A Garganta da Serpente
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Assassino

(E. Prearo)

Lembro-me de que Michel começou a cantar no Café Bangladesh num final de outubro. Os tempos, mesmo assim, pareciam difíceis para ele, que não possuía um timbre de voz agradável a gregos e troianos, mas talvez somente a gregos. O cigarrinho dele atrapalhava e muito; imprimia uma certa rouquidão à voz; e eu ficava pensando: ah se aquela voz não fosse rouca! Nos encontrávamos sempre aos sábados, e eu gastava muito no Café nesse dia da semana,com mulheres, drinks e com o cantorzinho que nunca daria certo. Michel era misógeno. Naquela Sábado do dia 31, ele sentou-se à mesa, após sua apresentação, e quis discutir nossa relação. Tinha traços finos, e eu ouvira alguém da plateia se revoltar por uns segundos contra a "carinha de moça", ou então, "o moção cantante". Acho que pessoas como Michel, que não se esforçaram para viver um grande amor com uma mulher, deveriam de qualquer forma serem respeitadas.

"Você quer discutir a nossa relação, Michel? Mas somos somente amigos, não entendo"

"Sim, a nossa relação de amizade. Você é meu único amigo. Viu como cantei My Prayer nervosamente? Ando preocupado porque nunca me perseguiram assim por causa da aparência, nem na adolescência. Sou o senhor, sou o ladrão, sou o homossexual; nossa, quanta coisa!"

"Mas, meu caro, não é por causa de sua aparência que lhe perseguem, acho que não. São seus trejeitos e..."

"Você me acha mais delicado do que uma mulher?"

"Não, as mulheres são mais delicadas, é claro. Mas vamos mudar de assunto. E como andam os amores?"

"Não dá mais pra falar nisso agora que sou considerado um insano. Acho que os homens com aqueles narigões, ou seja, aquelas qualidades, têm mais paz do que eu quando andam pelas ruas"

"Meu caro, paz talvez exista no cemitério!"

"Não me venha com esse papo bobo. Acredito em um purgatório após a morte. Mas nem todos iremos para lá. Os que fizeram coisas boas vão direto para o céu."

"E o que é bom e o que é mau, Michel?"

"Ajudar às pessoas é bom."

"Eu te amo!"

"Como? Você tem coragem de dizer que tem amor por mim? De qualquer forma, obrigado. Tive muita sorte em conhecê-lo."

"Tenho mais amor do que nojo."

"Nojo, nojo, sempre me dizem que dou nojo. Eu também gosto de mulher."

"Ah, tá bom. Mas vamos mudar de assunto. Você até que canta muito bem. Não acreditei quando me disseram que você se tornou um profissional. Sabe, eu já quis ser cantor, mas não deu muito certo."

"Dá um canja, cara. Mas nem sei como consegui isto. Canto uma vez por semana e durante vinte minutos, no máximo. É um serviço voluntário, não me pagariam um centavo, nunca."

"Você só tem eu de amigo, e todos acham que temos um caso."

"Chega. Tenho de ir embora. Estou confuso, confuso por causa de minhas atitudes. Dizem que dou bandeirinha, riem. Agora afastam-se de mim como o diabo da cruz. Sabe do que tenho vontade? De ir embora para o cais. Ali, se alguém se interessar por mim, dependendo do lugar, fica vazio. Ou então tem plateia quando a coisa parece pra valer."

"Sair do país pelo cais talvez não seja uma boa. Se eu tivesse dinheiro eu te ajudava. Mas, desculpe a sinceridade, você jamais sairá do país. Você se tornou um senhor; não exatamente um senhor idoso, sei lá, dá até desanimo; parece-me que o chamar de senhor faz parte."

"Parte de quê?"

"Da vida deste povo sofrido, de toda uma população desconhecida que no final é inocentíssima"

"Bom, tenho de ir mesmo.Essas chuvas da palavra senhor, tomo-as sem querer; choco-me com meu verbalizar estranho; encharco-me dela porque não a vejo como formalidade. Estou cansado, como sempre. Conversar com pessoas, mesmo com você, cansa-me um pouco, pois sempre percebo inaceitação. Devo ser um monstro"

"Até breve. Sábado passarei por aqui de novo. Quero te ajudar, sabe; tirar-te do submundo."

"Escuta, essa conversa de que Deus está me vendo é certa?"

"Não sei.Vê se levanta cedo e vai trabalhar, tá bom?"

Essa foi minha última conversa com Michel naquele outubro caliginoso. Soube que ele havia morrido pelo rádio. Foi uma morte banal, mas que causou muitos comentários. Pais abraçaram seus filhos, aliviados com a morte de um exemplo tão negativo; começaram a haver marchas de protesto em favor dos homossexuais; outras pessoas estranhas ficaram com raiva, dizendo "a bicha louca foi pro inferno", talvez porque nunca mais poderiam murmurar com o mesmo prazer coisas indignas a alguém detestável e malandro; psiquiatras do mundo todo ficaram felizes. Mas enfim, toda essa turbulência durou apenas um dia. No dia seguinte, se uma pessoa falasse na "morte de Michel", diziam: "Quem é esse Michel, quem é?", "Existiu mesmo?", "O infeliz morreu feliz", etc.

Agora estou eu cá, sozinho, recordando tudo. Pra uns, vez ou outra represento a humanidade. Não me considero nada especial. Se eu não o tivesse assassinado, eu estaria por aí; mas arranjei até um emprego melhor. Fui o melhor amigo do tabaquista. Sou um monstro!

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