhos - Francis via o mundo com os olhos dos escritores realistas- Não entendo, faz tanto anos que o senhor aparenta tê-la transformado em cinzas.

- A folha de macieira no meio de uma história fascinante foi a responsável pela minha permanência nesta casa. Quando Hélida me presenteou com Amor de Perdição, apanhei três folhas da árvore e escrevi nelas diferentes um verso de uma linda canção. Eu fiquei com uma, ela outra e a que restou nós a guardamos junto com os bilhetes. Agora sinto que não posso deixar esse local pelo menos até encontrar o meu tesouro - Deixei-o indo, em seguida, descansar em meu leito para repor as energias necessárias à próxima jornada.

A manhã nasceu escura com o céu carregado de nuvens tempestuosas que pareciam sedentas por desabar. Ordenei aos meus três companheiros os locais onde deveriam cavar e iniciamos os esforços para descobrir o paradeiro do cofre que não surgia mesmo com uma profundidade que superava minha altura. Aquele período se traduziu no krak-krak das enxadas que se eu mantivesse a dedicação atingiria o magma em um mês tamanha era minha ânsia em rever os papeis.

No começo da tarde vários pingos de chuva começaram a jorrar timidamente do céu. Dispensei os ajudantes e as gotas pesadas pareciam furar-me como facas formando inúmeras entranhas, contudo incapazes de conseguirem minha desistência. Permaneci, a roupa encharcada grudou pelo corpo e o barro lamacento dificultava os passos pela fenda assim como a areia movediça dos pântanos.

A noite surgiu com o término da chuva. Liguei a lamparina para desferir com raios luminosos o alvo que a enxada deveria atingir. De longe conseguia ver as luzes do sobrado acesas e um pequeno ponto que se tratava de Francis provavelmente preocupado. Já se passava da meia-noite e eu parecia uma máquina que trabalha incessantemente ou um escravo com medo da chibata. Mas era escravo do amor e não havia forma de luta pela emancipação. Senti-me fraco, comecei a ouvir vários sons que surgiram de repente e se misturavam numa orquestra inteligível, as imagens ao redor giravam como em um carrossel em alta velocidade, pedi o equilíbrio e...

Abri os olhos e me surpreendi por estar deitado em minha cama. Avistei Francis adentrar no meu quarto com um semblante inquieto :

- Como o senhor demorou em retornar, dirigi-me à macieira com o pressentimento de que algo de ruim tivesse lhe ocorrido e o encontrei desmaiado sobre o barro.

Minha respiração estava difícil e as costas doíam intensamente. A voz saiu rouca e a respiração assemelhava-se a de um moribundo:

- O que aconteceu comigo? - foi o que consegui pronunciar. Reparei no braço direito onde havia uma agulha pela qual entrava o soro.

- Segundo o doutor que o examinou, o senhor está com pneumonia e deverá manter-se em repouso por uma semana.

-Como? - naquele momento o que eu não queria era paralisar as escavações - Ninguém achará sem a minha presença. Sou o único pirata que tem o mapa do tesouro - continuei, com dificuldade.

- Ordenarei-os a procurar enquanto o senhor se recupera.

- Não, Francis - cof-cof, tossi para a voz sair - Tive uma ideia melhor. Contrate uma escavadeira e permita-os derrubar todas as árvores, incluindo a macieira, e não importa o quanto seja o diâmetro da abertura mas que consigam achar um pequeno cofre dourado.

Francis balançou a cabeça como se o que ouvia partisse de uma mente insana totalmente fora da realidade.

Os dias passaram e da janela do meu quarto, no segundo andar, podia ver duas escavadeiras removerem a terra tão rapidamente que para um ser humano levaria meses. Um fato inesperado ocorreu impedindo que as maquinas continuassem seu trabalho: a profundidade era tanta que o lençol freático fora atingido e a água jorrou pela fenda preenchendo a cratera que fora aberta. De longe dava para visualizar as cristalinas águas do novo lago que nascia pelos dentes da máquina.

Ao receber alta, caminhei em direção ao lago ansioso por conhecê-lo de perto. Ao chegar em sua encosta, despi-me e dei um salto sobre a água gélida que o sol não conseguia aquecer.

Abri os olhos e a visão nítida do vazio que compunha aquele lago permitia procurar nas profundezas o objeto perdido. Prendi a respiração e desci o máximo possível tocando os pés no solo barrento. Tinha a impressão de que chegava perto do cofre dourado. Nadei de um lado para o outro retornando à superfície quando o fôlego não suportava. As pedras em que pisava me confundiam e a todo momento eu as puxava imaginando ser o que queria encontrar. No centro do lago vi a pobre macieira tombada de lado com suas raízes expostas e abandonada morta debaixo d`água. Dirigi-me a ela e quando aproximei para tocar no tronco avistei um objeto que refletia intensamente a luz do sol debaixo das raízes. Meu coração disparou quase saindo pela boca e nadei para apanhá-lo: finalmente estava em minhas mãos.

Emergi em uma fração de segundos e retornei ao sobrado. Francis me viu passar todo molhado e correr como um foguete para a sala de ferramentaria onde guardávamos todos os instrumentos da casa. Peguei um martelo e o desferi contra o cadeado corroído que logo se rompeu. Meus braços tremiam devido a grande excitação em rever aquelas cartas depois de uma década. A forte emoção provocava delírios de me deixar falando sozinho com o cofre que, ao ser aberto, expôs aos meus olhos todos os bilhetes intactos, da mesma forma de como foram habilmente dispostos pelas maviosas mãos de Hélida.

Reli os papéis acreditando deparar com algum dado que pudesse cruzar nossos caminhos novamente. Refleti sobre qual lugar distante o pai dela a teria levado. Outra cidade? Outro país? Pela índole que o verdugo possuía, com certeza a desertaria para outro mundo se isto fosse possível em nossa época. A segunda folha do fruto do pecado continuava a canção:

"Com uma única carta
E uma única palavra
"

No final conclui não haver meios de conectar dois mundos distantes e sem endereço. Seria como buscar uma estrela sem conhecer as suas coordenadas no espaço. Guardei os na mala e pedi ao mordomo que providenciasse o voo para o dia seguinte.

Devo confessar que uma singela gotícula de esperança em reencontrar Hélida através daqueles papéis desvaneceu como um pingo de água atingindo uma chapa quente. O consolo da frustração de um trabalho sem o retorno esperado era suplantado pela presença dos diversos poemas que recitávamos juntos e que estavam ali à frente dos meus olhos. Era noite, fui ao leito aguardar meu último amanhecer naquela casa repleta de lembranças.

Ouvi, numa fração de segundos, o chilrear dos pássaros junto a um rebuliço de vozes provenientes do primeiro andar. Indaguei a Francis quando ele adentrou no quarto:

- Estamos em meio a uma invasão? - perguntei e logo reparei que as vozes que se propagavam no espaço eram femininas.

- Senhor, preocupo-me muito contigo e para libertá-lo desta prisão acredito que nada melhor do que um novo amor para desvanecer as impressões desta velha paixão ardente, deste amor infesto. Lá o aguardam várias moças disputando uma vaga no seu coração através de uma valsa a ser dançada em nosso salão.

- O que lhe sucedeu na mente para preparar-me tal apuro? - protestei contra a inesperada atitude que me deixou desesperado.

- Poderá encontrar no coração de outrem a chave que Hélida levou. Não as faça aguardar muito, levante-se que a vitrola está prestes a tocar.

- Diga-me o que tramou! - insisti ao perceber que ele não respondia a pergunta

- Anunciei na imprensa que o senhor procurava uma esposa. Aqui estão as candidatas e não seja covarde de fugir.

Desci as escadas, trêmulo, em direção ao salão. Não havia saída a não ser enfrentar em torno de cinquenta mulheres que conversavam entre si animadamente. Francis caminhou até o microfone e informou sobre a minha chegada. Ao entrar no salão, deparei-me com a primeira candidata que me tomou nos braços e no mesmo instante a agulha cerrou o disco inundando o ambiente com um suave som tocado pelos anjos.

Uma simples ideia reanimou as lânguidas esperanças de encontrar Hélida no meio das candidatas ao meu dinheiro: pedir a elas que continuassem o verso da canção pois quando namorávamos, sabíamos as estrofes perfeitamente. Assim fiz e passaram pelos meus braços várias mulheres que se declaravam falsamente, diziam estrofes de diversas músicas que desconhecia e enrolavam-se na própria conversa de que sentiam o impossível amor à primeira vista.

Restavam dez mulheres, eu estava trôpego e ébrio de tanto valsar, e nesse momento uma figura de talhe esbelto, longos cabelos lisos, os olhos escuros bastante vivos, os fardos lábios vermelhos combinavam com o vestido de mesma cor que atingia os pés daquele rosto angelical sem auréola. Iniciei a canção esperando que ela terminasse:

"Os recados que você me escreveu
Guardo-os todos comigo
E tenho pensado muito em como escrevê-los de volta
Com uma única carta
E uma única palavra...
"

Fez-se um silêncio profundo, daqueles que se houve o zumbido de uma mosca distante. Ela apanhou um objeto do bolso e o leu:

"Será uma mensagem escondida
Sobre o amor infinito de um garoto e uma garota
"

Fiquei pálido perante a surpresa. Ela me deu o objeto que se tratava da última folha amarelada e desgastada pelo tempo. As marcas da grafita estavam fracas e de difícil entendimento mas isso de pouco importava. Um veemente júbilo tomou-me o ser e me atirou aos braços de Hélida para usufruir daquele doce e indelével amor de perdição.

(29/06/2004)

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