Chamavam-na Madame Sofie. Francesa de Lion, tinha 45 anos quando chegou ao Brasil.
Alta, loira, mantinha o esplendor da juventude. Vestia-se sempre impecavelmente
e tinha os modos refinados. Sua maior dificuldade era acostumar-se ao clima
quente e seco de Brasília.
Havia sido chamada ao Brasil por indicação de uma antiga conhecida.
Sofie fora cuidadora de filhos de nobiliárquicos europeus, especialmente
na Alemanha, Luxemburgo e Mônaco. Diziam que havia até mesmo ajudado
a educar um certo príncipe Carlos, do Reino Unido, mas em vista da antiga
rixa entre os países vizinhos, era uma história mantida sem segredo.
Tinha vasta experiência em educar pequenos nobres nos mais rígidos
padrões, transformado-os em adultos fidalgos.
Sua missão nas terras da Pindorama era auxiliar uma jovem, cujo marido
acabara de eleger-se vice-presidente da República. Ela tinha dezessete
anos, e a família preocupava-se com as novas atribuições
em tão alto posto.
Apesar de gaúcha, Maria havia vivido alguns anos com uma tia no Rio
de Janeiro, onde conheceu o futuro marido em um baile de debutantes. Tinha apreço
pela vida no Rio, mas o casamento e a eleição do marido a obrigou
a mudar-se para Brasília. Sentia-se sozinha na capital federal, e a companhia
de Sofie também poderia lhe ajudar neste aspecto.
O início porém foi duro para ambas. Maria incomodava-se com aquela
francesa tentando ensinar-lhe modos diários. "Segure o talher assim",
"Fale sempre baixo, como é o dever de uma dama", "Postura,
postura, postura!". Seu limite estourou quando a francesa resolveu intrometer-se
na vida do casal, o que Maria de pronto repeliu. Ali definiram a fronteira do
trabalho.
Pouco a pouco no entanto, elas foram construindo uma amizade sólida.
Maria demonstrava nas recepções e contato com outras expoentes
da República uma educação superior, bem diferente da menina
que havia chegado à capital. A diferença fazia-se nítida
a cada encontro. As aulas de etiqueta ao menos estavam servindo para algo.
Maria sabia reconhecer que devia isto à Madame Sofie, o que fez crescer
entre elas - vagarosamente, friso - uma amizade cada vez mais sólida.
Para onde Maria ia, fazia questão de levar a amiga, mesmo em viagens
oficiais. Quando tiveram a chance de ir à França, foi a glória,
Sofie levou Maria às melhores lojas de Paris, frequentaram os maiores
costureiros europeus, bons restaurantes e tomaram dos melhores vinhos.
Depois de quase quatro anos de convivência, Maria já estava pronta
para um desafio ainda maior. Depois da renúncia do presidente, seu marido
tornou-se o novo presidente da república. Ela seria a primeira-dama do
país, recebendo atenção ainda maior de todos. Seria a mais
jovem primeira-dama do país, com apenas 21 anos quando seu marido assumiu
o governo. Não só a mais jovem, como a mais bela também.
Em tese poderia dispensar os préstimos de Madame Sofie, mas tinha-se
apegado tanto à francesa, construíram uma relação
tão forte que fez questão que ela ficasse. A própria francesa
não queria voltar. Além de já ter-se acostumado ao Brasil
- e a Brasília - a distinta francesa - tão nobre, tão educada
- curava suas horas de solidão com um negro de 40 anos, alto e forte,
motorista do presidente. Encontravam-se quase que diariamente por volta das
onze da noite, quando o casal presidencial já tinha jantado e recolhia-se
para seus aposentos. Madame Sofie só não corria para os aposentos
de Carlos quando este voltava para casa, onde era casado e tinha dois filhos.
Tendo optado Maria pela Granja do Torto em vez do tradicional Palácio
da Alvorada, as duas passeavam diariamente a cavalo pela granja, onde Madame
mostrava toda sua classe construída em pistas de hipismo europeias.
Quando haveria uma viagem para o Rio de Janeiro, no final de março de
1964, Madame sentiu uma indisposição, comunicando à Maria
que ficaria no Torto. Estava com mau presságio, pois no curral havia
nascido uma quimera, sinal de mau agouro na terra dos seus pais. Quimera é
o nascimento de dois potros em um, as vezes quatro pernas, uma cabeça,
as vezes duas cabeças e duas pernas. São dois e nenhum ao mesmo
tempo. Na terra de Sofie, quimeras são liquidadas imediatamente, pois
trazem azar. Insistiu com o criador do Torto para que matasse o potro, mas este
se recusou.
Passavam mesmo por um momento conturbado na política. O marido de Maria,
presidente do Brasil, vinha sendo questionado constantemente por vários
segmentos da sociedade, desde industriais insatisfeitos a militares que ameaçavam
uma revolução. O presidente forçava pelas reformas de base,
de cunho popular, mas encontrava grande resistências nos meios conservadores.
Era época de agitação, de grandes comícios pró
e contra reformas.
Madame Sofie estava em seus aposentos, tarde da noite, quando batem fortemente
na porta. Ela toma um susto e logo se lembra do potro. Pergunta quem é,
e reconhece a voz de Maria do outro lado. Abre a porta e a encontra chorando.
- O quê houve Maria?
- Sofie, minha querida Sofie. Temos que correr, querem depor o governo, precisamos
sair rápido daqui.
- Mas como? Para onde vamos?
- Vamos voar para o Sul, já está tudo planejado. O Leonel vai
nos ajudar por lá. Vamos não temos tempo a perder.
Sofie a fitou pensativa. Lembrou dos antepassados, que se recusaram a sair
de Versailles durante a revolução francesa e por lá foram
mortos. Mortos com altivez, não sucumbiram ao medo.
- Eu fico Maria. Vá você, não fugirei daqui.
- Mas Sofie, você tem que ir. Não sabemos o que eles podem fazer
com você.
- Maria, vá, leve seus filhos, cuide deles. Cuide de sua família
e não esqueça o que lhe ensinei estes anos. Fui muito feliz aqui,
e aqui prefiro morrer.
Maria a olhou e nada mais disse. Abraçou a amiga fortemente e assim
as duas ficaram por algum tempo. Maria partiu para o Sul e depois para um longo
exílio no Uruguai.
Já Sofie não teve mais dúvidas. Correu na cozinha e pegou
uma faca longa e afiada. Partiu decidida para o curral, afim de matar a maldita
quimera. Chegou lá, abriu a porta e levantou a faca, mas não teve
coragem de matar o animal que a olhava indefeso. Ameaçou, vacilou, ameaçou,
vacilou e finalmente jogou a faca para o lado e desistiu.
Correu de volta para o quarto e lá permaneceu até o dia seguinte,
quando homens de farda entraram no Torto. Sofie foi presa e interrogada por
três longos dias e depois deportada. Viveria o resto dos seus dias amargando
saudades do Brasil e especialmente do seu negro.
A quimera viveu vinte e um anos.