Tinha a mania compulsiva de comprar livros, tê-los pelo prazer de poder
tocá-los, vê-los à hora que bem pretendesse. Costumava passar
nas livrarias e ficava horas, de queixo levantado, esquadrinhando prateleira
por prateleira, mesmo não comprando nada. Nos sebos, descobria livros
e manuscritos raros, adquiria e acumulava em casa, sem ler. A mulher já
lhe cedera um cômodo da casa, a dependência de empregada que ficou
entulhada, mas o espaço era insuficiente. Em pouco tempo, os livros já
se espalhavam, como praga, pelos móveis da casa.
- Baldomero, Baldomero, você não tá vendo logo, homem?
Acho bom parar com esta estória de comprar livros. Do jeito que a coisa
vai, daqui a pouco não tem lugar nem pra nós aqui dentro...
- Nada, mulher... Olha o que trouxe de Salvador: peguei no sebo, cada autor
em um só volume, papel bíblia, as obras completas de Castro Alves
e de Cecília Meirelles. Beleza, minha filha, os dois são da Editora
Aguilar, custaram uma ninharia!...Olha aqui, por indicação de
um amigo consegui esta cópia do manuscrito inédito de Vinicius,
é uma crônica onde ele diz que o avô dele era feirense. É
inédito, minha filha, incrível! Isso ele deixou na mesa da copa
do casal Sônia e Édio Gantois, que hospedaram ele quando começou
a vir na Bahia... Beleza! Maravilha! Isto, meu bem, chama-se investimento! Não
tem preço...
- Homem, tome jeito. Não tá vendo logo? Investimento se faz é
em dólar, imóvel ou ações. Me desculpe, amor, mas
só investe quem tem com sobra. Veja só: Tou precisando de um dinheirinho
pra comprar umas roupas e você nunca tem. Agora, pra livros...
- Tá bom, no fim do mês a gente conversa...
Foi num domingo chuvoso. Não tendo o que fazer, resolveu mexer nos livros
. Lembrou-se de um volume que adorava manusear e, subindo na escadinha doméstica,
alçou as mãos à prateleira mais alta da estante apanhando
"As Flores do Mal", de Baudelaire, em francês, edição
do começo do século XX, uma raridade, em capa de couro. Antes
de abrir, sopra suavemente a fina camada de poeira, passa com carinho o pincel
delicado que usa para limpar as reentrâncias. Findo o ritual que repetia
sempre que pega um volume, olha a obra com uma ternura paternalista, pensando
que aquele, um dos seus mais raros, custara os olhos da cara! Tivera que pagar
cerca de mil reais, mas o que era dinheiro diante do prazer de ter o que muita
gente ambicionava? Baudelaire... É verdade que não sabia francês,
mas o que importava se era dono de uma coisa tão rara? Abriu o volume
e notou um buraquinho bem no meio da primeira página. Franziu o cenho
e abriu a página seguinte. Pasmou gelado! Traça! Maldição!
Um ataque de traças aos seus livros!... Preocupado e nervoso, correu
até a dispensa, apanhou a bombinha de exterminar insetos e, esquecido
de todo cuidado, voltou ao quarto-biblioteca. Prendendo a respiração,
acionou a pequena haste da bomba, num movimento de vai e vem, despejando por
cima de Baudelaire, e volumes vizinhos, uma nuvem de inseticida, pretendo fazer
um teste. Quando achou que a quantidade era suficiente, parou para examinar
o resultado: As páginas amareladas estavam impregnadas do veneno. Achando-se
satisfeito, enquanto esperava que estas enxugassem, colocou o aplicador de inseticida
em cima da mesa do computador e saiu, fechando a porta. Na cozinha, parou para
conversar com a mulher, contando o que acontecera e ela concordou que havia
sido uma boa providência a que tomara e que, aliás, era o que ele
já devia ter feito há tempos... "'E melhor prevenir do que
remediar", sentenciou. A conversa foi desviada para coisas de família
e ficou ali, sentado no banquinho, tomando café. Daí a pouco,
voltou para a biblioteca e, vendo o resultado do seu trabalho, comentou consigo
mesmo: "É... a emenda foi pior que o soneto"! Já enxutas,
as páginas exibiam, borrões, alguns tornando ilegíveis
partes do texto, e manchas de matizes diversos, provocados pela aplicação
pouca técnica e exagerada do inseticida. Por esta não esperava!
Desistiu da ideia e passou o restante do domingo angustiado, examinando
todos os tomos da biblioteca. Infelizmente, como erva daninha, havia uma proliferação,
a infestação estava confirmada, algumas obras já apresentando
verdadeiras crateras! Passou uma noite intranquila, ansioso esperando o
dia amanhecer. Na segunda feira, logo cedo, partiu para a cidade e, impaciente,
deve que esperar a farmácia veterinária abrir. Contou o seu trauma,
queria que lhe arrumassem algo que matasse as traças e que não
afetasse sua biblioteca. Colocou o veterinário no carro, trouxe em casa
e o profissional examinando uma das traças deu o diagnóstico:
Tratava-se do tipo Tineola Biselliella, uma espécime que, apesar
de caseira, é terrivelmente voraz, ovula com rapidez e é muito
resistente a diversos tipos de anti-hexápodes. Não entendeu nada,
mas sentiu que estava realmente complicado. O médico veterinário
cobrou a visita e receitou, um pó, tipo talco, que, segundo ele, matava
traças sem dó, nem piedade. Era um veneno forte que deveria resolver
o problema sem maiores delongas. Varou a madrugada, naquela paciência
só possível aos que amam, aplicando o pó, volume por volume,
cuidadosamente. No outro dia, de volta do trabalho, a mulher, entre uma coceira
e outra, disse:
- Baldô, meu filho... Olha pra aqui: minhas pernas estão cheias
de "ronchas" vermelhas e tou sentindo um comichão danado no
corpo todo... O nosso gato tá parecendo que está de sarna, coitadinho,
e os meninos estão de olhos vermelhos, nariz escorrendo, espirrando que
tão... Isso é esse seu veneno...
Não tinha jeito: Pegou o aspirador e saiu sugando tudo, retirando o pó.
Mas, tivesse aplicado o remédio ou não, era a mesma coisa: as
traças passeavam, mostrando que a providência resultara inócua...
Zangado, resmungou que já não se fazia inseticidas como antigamente
e que "esta tal de Tineola Biselliella devia ser coisa feita, tipo virus
de computador"... Durante meses, tentou de tudo, sem resultado. Andou consultando
até o Globo Rural da televisão e nem a fórmula passada
por um técnico da Embrapa resultou eficiente. Era agora com tristeza
que chegava em casa e via as suas preciosidades sendo destruídas. As
traças se proliferaram de tal maneira que, se demorasse em ler o jornal,
lá estava uma fazendo um lanchinho...
Um dia, contando o seu infortúnio numa roda de amigos, um deles lhe disse
que havia uma solução. Aliás, diante da ineficácia
dos produtos exterminadores de traças, com os quais os insetos conviviam
tranquilamente, não havia coisa melhor, afirmava o amigo.
- E que solução é esta? Diga... diga logo, que eu não
aguento mais, quero acabar de vez com esta praga...
- Faça o seguinte: Abra todos os livros, ilumine bem o local, procure
pegar à unha uma das traças e pinte ela de cor de rosa. Depois,
solte a bicha no meio do ambiente e tranque a porta. Eu garanto que é
"batata": as outras vão morrer de dar risada e ela vai morrer
de raiva...
Diante das risadas gerais, Baldomero levantou-se indignado e foi para casa,
convicto de que a praga não tinha jeito. Estacionou na garagem, apanhou
um pedaço de mangueira plástica para retirar do tanque do carro
cerca de 2 litros de combustível. Entra na residência e, solene,
sem delongas, pede ajuda a toda a família: Daí a pouco, todos
estão transportando os livros para o quintal. Ele, profundamente consternado,
ao atirar o derradeiro volume, um dos preferidos, "Olhai os Lírios
dos Campos", de Érico Veríssimo, sente uma pena, uma dó
incrível, mas, decidido, derrama a gasolina por cima da sua coleção
inteira, tocando fogo. Em segundos, tudo crepita, destruindo preciosidades,
acabando num átimo com uma mania de anos, trazendo-lhe um prejuízo
incalculável não só financeiro quanto literário!
Mas - graças a Deus! - a praga de traças estava exterminada. Com
lágrimas nos olhos, abraçado à esposa que lhe dava apoio
e conforto moral, imagina ver algo de belo no meio do fogaréu. Apura
a vista, tentando visualizar: Seriam as "Flores do Mal"? "Os
Girassóis da Rússia" ou - quem sabe! - "Os Lírios
do Campo"?!
Ficou ali, plantado, até que tudo virou cinzas. Entrou em casa com uma
ideia fixa: No outro dia, estaria de volta às livrarias e garimpando
os sebos...