Era um dia, ou melhor, uma noite ordinária. Não ordinária
no sentido libidinoso que os grupos baianos de axé music deram
à palavra. Mas ordinária de comum, banal, insignificante mesmo.
Pelo menos é o que ela achava até o fatídico momento. Era
tarde. Passava das onze da noite. O vento cortante que cruzava o Aterro do Flamengo
dava a impressão de penetrar nos seus ossos. Ela estava exausta e lutava
com um guarda-chuva que teimava em virar do avesso e deixá-la desprotegida.
Eram as águas de março fechando o verão, exatamente como
cantou Tom Jobim tantas vezes.
Quando se aproximou do prédio onde morava e viu a silhueta dele pareceu-lhe
um absurdo qualquer, uma versão sádica de algum jogo dos sete
erros. O tipo de visão indecente que temos quando nossos olhos estão
embotados por uma tempestade. Miragens pulando de dentro de um deserto que permanecia
em sua mente. Mas foi então que o fantasma se moveu, e sorriu, e aquele
sorriso remeteu-lhe à antiga impotência que sentia na presença
dele.
- Tudo bom? - disse o espectro numa voz macia e cordial.
Como ele conseguia ser blasé! Ela abriu a boca e fechou-a de novo.
Não sabia o que dizer. Quantas vezes desejou vê-lo novamente e,
agora que a oportunidade se apresentava, amaldiçoou seu desejo e sua
fraqueza. Como o velho dito "cuidado com o que deseja". Ou a sinistra
história com a pata do macaco. O fundo moral é sempre o mesmo:
certos desejos, quando satisfeitos, podem ser a ruína de qualquer débil
equilíbrio emocional que se pense ter.
Uma situação, no mínimo, patética. Os dois, ensopados,
se estudando à maneira dos duelistas em filmes de western. Restava saber
quem iria sacar primeiro.
- Quer entrar? - perguntou ela, por fim. Alguém tinha que dar o primeiro
tiro.
Ela subiu o lance único de escadas lentamente, como se tentasse adiar
o inadiável. Tiraram os sapatos ensopados à porta. Ele usava uma
jaqueta feita de algo impermeável. A camisa de malha que usava por dentro
permanecia seca. Ela serviu um conhaque enquanto ele mirava, com calculada casualidade,
o casal sorridente no porta-retrato. Foto recente. Há algum tempo, havia
outra. Não que isso importe agora.
- Então foi por esse cara que você me trocou...
- Você sabe que não foi bem assim.
Silêncio. Opressivo. Malévolo.
- Como ele é?
Nova dose de silêncio.
- Diferente de você.
- E isso é bom?
- Na maioria das vezes.
Ele foi até a varanda do apartamento, rodando o copo entre os dedos.
O Rio de Janeiro, lá fora, sob o temporal, pouco lembrava a imagem de
cartão postal vendida aos quatro cantos do mundo. A chuva apertava. Uma
árvore se curvava dramaticamente, como se estivesse prestes a ser derrubada
pelas violentas águas de Tom Jobim.
Ele entrou na sala novamente, todo respingado. Se aproximou dela, após
largar o copo em cima da mesa. Algum departamento eficiente em sua mente registrou
o fato de que o copo ia manchar o tampo de vidro. Dane-se o tampo de vidro!,
rosnou outra parte mais consciente do problema contra o qual ela lutava. A mão
dele agora segurava o braço dela com urgência e propriedade. Ela
tentava ignorar as vezes em que, tarde da noite, se revirava na cama pensando
nele. A mesma cama em que eles viam filmes, tomavam vinho como dois sátiros
e, depois, faziam amor até de manhã.
As bocas quase se tocaram, mas algum vestígio de pudor, medo, ou fosse
lá o que fosse, pairava no ar.
- Não tem sentido - a voz dela era quase um chiado - está acabado.
Mesmo.
- Senti tua falta...
- Até acredito que isso seja verdade agora, mas com você a gente
nunca sabe quanto tempo dura uma crise de carência.
Ele recua. Procura novas armas. Outro silêncio estrondoso que fere seus
ouvidos. Ela tem ímpetos de sair porta afora, correndo no temporal. Mas,
obviamente, não faz isso. Continua ali, à espera da munição
pesada. Que não tarda.
- Ele te faz sentir mulher como eu?
- ...
- Me responde só isso!
- Você está apelando. O que isso tem a ver? Você está
cansado de saber que na cama sempre foi ótimo. O problema é quem
você é longe dos lençóis. Essa tua maldita inconstância!
- Por que você tem sempre que ter essa cabeça no amanhã?
Nós nunca vivemos o momento, porque você já ficava sentindo
minha falta antes de eu ir embora!
- E mesmo assim você ia quando eu menos esperava!
- Deixa de ser matemática, mulher!
- Eu não preciso de você!
Mentira. Mas ela também podia mentir e, fazendo um gesto mais abrangente,
continuou a iludir mais ela mesma do que ele:
- Eu não preciso estar nesta situação... eu não
preciso de nada disso!
A respiração dele estava tão próxima. Ela tentava
evocar o homem sorridente do porta-retrato. Ele estava sempre a seu lado, ele
a respeitava e amava... mas ele era um ídolo tão frágil...
Tão correto, tão equilibrado! Talvez a ponto de compreender um
deslize seu. E depois, provavelmente, se dispor a sentar para "discutir
a relação". Ao invés de merecer seu respeito, angariava
seu desprezo. Ela sabia que não estava sendo justa, mas a lógica
de uma mulher tomada pela paixão sempre foi traiçoeira. Algumas
pessoas se vendiam por dinheiro, glória, poder. Seja qual for o motivo,
era para manter algum tipo de vício interior. Também ela tinha
o seu. Talvez se violentar por amor seja a única forma de meretrício
desculpável, tentou se justificar enquanto ele a abraçava com
fúria. Os ruídos do temporal lá fora criavam uma sensação
de irrealidade, como se tudo fizesse parte de uma tela surrealista.
Sempre se amavam como se fosse a última vez. Talvez esta, de fato, fosse
a última. Mas o mais provável é que não. Afinal,
é grande a diferença entre saber e fazer o que deve ser feito.
E no dia seguinte, o sol nasceu como sempre.