Quando chegou o outono e as folhas começaram a desprender das árvores,
me pareceu uma boa hora para arrancar o que ainda havia dele de dentro de mim.
Não que o nosso romance tenha sido intenso, muito pelo contrário.
Não foi nada espetacular, afinal o fogo só ardeu dentro de mim.
Só eu me entreguei, me queimei, me rasguei e desesperei. Vivi um filme
de amor que só foi projetado dentro da minha ilusão, que nem a
Mia Farrow em A Rosa Púrpura do Cairo.
O dissimulado manteve uma distância segura o tempo todo. Sempre me atiçando,
mas nunca ultrapassando a barreira da respeitabilidade. Tão certinho,
o covarde! Sempre testando os meus limites. No começo, eu não
percebi o jogo. Achava que éramos amigos, irmãozinhos, um lance
tão fraterno, emocionante mesmo. Eu me gabava tanto de ter alguém
com quem pudesse compartilhar tudo e não percebia que, ao falar das minhas
expectativas, dava a ele todas as armas de que necessitava. O cerco ia se fechando
e eu nem percebia. Talvez o primeiro indício da armadilha perigosa que
eu mesma tinha forjado tenha sido o declínio da minha vida amorosa, antes
tão conturbada. Logo eu, que adorava proclamar ser uma mulher sem fronteiras,
indomável, em quem nenhum macho colocaria cabresto, estava levando uma
vida de abstenção puritana e sem sentido.
Era ele que, tal qual uma sombra, se esgueirava para dentro das minhas fantasias.
E eu - a imbecil - comecei a comparar possíveis parceiros com aquela
criatura que começava a ganhar contornos míticos. Eu via algo
de quase angelical nele, o sumo supremo sagrado sonho de consumo, e não
percebia que estava com meus parâmetros mais do que abalados. E ele fazendo
o jogo duplo de sempre, o eterno morde-e-assopra. Ficava na dele quando o terreno
estava livre, mas era só algum franguinho começar a rondar seu
galinheiro que ele afiava as esporas e impunha sua presença. Como o canalha
adorava quando alguém nos confundia com um casal!
Tanta verborragia que uso para destilar minha ira e meus impropérios
sugere, talvez, que eu tenha me entregue de cara a essa obsessão. Mas
não foi o que aconteceu. É mais provável que também
eu tenha me contagiado com o espírito do faz-de-conta (vamos todos viver
no país das maravilhas!) dele. A constatação da situação
miserável em que me encontrava - recolhendo migalhas dum amor que nunca
seria meu - só me saltou aos olhos quando cruzei aquela fronteira de
onde não se pode mais retornar. E a estratégia do infeliz é
perfeita, sublime mesmo. Faz parecer um favor magnânimo cada grão
de afeto concedido. Ele nunca se expõe, nunca se compromete. Poderia
até ter o requinte de dizer que fui eu quem quis. E ele apenas concordou.
Na noite em que demos o passo definitivo, eu me senti vitoriosa. Não
era para menos; afinal, ele adiara o xeque-mate ao extremo, levando-me aos estertores
do desespero para, só então, desfechar sobre o golpe de misericórdia.
O tesão, tão reprimido, aflorou e foi com a maior das excitações
que colei meu corpo no dele. Tremi e suei frio quando sua mão, cheia
de propriedade, escorregou para dentro da minha blusa. Quando passou a boca
pelos bicos do meu peito, já me tinha toda. Eu sempre soube o quanto
o sonso adorava peitos. Várias vezes o surpreendi percorrendo com os
olhos os decotes que eu usava. De propósito, só para excitá-lo,
eu me curvava para apanhar qualquer coisa e revelava mais um pouquinho.
Finalmente, ele encontrara um meio de subjugar-me: na cama. Não que sua
performance tenha sido irretocável - conheci melhores - mas é
que ele sabe fazer um tipo que envolve aos poucos, tecendo uma teia invisível
em volta da vítima, como uma odiosa aranha.
Depois que ele adormeceu, fiquei ainda um bom tempo acordada, olhando o seu
rosto de menino. Respiração pesada, semblante sereno, cabelos
desgrenhados. Como ele parecia perfeito! Tentei dormir aconchegada nos braços
dele - que se remexia de vez em quando -, mas um sentimento poderoso mexia comigo.
Seria impossível relaxar naquele momento. Mentalmente, fiquei repassando
tudo de peculiar que acontecera: a maneira tempestuosa como ele chegou, o beijo
que desencadeou aquela loucura e, finalmente, o gozo que compartilhamos. Ele,
com um gemido discreto. Eu, gritando a minha paixão para a vizinhança
sem o mínimo pudor.
Não sei em que momento finalmente adormeci, só me recordo de despertar
com um solzinho fraco entrando pela janela entreaberta. Ele estava de pé,
já vestido, recostado no parapeito. Da cama, só podia ver parte
do seu rosto. Sua expressão parecia quase solene. "A gente precisa
conversar", disse. E como fingia bem, com aquele arzinho de artista incompreendido.
Quando penso na nossa conversa, fragmentos me chegam e alguns deles não
se encaixam. Absolutamente nada fazia sentido, como um caleidoscópio
quebrado. Eu ouvia, mas não aceitava. Por acaso, o canalha estava dizendo
que foi um erro, que se precipitou, que confundiu as coisas, que somos ótimos
amigos, que era melhor parar antes que estragasse nossa amizade? Que porra de
ladainha era aquela? Eu abria a boca, mas não tinha palavras. O que poderia
ser dito diante de tamanha sacanagem? Minha vontade era pular em cima dele,
entranhar minhas unhas naquela carne que beijara, falar coisas horríveis,
dilacerar suas roupas, surrá-lo até ele entender que não
podia me abortar daquela maneira. Que direito ele tinha de me despertar para
aquele amor reprimido e, em seguida, querer que tudo voltasse a ser como antes?
O gozo dele ainda estava nos meus lençóis, eu ainda tinha o corpo
dolorido. Não era justo!
Mas não é assim que funciona. Para uma mulher independente, moderna,
bem resolvida, intelectualizada, pega mal fazer papel de vítima. Como
admitir ter sido abusada em pleno século XXI? É preciso saber
arquivar a rejeição e disfarçá-la com desdém,
alguma coisa do tipo "eu não estava mesmo a fim". Ele nunca
saberá o nocaute que foi ouvir aquilo. Eu não serei um elo fraco
a ser massacrado.
Levou bastante tempo até que pudesse olhá-lo sem sentir o desprezo
que só uma rejeição é capaz de engendrar. O que
piorava era o tratamento condescendente que ele me dispensava. Como se pensasse
"é melhor dar um desconto, coitadinha".
Mas o outono chegou. Através da minha janela, posso divisar árvores
despidas. Elas estão prontas para recomeçar mais um ciclo, deixando
no chão o que ficou ultrapassado. É difícil se desvincular
do que ainda nos incomoda, eu não pretendo ter tamanha pureza. Por enquanto,
basta que a dor esteja anestesiada e, quem sabe um dia, poderá ser expelida.
Talvez no próximo outono.