A Garganta da Serpente
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Intoleráveis

(Erika Liporaci)

O Marcelo devia ter previsto aquilo. Como pôde colocar na mesma mesa - e para piorar, um ao lado do outro - a Patrícia e o Roger? Aquela mistura estava fadada ao desastre desde o princípio. Eu mesmo nunca convidaria aqueles dois para estar nem no mesmo aposento. Que dirá na mesma mesa, lado a lado, respirando do mesmo ar. Impossível, impraticável, intolerável.

Não que os adjetivos coubessem a cada um em separado. Eram boas pessoas, bons amigos, cada qual no seu estilo... mas totalmente antagônicos entre si.

A Patrícia era aquele tipo de amiga que é quase parente. Ela e o Marcelo eram vizinhos quando crianças, cresceram juntos, tiveram até um namorinho que não deu em nada - é, naquela era pré-tribalista a gente chamava de "namorinho" mesmo. Acabaram criando um vínculo mais forte do que qualquer laço de sangue.

Era um caso clássico, a Patrícia: filha única criada pelos avós superprotetores. Não gostava de ser contrariada. Mas quando tudo corria do jeitinho que ela queria, até que era um doce de criatura. Muito estudiosa, se formou com louvor em odontologia. Aos vinte e cinco anos, já tinha um consultório super equipado - bancado pelo avô - e uma clientela satisfeita e fiel. Seu universo literário era composto de livros de autoajuda e best-sellers do Sidney Sheldon. Gostava de jantar no La Mole, ver filmes no Cinemark e assistir a shows no Claro Hall. Seu point? Barra da Tijuca, of course!

Já o Roger (ele insistia que seu nome se pronunciava Rôgê) era outra história. Conheceu o Marcelo numa oficina de teatro que nenhum dos dois levou adiante. Parece que não tinha uma profissão definida: trabalhava com produção de eventos, iniciou uma faculdade - nem ele mesmo lembra qual - mas nunca chegou a concluí-la. A família ficou no interior de Minas e ele dividia um apartamento de dois quartos com umas quatro pessoas em Copacabana. Gostava dos bares da Lapa, dos filmes do Estação Botafogo e comia de acordo com a fome e a verba. Já passara dos trinta, mas era mais duro do que muito adolescente. O que faltava em definição de vida sobrava em personalidade: era cheio de ideias, o opiniólogo de plantão. Tinha obsessão em ser politicamente correto e sem preconceitos. Mas seu maior preconceito era contra pessoas preconceituosas. Meio contraditório, o rapaz.

O Roger foi um dos últimos a chegar ao bar onde se comemorava o aniversário do Marcelo. Abraçou forte o amigo e procurou com o canto dos olhos um lugar vazio à mesa. Não encontrou e ia pegar uma cadeira da mesa vizinha quando o incauto Marcelo, já meio anestesiado pelas caipirinhas, observou que a bolsa da Patrícia estava sobre uma cadeira vazia ao lado dela. "Está lançada a sorte!", pensaram todos que conheciam os dois.

Logo na primeira rodada, estabeleceu-se o clima: a Patrícia começou a tecer comentários sobre um cliente meio, digamos, afetado que ela tinha.

- Não, gente, a primeira vez que ele entrou no consultório eu já notei logo que ele era meio esquisito...

Apreensão geral. Mas pelo menos o suspense foi breve.

- O que é, para você, uma pessoa esquisita? - soltou o Roger, num tom indignado e com seu já característico levantar de sobrancelhas.

- Quê? - miou a Patrícia, fazendo beicinho.

- Não, eu queria saber qual é o teu conceito de esquisito. Porque esquisito, para mim, seria uma pessoa verde, ou algo assim!

Marcelo, numa reação tardia, mudou de assunto e começou a falar de cinema. O Roger, que adorava o assunto, começou a comentar as novidades do festival de cinema que tinha acontecido há algumas semanas. A Patrícia externou sua opinião de que era besteira correr para ver um filme que ia entrar em cartaz mais cedo ou mais tarde. O Roger, mais irritado que nunca, explicou que "como qualquer ser pensante sabia" muitos daqueles filmes não eram comprados por distribuidores brasileiros e, portanto, nunca entrariam em cartaz. A Patrícia ponderou que filme bom sempre tem distribuidor e, felizmente, nesse momento o garçom trouxe outra rodada. Eu engoli meia tulipa só no susto!

Foi a essas alturas que o Roger perdeu as estribeiras de vez e começou a fazer comentários sarcásticos e piadinhas infames:

- Alguém sabe como se chama uma pessoa que não passou no vestibular para medicina?

Silêncio. Sepulcral e absoluto.

- Dentista.

A reação foi imediata:

- E como se chama alguém que não consegue terminar a faculdade?

- Não sei... livre de rótulos, talvez?

- Despeitado!

- Cínica!

Olhares constrangidos, pessoas pagando sua parte na conta apressadamente, enfim, acabou-se a festa. No final, ficaram os dois se agredindo, o Marcelo olhando fixamente para algum detalhe no chão, e eu. Confesso que estava advogando em causa própria, já que naquele tempo estava a fim do Marcelo. Mas minha solidariedade interesseira teve limite quando a bolsa de grife da Patrícia passou à esquerda do Roger e a uns dois centímetros da minha orelha. Para mim, estava de bom tamanho! O Marcelo criou o rolo, ele que fique com os dois lunáticos. Bye bye, adieu, hasta la vista!

Essa festinha caótica aconteceu há uns seis meses. Encontrei com o Marcelo algumas vezes depois disso, mas nenhum de nós voltou a falar sobre o Roger e a Patrícia. O Marcelo provavelmente pelo trauma de ver seu aniversário começar tão bem e terminar tão mal. E eu porque não tinha nenhum desejo em relembrar um evento tão desagradável.

Então, ao receber minha correspondência nessa manhã, a última coisa que passava pela minha cabeça era a rinha assassina entre Roger e Patrícia. No meio das habituais contas - fazer o quê? -, um envelope branco grande. Papel de luxo, o que seria? Parece até convite de...

"Os srs. Fulano e Beltrano de Tal têm a honra de convidar para o casamento de seus filhos Patrícia e Roger..." foi tudo que eu consegui ler antes de dar uma topada na mesa e me espalhar no tapete da sala.

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