Regará flores no jardim protegido por cerquinhas pintadas rosa defronte
à choupana. Um felicíssimo na vida. Todos os dias, religiosamente,
a emoção mesma se renovando, mais e mais convicta, e tanto mais
sólida se considerarmos a quase absoluta esterilidade do chão.
Arenoso chão. Apesar, pétalas coloridas e cheirosas e enormes.
No conceito dos crédulos, milagre. Portanto, consequência,
Deus. Felicidade toda particular, uma vez que seu único inimigo real
suará sangue, xingará labaredas, cuspirá venenos no intuito
de fenecer o jardim, ímpar em beleza, em harmonia. Se acaso a vida em
semelhantes moldes e suas insuportáveis cores multiplicar-se planeta
afora, terei trabalho de cão pela frente, dirá, iracundo, vomitando
vários ódios, seu inimigo a céu aberto. Desde que o mundo
é tempo.
Oras e oras alimentará as flores suas, indiferente ao chicotear do calor
desértico. Nenhuma evidência de exaustão. Por que? Alegria
descansa a alma, será? Finda a jardinagem, joelhos à terra de
areias. Mãos espalmadas. Agradecimentos. Murmúrios. Persignar-se-á.
Corpo e espírito, unos, cantarão porque a felicidade desconhece
abismos; antes, constrói pontes. Cantiga ancestral, dum tempo antes da
Terra brotar no universo. Antes de a primeira vida surgir.
Terreiro, degraus, empurrará a porta com o pé suavemente, cômodo
único. No interior do qual haverá grande mesa, treze cadeiras
pobres. Ainda sem a necessária arrumação para todos eles,
os convidados. O sorriso, um desenho nos lábios, vai traduzir com todas
as letras: céus... e ainda existe um mundo de minúcias gigantescas
por organizar... Comecemos logo, antes que eles cheguem para a reunião.
Ou pior: antes que Ele, o outro, tente impedir, inverter caminhos de modo eu
não consiga parlamentar com todos a tempo.
Percebendo no ar a atmosfera perfumada do dever cumprido em sua plenitude, arrumará
com carinho toalha de estopa sobre a mesa. Minutos rápidos, pronto o
cômodo humilde: num cesto, peixes; jarros em argila bruta, vinho tinto;
cálices grosseiros; a luminosidade parda do sol morrediço invadindo,
sonolento, como quem procura o leito, janela adentro e escorrendo da mesa para
sentar-se numa das cadeiras; o pão; a ânsia quase infantil em distribuir
sua alegria em doze pedaços mais ou menos iguais.
No outro lado da história, numa variante de estrada, não exatamente
longe dali, o festim terá chegado a termo. A fogueira mesma responsável
pela queima das carnes do cordeiro saboreado por todos, soltará, ao centro,
últimos suspiros. Enquanto crepitará alguma vida, ossos esparsos
por todo o terreno, como sementes que lavrador faz espalhar pretendendo colheita
vindoura. Poucas brasas. Barris imprestáveis porque esvaziados pelos
que estarão ébrios à última gota de lucidez. Serão
doze. Onze na mais absoluta inutilidade. Alguns no chão, poeirentos,
dormindo, porcos; outros tentando cantar ladainhas; uns tantos, abraçados
às árvores, chorando promessas de amor aos mandamentos, usando
palavras mal articuladas. Vômitos, risos sem controle, tentativas sem
êxito manterem-se homens de pé, dignos homens... Afinal, onde
o inadiável compromisso assumido?
Ele, bem antes da conversa particular com o traidor barato, um idiota de primeira
grandeza e muito útil aos planos, verá muito satisfeito o resultado
positivo de sua armadilha preparada com paciência há milênios.
Bem vestido, bem cheiroso, bem falante, vai gargalhar mudo para não se
denunciar e pôr tudo a perder. Bem sucedido o desvio no curso do rio da
história. Incisão cirúrgica. Jamais enxergarão forças
para encontrar outra vez o caminho e as palavras Daquele.
À sua frente, absolutamente sóbrio, ainda mastigando esganado
umas carnes do cordeiro, ele será o único dentre os amigos presentes
a saber que o desvio foi proposital, traçado em pergaminho. Cúmplice.
O olhar ganancioso em direção ao mentor intelectual da estratégia.
Olhar cobrando, pouco sutil, a parte combinada pelo seu ótimo desempenho
enquanto traidor. Mas qual! Nem mesmo cumprimentos formais ou elegantes: uma
ordem gritada, impaciente. Pouca conversa na troca de palavras entre ambos,
apenas o necessário. De certa forma, asco por aquela figura facilmente
comprável, como que em promoção. Terá em seu reino
assento privilegiado, é justo.
- As moedas prometidas, meu caríssimo. Faça bom proveito... enquanto
puder.
Séculos irão passear pela mesma janela por onde aquele sol havia.
Continuará esperando, sentado, os doze amigos do peito para conversa
da mais alta relevância. Até que o cansaço, inevitável,
se fará presente, mais um algoz. Então erguerá ao teto
do casebre os olhos como quem procurando o céu, como quem caçando
respostas. Rezará silêncios preocupados. Suspiros de resignação.
- Errei?! Mas em qual etapa do caminho?!...
Levantar-se-á, desânimo. Esquecida num dos quatro cantos, mesa.
Bacia com água limpa. Ainda que a canseira se faça imperatriz,
caminhará alguns passos, lavará as mãos tristes como quem
lamenta. Meia-volta, vai abrir a porta, com esperança envolta em névoa
espessa: vê-los no horizonte, vindo, ainda que atrasados. Mas a caminho.
Porém, coração sem maldades, não vai perceber detalhe
fundamental e sintomático: seu jardim, de queridas flores, estará
falecendo às pressas. Inexoravelmente.
- Bem... não há de ser nada. Atrasos acontecem... é humano.
Mais um pouco e estarão todos presentes. Todos os doze.
Em resposta a tal expectativa pensada em voz alta, ecoará no planeta
uma gargalhada tétrica que somente alguns darão ouvidos o bastante
para contaminarem a si e toda as suas descendências até o último
dia do século último. Mas, por felicidade, uns outros tantos não
sentirão nem mesmo uma risadinha brejeira, quanto mais uma zombaria catársica
em tom de réquiem. A História dará luz a mais um afluente,
filhote dum possível final feliz.