A Garganta da Serpente
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Lúcia

(Elano Ribeiro Baptista)

Lúcia era uma moça muito tímida. Na verdade, extremamente tímida. Resultado de uma educação austera por parte de seu falecido pai, um coronel reformado do exército. Filha única morava num amplo apartamento na Avenida Atlântica junto com a mãe. Não tinha amiga, sempre teve dificuldades em fazer novas amizades. Formou-se em filosofia, mas nunca conseguiu exercer a profissão nem formular ideias próprias. Passava o dia, dividida entre duas tarefas, assistir televisão e navegar na internet. Devido a sua timidez nunca teve namorado, apenas trocou uns inocentes beijinhos quando adolescente. Aos 22 anos continuava virgem e ainda sonhava com o príncipe encantado. Apaixonou-se duas vezes. A primeira paixão foi o Orlando, que conheceu através de uma sala de bate-papo. Ele dizia que morava em Recife, num bairro nobre chamado Santana, que era executivo de uma empresa de exportação e que tinha 28 anos. Com o passar do tempo começaram a trocar fotografias. Orlando era um jovem muito bonito, moreno, alto, olhos verdes, sempre tirava fotos ao lado de belos carros importados. Lúcia estava cada vez mais apaixonada. Ela dizia: - Mãe encontrei meu príncipe. Finalmente marcaram um encontro. Orlando viria para o Rio e ficaria hospedado no Copacabana Palace. A mãe de Lúcia comentou com a empregada: - Nossa que homem chique, valeu a pena Lúcia esperar tanto. Dois dias antes do dia marcado para a chegada de Orlando, Lúcia resolve ler um pouco de jornal, coisa que não era de seu costume fazer. Poucos minutos depois solta um grito de pavor. A empregada corre pra sala e a encontra quase desmaiada, segura a pálida moça pelos braços que, antes de desfalecer ainda consegue dizer: - Mataram o Orlando. É a vez da empregada desmaiar. A mãe chega e encontra filha de um lado e empregada do outro. Muito confusa retira com certa dificuldade das mãos da filha a página do jornal em que aparece a foto de Orlando tendo logo abaixo a seguinte manchete: "Polícia estoura QG de traficantes de armas em Recife e mata o chefe da quadrilha". Demorou muito tempo para que Lúcia voltasse ao seu estado normal. Passou dois anos enfurnada dentro de seu quarto, até que um dia a empregada comentou com ela que um rapaz lindo, solteiro, havia se mudado para o apartamento de cima, o 801. Tomada por uma estranha curiosidade, Lúcia passou a frequentar o elevador do prédio. Subia e descia várias vezes na esperança de conhecer o novo morador. Um dia teve sua curiosidade saciada. Ele realmente era tudo que a empregada havia dito e mais um pouco. Porte atlético, 30 anos, cabelos e olhos castanhos, pele bem clara. Ficou sabendo mais tarde através de uma "investigação" da empregada, que ele se chamava Pedro, rapaz nascido e criado no interior, dava aulas de psicologia numa universidade pública, parecia não gostar de noitadas, não bebia, não fumava, enfim, o homem perfeito. Lúcia começou a prestar atenção aos horários de Pedro e, por isso, todos os dias às oito e trinta já estava na portaria do prédio. Ele, muito educado, cumprimentava-lhe com um discreto sorriso. Foi o suficiente para que uma pessoa carente como Lúcia se apaixonasse e começasse a fantasiar mil coisas, transformando aquele simples sorriso numa declaração de amor. Passava boa parte do tempo ensaiando sua investida contra Pedro, porém, devido a sua inexperiência com qualquer tipo de relacionamento, isso se tornava uma tarefa árdua. Até que numa noite de muito calor, lua cheia, ela tomou uma decisão. Seria aquele, o grande dia, o dia em que ela iria declarar todo seu amor a Pedro, seu verdadeiro príncipe encantado. Por volta das vinte horas tomou o elevador e desceu no oitavo andar, lentamente e muito trêmula se dirigiu ao 801. Sem se reconhecer tocou a campainha. Para sua surpresa quem atendeu a porta foi um rapaz mulato, também muito bonito, aparentando ter uns 20 anos. - Pois não. Deseja alguma coisa? Depois de um tempo em silêncio, Lúcia, gaguejando, disse que gostaria de falar com Pedro. O rapaz pediu que ela esperasse um momento que iria chamá-lo. Deixou a porta entreaberta, o suficiente para que Lúcia pudesse escutar aquela frase que a perturbaria por muito tempo: - Amor, tem uma moça querendo falar com você lá na porta. Vou te esperar no banho, vê se não demora. É claro que Lúcia não esperou por Pedro. Entrou em casa, cabeça baixa chorando. Passou um bom período se perguntando por que a vida era tão ingrata com ela. Passados oito anos da segunda desilusão de Lúcia, o que eu - dono de uma banca de jornal aqui no calçadão de Copacabana e muito amigo da empregada da casa - sei, é que a pobre moça, talvez cansada de tanta desilusão, passou a ter hábitos muito diferentes dos que tinha. Sai todas as noites e só volta pra casa quando o dia está raiando. Usa maquiagens pesadas e roupas muito ousadas. Dizem as más línguas que por R$ 50,00 Lúcia faz um programa completo.

(Setembro 2006)

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