Se não procedi nos conformes arrependo-me e peço perdão.
Pois que sabem da minha robustez, do meu caráter rochoso, não
suportaria a vexação e o mordimento - danado bicho-da-consciência
- ao avistá-los, seria demais para mim. Perdão Jandira, Sebastião,
Manu (grande Emanuel)! Perdão Jacinta, Eleonora, Valdemar, Claudir! O
peso que me esmaga tem alcance além do meu corpo, esmaga a minha alma,
de tal forma que inculcado acredito ser isto o purgatório. Deixo vocês
como penitência, já que remédio não há. Deixo-lhes
e é para sempre, não tenho mais o tempo da vida vivida. Não
esperanço começar uma vida em outro lugar, este eu busco, mas
é para descansar a cabeça e repensar os erros, culpar-me, talvez
encontrar a paz. Vocês foram meus companheiros de vida, minha família,
pois que sempre solitário, já que família própria
eu não constituí. Os irmãos, todos mais velhos, há
décadas se foram para São Paulo, nem me lembro de suas fisionomias.
A mãe e o pai, forasteiros neste lugar esquecido por Deus, se foram em
um mesmo ano, de mortes diferentes, eu ainda mocinho. Criei-me sozinho, com
ajuda das negrinhas que cuidavam da Jacinta. E só agora, meio século
depois, lhes revelo: Jacinta, meu primeiro amor, uma das negrinhas, minha pureza
perdida. Jacinta foi minha namoradinha, sim, mas nunca soube. Desculpe-me Claudir,
se lhe ofendo a honra, mas isso foi coisa de criança, além do
quê, Jacinta nunca soube. Sebastião, Tiãozinho do fubá,
meu primeiro amigo, quando ainda mal balbuciávamos, amizade nas onomatopeias!
Companheiros nas pândegas, boêmios dos boêmios, que saudade
daqueles tempos. Lembra da Carlotinha? Naquela noite em que descobrimos o que
uma mulher traz consigo entre as pernas? Safado assaltou-me a vez, persuasão
qual nada! Manu, porque de Emanuel não te encontro, parceiro de cartas
e bilhar, fincou-me no vício dos jogos e do cigarro, deu-me apoio sempre
que precisei. Jandira, eu e o Claudir lhe vimos nua e crua, isenta de pelos
- para a nossa surpresa! -, um dia, enquanto banhava-se no rio sob um luar mágico.
Apaixonei-me por você (também!), mas era tão doce, tão
pura, demais para mim. Valdir e Eleonora, meus pais adotivos, embora, pela idade,
fosse impossível serem meus pais. Com vocês aprendi, tornei-me
algo melhor do que poderia ter sido, não tão bom, mas razoável,
e isso é um grande feito. Vocês foram o que foram para este velho
rabugento, e de rabugice fiz o que fiz, arruinei tudo, e deu no que deu, fazer
o quê? Ter paciência, é o que me resta, por isso vou-me embora.
Todos criaram família, têm filhos, netos, somente eu permaneci
sozinho, então creio que em vocês a dor da perda não existirá,
e se vier a existir irá esvair-se ligeiro.
O homem caminha rumo ao fim, que pena só perceber isso agora, viveria
mais, sofreria menos. Na idade em que me encontro, tornamo-nos complacentes,
os absurdos não nos incomoda mais, não há tempo para raivas
desnecessárias, lutamos o quanto pudemos, agora queremos descanso, os
mais jovens que encontrem as soluções. Mas não me abstive
de tudo, velho com modos de jovem, dá pra ser? A sabedoria que esperei
adquirir em livros, adquiri em vida. É a minha bagagem nessa viagem em
busca de mim mesmo, da minha querência de caminho esquecido em um ano
qualquer, ébrio entre sorrisos e lágrimas. Em um queremismo não-altruístico,
tampouco patriota, gritam os muitos eus, enjaulados em mim: "Queremos sossego!".
Pois que quase alcançado, o sossego veio a ter-me repulsa, decorrência
de um único ato louco.
Para onde vou não direi, mas mandarei notícias, se o perdão
for realmente válido, mesmo que não, se sentir a falta dos desabafos,
serão alcançados, incomodados, saberão de tudo. Repito:
não tenho ninguém! Não se preocupem com a possibilidade
de tornar-me um vagabundo, a vadiar sem rumo pelas ruas de um lugar qualquer.
Vendi o que tinha, acresci ao que sempre guardei para no caso de um dia precisar,
assim conseguirei viver alguns anos, humildemente bem, creio que serão
os poucos que me restam.
Quando criança quis saber de onde eu vinha, questionava-me constantemente
sobre a minha concepção, o motivo da minha existência -
creio que toda criança já se perguntou isso. Perguntei a quem
pude, todos me sorriam e diziam: "não tenha pressa em saber isso,
um dia descobrirá sozinho, naturalmente". Hoje acredito que essa
era a resposta sempre ouvida porque aqueles a quem eu inquiria ainda não
tinham descoberto, talvez nunca conseguissem, eu não consegui. Mas eu,
criança sonhadora e inquieta, não satisfeito com o conselho, continuei
no intento, e procurei em cima de árvores, embaixo de pedras, subi morros,
adentrei matas, conversei com lagartas, preás, tatus, cantei aos pássaros,
suei e cansei, talvez estivessem certos, eu devia era esperar, sem pressa, não
dar importância à delonga. O problema é que tal delonga
perdura até hoje, e o turbilhão em que lancei nossas vidas pacatas
me serve, agora, de incentivo para dar continuidade à empreitada dos
tempos de menino, em busca de uma explicação. Portanto, não
será uma fuga, um exílio, será uma busca, uma permissão
para o coração voltar a conversar com os bichos, uma vez mais.
Não cultivem mágoa, ódio. Deixem-me sozinho nessa dor,
por mim provocada, pois sou eu o único merecedor desse fardo. Fiquem
com as boas lembranças de todos nós, juntos, feito irmãos,
por mais de meio século. Pecado seria não levar conosco ao túmulo
tais lembranças. Eis que é chegada a hora de dizer adeus (para
sempre?). Levo todos comigo com muito amor, muito carinho. Até mais adiante,
se o adiante existir.