A Garganta da Serpente
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O corvo
(versão em prosa para o poema de Edgar Allan Poe)

(Erika Liporaci)

Era mais uma meia-noite sombria. Fraco e cansado, debruçava-me sobre volumes e mais volumes de saberes há muito esquecidos. Cabeceava, quase dormia, quando um ruído súbito me despertou. Um ruído surdo, arranhando de leve a porta do meu quarto; somente isso e nada mais.

Ah, minha memória é exata... Foi num triste dezembro. A sombra de cada fagulha dançava na lareira como um fantasma. Desejei que logo amanhecesse, já que era inútil meu esforço para buscar consolo nos livros. Que consolo poderia ter após perder Lenora? Minha radiante Lenora. Arrancada de mim, para sempre.

Um lúgubre esvoaçar da cortina púrpura gelou meus ossos, assombrando-me com temores até então inéditos. E essa agora! Para acalmar meu coração, continuei repetindo: "É apenas alguém batendo à porta, apenas algum visitante tardio em busca de abrigo. Apenas isso e nada mais."

Foi quando minha alma se fortaleceu e, sem hesitação, disse: "Senhor ou senhora, mil perdões. Mas a verdade é que estava cochilando. Tão de mansinho chamou, e tão timidamente bateu à minha porta que eu quase não pude ouvi-lo". E, de um golpe só, escancarei a porta. Lá fora, somente trevas... e nada mais.

Fiquei olhando direto para a escuridão, cheio de medo e dúvidas, delirando pesadelos que nenhum mortal se atreveu a ter antes. Mas o silêncio era sepulcral e a quietude, inabalável. E a única palavra dita foi um sussurro meu: "Lenora". Como resposta, um eco. Apenas isso e nada mais.

De volta ao quarto, minha alma ardia em inquietação. Logo, ouvi novamente o ruído. Mais alto do que antes. "Certamente", pensei "certamente há algo arranhando a janela, melhor abrir logo e decifrar este mistério, suspender de vez essa angústia no coração. Deve ser o vento e nada mais."

Abri a janela e, com grande estardalhaço, adentrou um corvo de ares ancestrais. Sem a mínima cerimônia, sem dar nenhuma atenção a mim. Com a pose de um lorde, empoleirou-se sobre um busto de Minerva acima da porta do quarto. Simplesmente empoleirou-se, e nada mais.

Era tão solene a fisionomia da ave negra que até ensaiei um sorriso, esquecendo-me por um instante das minhas dores. Ainda que não tenha crista, reparei, conserva a figura de um austero e antigo corvo, vagando pela noite eterna. A título de brincadeira, perguntei:

- Diz como te chamam nas regiões infernais.

- Nunca mais - respondeu o corvo.

Muito me espantou discernir as palavras tão claramente, ainda que pouco significado tivessem. Não pude deixar de me perguntar se alguém antes tivera uma visão tão esquisita: um pássaro sobre seu portal - pássaro ou besta empoleirado no busto sobre a porta - com o significativo nome de "Nunca Mais".

Mas o corvo, comodamente sobre a estátua, falou apenas aquela palavra, como se nela houvesse colocado toda a sua alma. Nada mais proferiu, nem uma pena deixou cair. Até que eu fracamente murmurei "outros amigos já me deixaram antes; você também irá, assim como foram minhas esperanças". Ao que o corvo retrucou:

- Nunca mais.

Fiquei estarrecido com a prontidão com que sua resposta varou o silêncio. Mas pensei "sem dúvida, o que a ave diz é apenas uma sentença decorada. Algo que aprendeu com algum dono infeliz perseguido pela má sorte e que, de tanto lamentar suas dores, condensou sua ladainha no refrão nunca mais".

Mas o corvo conseguia, de algum modo, arrancar um sorriso da minha alma triste. Posicionei uma cadeira confortável bem defronte ao quadro formado por pássaro, estátua e porta. Então, submerso no veludo, comecei a somar dois mais dois, imaginando o que realmente significaria essa severa e esquelética ave ancestral crocitando "nunca mais".

Fiquei muito tempo sentado, meditando, mas nenhuma palavra saiu de meus lábios. Os olhos coléricos do pássaro agora incendiavam meu peito ressecado. Por essas e outras, sentei-me com a cabeça reclinada sobre a almofada de veludo que a luz do lampião revestia de um colorido maligno. Veludo que ela não voltará a tocar. Nunca mais.

Foi quando senti o ar ficar mais denso, como se perfumado por algum incenso invisível. Tocado por um anjo cujos passos ecoavam pelo chão acarpetado.

- Miserável! - gritei - Deus te concedeu o esquecimento. Me ajuda a também esquecer a causa de minhas dores. Arranca de mim a memória de Lenora.

Mas o corvo repetiu:

- Nunca mais.

- Profeta! - chamei - coisa maligna, mas, ainda assim, profeta, seja ave ou demônio! Pelo céu que nos abençoa, pelo Deus no qual acredito, diga a esta alma desolada se, após a morte, poderei estar com minha amada Lenora. É a única certeza que preciso ter.

Ao que o corvo sentenciou:

- Nunca mais.

- Então que esta palavra seja nossa despedida, pássaro demoníaco! - gritei, exasperado -Volta para a tempestade e para o abrigo da noite! Não deixa uma pena sequer como testemunha das tuas mentiras! Me deixa em paz na minha solidão! Sai de cima dessa estátua! Que teu bico pare de golpear meu coração e tua figura maldita saia porta afora!

O corvo tornou a sentenciar:

- Nunca mais.

E o corvo não cede, e ainda se encontra lá. Empoleirado no busto de Minerva sobre a porta. Seus olhos têm a loucura delirante de um demônio, e a lâmpada alonga sinistramente sua sombra pelo chão.

E minha alma, cativa desta sombra, não se libertará. Nunca mais.

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