A Garganta da Serpente
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Julia Roberts

(Eduardo Kruschewsky)

Fazer o quê? Havia sido impossível lutar contra a sensação de perda. De concreto, palpável, daquela mulher restara o retrato, embora ela houvesse sido tão real, tão presente em suas lembranças... Foram seis longos meses debatendo-se contra a necessidade de isolar-se, tornar-se ilha. Ao vê-la de novo amor, concluiu que o melhor remédio para dor de cotovelo era cair nos braços de uma nova mulher. Até mesmo por amor próprio não poderia e nem deveria ficar só. Decidiu, então, por procurar alguém que lhe completasse. Mas, não tinha coragem e nem era mais nenhum garotão para sair por aí fazendo suspirar corações femininos! Assim, foi retraindo-se, quase não comparecia a nenhum evento ou festa. Do trabalho para casa, de casa para o trabalho. Depois que via tudo no horário nobre da TV, desligava o aparelho e deitava-se. Virava de um lado para outro na cama, pensando em Mônica, sem conseguir dormir, a ausência da amada lhe torturando.. A frustração, o sentimento de perda, fez com que adquirisse o hábito de sair pela madrugada, procurando companhia. Costumava sair de carro, passeando na noite, por vezes parando em um dos trailers de lanche para um papo com noctívagos ou simplesmente rodando pela cidade. Numa dessas madrugadas descobriu Julia. Viu-a e ficou vivamente impressionado: Elegantemente vestida, ali estava um ser diferente, quase diáfano, macérrimo, profundamente pálido, de uma pele quase leitosa, unhas longas, cabelos esvoaçantes, chamando a atenção de todos. Habitou-se a, sempre que possível, passar pelo local para visualizar aquela silhueta esguia que tanto o fascinava.. . Travou um conflito íntimo quando descobriu, pelo noticiário que aquele lugar que a sua nova musa frequentava era um ponto de travestis . Lutou contra o desejo que sentia por aquele ser diáfano, mas inutilmente. Curioso, fez pesquisas, descobriu a identidade do seu objeto de desejo: José, auxiliar de cabeleireiro num dos salões da cidade, conhecido no "mettier" como Julia. Disse a si mesmo que aquilo era um absurdo! Onde já se viu? Ficar invocado por um baitola! Porém, havia ocorrido uma mudança na sua maneira de pensar: Um dia, abriu a carteira e viu a foto de uma mulher estranha, não mais aquela que amara durante dez anos de sua vida e que lhe magoara tanto com a separação. Mônica Mercedes Pizantino de Oliveira agora era só um ponto obscuro na sua história de vida, passara simplesmente, era uma página virada. Há dias que nem lembrava dela e agora saía nas madrugadas por motivos outros nos quais ela não estava incluída. Só enxergava Julia, terrivelmente impressionado por sua figura impar. O que atrapalhava, porém, a sua aproximação era, além da timidez, a ambiguidade do seu objeto de desejo: de dia de roupas masculinas e à noite rodando bolsinha na esquina do prédio da TV, uma perfeita e linda mulher. De maneira masoquista, sofria com o fato e ao mesmo tempo sentia-se enredado nos mistérios daquele que julgava hermafrodita. ou, na melhor das hipóteses, quase uma mulher. Disposto a forçar o relacionamento, tomou coragem, aproximou o automóvel, buzinou e fez sinal. Equilibrando-se em cima de saltos Luiz XV, Julia aproximou-se:

- Oi, bem! E aí, gato?

- Vamos dar uma volta?


Foram. Ele, vítima de um ataque de timidez, tremia e calava. Ele-ela, numa intimidade imediata, colocou a mão de unhas postiças espalmada em sua perna e demonstrou estar à vontade. Depois, jogando os cabelos para trás, abriu a bolsa, apanhou um maço de cigarros, tirou um, acendeu-o com um isqueiro tipo Zippo. Ao fechar a tampa, o barulho metálico assustou o motorista.

- Que foi, bem? Porque você está assim? Como é seu nome?

- Ge... Ge...Geraldo - gaguejou, engolindo em seco e perguntou, inocente: E como é o... o... seu?

- Depende...Mas, pode ser Julia, em homenagem a Julia Roberts. Você lembra de "Uma Linda Mulher"? Quem sabe você não é o Richard Gere da minha vida?...

Riu amarelo, lisonjeado e tomado por um gesto de ternura, alisou o cabelo ruivo do homossexual. Sentindo que tinha boa receptividade, a figura dúbia dobrou a cabeça e recostou-se no ombro do motorista. Este olhou de soslaio e pensou que ela era muito linda, muito delicada, muito cheirosa, e muito muita coisa... Perguntou se tinha preferência por algum local e, ante o levantar de ombros da companhia, foi à procura de um motel discreto. Quase não conseguia dirigir porque era assediado por uma Julia que, ágil, percorria o seu corpo em carícias. Excitado, procurava se concentrar em dirigir. Aliviado da tensão, parou no motel e, na guarita, pediu a melhor suíte. Recebeu a chave e guiou até a garagem do apartamento. Quando saltava, o celular tocou. Julia, discreta, entrou no quarto, cheia de promessas, permitindo que atendesse a ligação. Ele abriu o flap do celular e atendeu:

- Alô?

- Geraldo, é Mônica. Preciso falar com você. - o homem gelou, enquanto ouvia o que lhe dizia a ex-companheira, com a voz embargada pelo choro, sem lhe permitir dizer nada: - Olha, meu amor, tentei lutar contra o meu sentimento de culpa, eu não devia ter terminado tudo... A nossa separação não é definitiva,porque cheguei à conclusão de que você é único, meu amor! Nenhum homem é igual a você... Acabei com Donato, não quero mais nenhum envolvimento com ninguém, agora só existimos nós dois. Estou aqui só, pensando em você, meu amor, minha vida! Já tomei meia garrafa de uísque, morta de saudade do seu corpo, da sua presença, do seu beijo...Venha, querido, venha!... - e desligou, de repente, entre soluços, deixando-o estupefato. Entrou, desconfiado, sentindo o programa quase perdido. Diabo! A Mônica tinha que voltar, de repente, à cena e telefonar para ele num momento como aquele? Do banheiro, vinha uma voz em falsete, alternando-se com alguns graves. Ele sentou-se à beira da cama, abriu o frigobar e remexeu nas coisas. Pegou uma miniatura de uísque, derramou no copo, colocou alguns cubos de gelo e completou com clube soda. Ligou a televisão, surgindo na tela uma cena de sexo. Olhou com desdém e desligou. Ficou em silencio, a mente trabalhando febrilmente, ouvindo o jato de água do chuveiro e, em falsete, aquela voz cantando uma música que não conseguia identificar direito. Encostado na cabeceira da cama, bebia a mistura que preparara e Mônica não lhe saía da cabeça trazendo uma confusão terrível: Ela estava pensando o quê? Então terminava dez anos de romance sem mais nem menos e, agora, achava que ele ia correr de volta? Ah, que nada! Que ficasse iludida! Ele já tinha um caso, acabara de fazer uma conquista, estava começando a se envolver com outra figura... Mas...Diabo, afinal dez anos não são dez dias e Mônica parecia tão desamparada! Ela bem que merecia uma lição, mas aquele apelo fora muito forte: "Venha me ver, por favor!" . Coitada! Tão desamparada, tão só, chorando tanto... E se tentasse o suicídio, caso ele não atendesse ao chamado? Mulher desesperada é um problema, faz cada besteira... Deus do céu, ter que ir ao enterro de Mônica, o povo olhando e pondo a culpa nele... E o pior seria depois. o remorso lhe roendo, sem nem poder se olhar no espelho, julgando-se um assassino! Ah, precisava tomar uma resolução e depressa e que a resolução fosse definitiva, sem arrependimentos posteriores...

Tão absorto e angustiado estava que nem percebeu que a água do chuveiro houvera sido desligada. Tomou um susto quando a porta do banheiro abriu-se e surgiu na sua frente o que não imaginara que veria nunca! Sem a pintura e a roupagem que a tornava tão linda, ali estava um ridículo arremedo de Julia, a Roberts: Nua, afetada, com todos os atributos físicos de um José, a caricata personagem postou-se, de braços suspensos e abertos, quebrando as munhecas, joelho direito dobrado e para a frente, numa atitude teatral e triunfante. Virando a cabeça para o lado, num gritinho histérico e afetado, bradou: "A... rra... sei!! Completa...mente! Eu sou uma quase mulher!"

Surpreso, Geraldo vendo as protuberâncias masculinas do parceiro, levantou-se da cama ,de chofre, desviando-se daqueles braços que queriam abraçá-lo. Sem saber o que fazer, sorveu o conteúdo do copo e correu para o banheiro, trancando a porta. Levantou a tampa do vaso, ajoelhou-se para não sujar o chão e enfiando a cabeça na cloaca, vomitou. Depois, abriu a torneira da pia, tossindo e cuspindo. Colocou água na boca e fez bocejo para limpá-la , ao tempo em que lavava o rosto. Olhou no espelho, e viu, com tristeza, uma cara amassada, confusa. Tentou acalmar-se, fechou o vaso sanitário, sentou na tampa, levando as duas mãos à testa. Alguns minutos depois, respirou fundo e consciente da decisão que tomara, saiu do banheiro. Julia estava deitada na cama redonda, olhando para o espelho do teto, enquanto, lasciva, acariciava o próprio corpo. Geraldo dirigiu-se à porta do quarto, trancou-a por dentro, apagando a luz. Vencido, arrancou apressado e nervosamente a roupa, caindo nos braços de Julia Roberts, seu novo e definitivo amor...

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