A Garganta da Serpente
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Cálice cheio de amargura

(E. Prearo)

A intuição adormeceu completamente, senão não teria tanta raiva, raiva bandida. As consequências parece que serão bem brabas, e as retratações insuficientes. Atravancado, Yh decidiu pedir ajuda, o que o deixou mais aflito, pois ninguém lhe dá o apoio que ele acha precisar. Parece insano, e se por "acaso" for preso ou internado ou tiver que pagar alguma multa, não terá a quem recorrer. As suas frases burras, o eu prolixo de um tímido, foram tomadas com a merecida indiferença, e agora lhe foge as coisas. Pessoas vêm lhe pedir dinheiro, mas vêm assim, contando uma história; ele, egoísta, diz "se for dinheiro, eu não tenho". Yh corta as histórias das pessoas, e teme se matar porque se matar talvez doa demais. Mas o que dói mesmo é ficar nesse deserto, desandando; ficar nesse mundo que o despreza...ou então a esquizofrenia é muita. Os amigos, ah esses amigos, ou melhor, amigas sempre íntimas, essas se afastaram, alegando estarem com Deus. Sim, para Yh elas nunca pecam; estão realmente de uma forma ou de outra com Deus. Mas esse afastamento sem muitos motivos graves, essa coddependência partida, é meio dolorida por um lado, mas por outro é algo meio que libertador, mormente se as coisas melhorarem. Porém, não estão melhorando: objetos quebram, tudo quebra; a população desconhecida agora está a lhe chamar, pelas costas, de homossexual. Então, Yh fica se achando com aspecto feminino. Será que esses desconhecidos estão dando uma de deuses, ou será que são realmente deuses castigando seres pelo aspecto que se lhes apresentam? Vá trabalhar, seu vagabundo; foi o que ele ouviu e que certamente ouvirá. O cigarro, que ele diz não fumar, a nicotina, destrói vidas e sonhos...

Já é domingo. Ouve-se o som de carros e de grilos. São quase quatro horas da manhã, e certamente que não choverá hoje. Mas podia chover, esfriar um pouco. Yh ainda está acordado, olhando para o teto branco. O amanhã a Deus pertence; Deus que não irá perdoá-lo por tantas bobagens que disse. Esther, uma das amigas íntimas, falou certa vez que ele ficava afeminado quando se alterava. Talvez isso seja verdade. Liga a tv e não está passando nada. Deus está na tv pelas palavras de pastores. Será que no inverno Yh estará ainda onde está? Provavelmente não. Gente desconhecida e desconfiada ( parece ser até alguma coisa pessoal ), aproxima-se dele para lhe chamar de senhor. Yh escreve, mas lê pouco; então de que adianta? O próximo quartinho terá baratas?, pergunta-se. Vai até o computador e escreve um poema.

Fiz uma magia no topo da montanha,
magia vermelha, sanguinária;
e agora a miséria não me parece estranha;
tornei-me em alguns segundos uma espécie de pária.

Ando por ruas escuras, de dar medo;
onde já esmolam antes de mim;
E a tudo de bom-mas-duro cedo;
o cigarrim que não fumo pinta o fim...

Do fundo do universo chegam anjos
para me acalentar, mas não sou nada.
Se saio ou fico, culpa arranjo.
Não percebo o quanto as pessoas são delicadas.

Não luto, apenas parasito;
a comunicação é excremento.
Quem me dera ter algo de bendito;
por uma chuva de frases críticas já lamento..

O algoz vestido de branco me encara,
escarra, joga-me a comida, sou bandido.
Quem é figurante também sara;
o populacho desconhecido é sofrido.

Yh desliga o computador. Passa das cinco da manhã. As amigas eram-lhe uma muleta. O que fazer agora? Talvez precise sentir a compaixão alheia, já que não possui compaixão. Vai preso ou coisa assim. Que inferno pior será, que inferno que está sendo! Sem forças pra nada e à mercê das invectivas, acha que sem as amizades Deus não o ajudará; que sem elas ficará na miséria absoluta. Pelo menos com as amizades sentia-se seguro, pensava em outras coisas como correr, cantar. A corda está bamba, e pra que lado ele cairá ainda é uma incógnita. Se houvesse um vasto mundo para se aventurar! Mas não; há um consenso entre o todo-mundo-desconhecido de que ele está velho, rabugento, de que ele é gay e tem behave suspiciously. Alivio não há mais; e essas amizades se afastaram mas continuarão ligando pra saber em que pé está sua vida. Ele falará, é claro. Sempre diz tudo a respeito da sua situação. Nervosidade? Um pouco. Nada o irá redimir, nada. Deus fugiu também, está com elas, com todo mundo. Numa sociedade altamente competitiva, alguém como ele morto ou inválido não faz diferença, é lucro. Ele é um cálice cheio de amargura.

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