A Garganta da Serpente
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As muitas formas de amar

(Eduardo Kruschewsky)

Matá-la era ponto de honra! Ao chegar à conclusão de que era ignorado completamente, alimentar qualquer esperança de conquista era perder tempo. Decidiu que se ela não podia ser sua que também não seria de ninguém. Diversas vezes perguntou a si mesmo se aquele sentimento que sentia era amor ou algo de doentio, de raiva, de compensação. Convenceu-se que o amor tudo permite, desconhece preconceito de idade, raça, cor, ou o que seja. O amor é o amor, inexplicável, soberbo e ele não se justifica, mas justifica todas as outras coisas... Mas, doía a indiferença com que era tratado! Escondido atrás do muro, ansioso, sabia que a qualquer momento ela passaria por ali e, então, cometeria o crime perfeito! Haveria de atingir a vítima e a puxaria, ainda viva, para trás do muro onde já estava pronta uma cova rasa. Desta, ela não escaparia! E com que prazer haveria de apertar as mãos no seu pescoço, fazendo questão que ela visse a névoa que precede a morte e por trás da névoa o seu rosto! Assim, ela aprenderia que não se pode esnobar o afeto de ninguém...

Sentado, a todo o momento consultando o relógio, a arma pronta descansando em sua perna, procurava recordar como tudo começara: Era linda, os olhos vivos, nem magra nem gorda, mas ele nunca havia visto nada parecido: Era arisca demais! Bastava que tentasse a aproximação que ela fugia como o demo foge da cruz. Tentou de tudo para chegar perto, mas sem sucesso. De puro despeito, dissera ao Etiene, seu melhor amigo:

- Essa desgraçada não liga pra mim e, o pior, é que eu acho que ela sabe que eu gosto dela! Mas, tem nada não... Sabe por quê, Etiene? Porque ela é uma galinha! Vai ver anda por aí às voltas com dois, três...

- Liga, não, Pedro. Com tantas meninas lindas por ai, você vai se apaixonar logo por esta porcaria. Esquece ela, manda a bicha cantar em outro terreiro! Eu não entendo como é que pode, com tantas outras por aí que já são viciadas, mansinhas que faz gosto...

- E nem queira entender! Mas, fique tranquilo, um dia ela me paga! Vou pegar ela de jeito. É só uma questão de paciência.


A obsessão acentuava-se a cada dia. Ele não entendia porque já fizera sexo com tantas e era recusado mesmo sendo o "boa pinta" que era. E logo por quem? Por uma que, segundo soube, já transara com dois dos seus amigos! Diabo, só ele não tinha o direito! Uma vez quase que a surpreende: manhãzinha, lá vinha ela cantando despreocupadamente e ele, quando a viu, se escondeu. Sentindo a proximidade, o canto cada vez mais perto, o atacante se atirou, os braços abertos, tentando imobilizar a vítima, mas inutilmente... No momento do ataque, tropeçou e estatelou-se no chão, enquanto a danada saia em disparada fazendo um barulho infernal. Levantou-se e correu no sentido oposto, para não ser visto, os cotovelos esfolados, os joelhos doendo da queda. Tentou outras vezes e maneiras, mas falhou em todas, o que contribuía para aumentar o seu desejo: haveria de atirar, com cuidado, muito mais para deixá-la tonta e, ato contínuo, puxar o seu objeto de desejo para trás do muro, aproveitando -se do fator surpresa. Depois, era só cometer o estupro. Mas... Existia o risco de ser descoberto porque acreditava que a sujeita iria fazer muito barulho, querendo livrar-se dele, não iria se entregar tão fácil... Era por causa disso que iria matar, e com que prazer faria isto! Estrangularia o seu pescoço, olhando nos seus olhos, para que ela sentisse o ódio prazeroso que ele estava tendo em fazer isto...

Divagando em seus pensamentos, só notou a presença dela quando olhou, com cuidado, e viu que a vítima estava bem próxima. Preparou a arma e ficou quieto, mal podendo respirar. Quando estava a poucos passos do esconderijo do agressor, ouviu alguém chamá-la pelo nome. Virou a cabeça, atenta. Em seguida, deu meia volta e começou a se dirigir para o local do chamamento. O alvo quase desaparecia da vista dele. Com a intenção de imobilizá-la, afoitamente atirou. O projétil atingiu a cabeça e ouviu-se um som agoniado, dolorido. Ensanguentada, a pobre coitada ainda correu uns dois a três metros para cair, moribunda, aos pés de um homem que se aproximava com uma cuia cheia de milho. Este se abaixou, e tentou reanimar aquela figura que se esvaia em sangue, emitindo um som estranho como se estivesse engasgada com o sangue que também jorrava de sua têmpora. A atingida debateu-se em espasmos até que ficou tesa, com os pés esticados pela agonia da morte, os olhos semiabertos, definitivamente morta.

O menino - agressor ainda ouviu o "Virge Maria, cuma foi isso?" que o homem exclamou e, com medo de ser descoberto, enfiou o bodoque no bolso da calça, partindo em disparada para sua casa que ficava ao lado. O homem, por sua vez, convicto de que nada mais podia fazer, retornou à procura de ajuda.

Suando frio, tenso, o moleque entrou em casa, sem ser visto, passando direto para o quarto onde ficou, apavorado, o coração aos pulos, o ouvido encostado na janela que dava para a cena do crime. Daí a poucos, ouviu passos apressados e alguém que perguntava à testemunha se não vira ninguém por perto na hora do fato.

O agressor, sozinho como bicho acuado, caiu em si. Em desespero, ficou rodando pelo quarto, descabelando-se. Inconformado, joga-se na cama, corroído de remorsos, chorando fartamente. Com a baba escorrendo no travesseiro que apertava contra o peito, repetindo fora de si:

- Ah. Cotinha, nunca mais... nunca mais...

No meio da tarde, o único som externo que se ouvia, nitidamente, era a voz agoniada de dona Antonieta, a mulher do vizinho:

- Ai, meu Deus! Quem foi o infeliz que teve a coragem de matar a minha galinha de raça? Tadinha da Maricotinha...

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