A Garganta da Serpente
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Breve história do pretérito do futuro

(Eduardo Selga)

Regará flores no jardim protegido por cerquinhas pintadas rosa defronte à choupana. Um felicíssimo na vida. Todos os dias, religiosamente, a emoção mesma se renovando, mais e mais convicta, e tanto mais sólida se considerarmos a quase absoluta esterilidade do chão. Arenoso chão. Apesar, pétalas coloridas e cheirosas e enormes. No conceito dos crédulos, milagre. Portanto, consequência, Deus. Felicidade toda particular, uma vez que seu único inimigo real suará sangue, xingará labaredas, cuspirá venenos no intuito de fenecer o jardim, ímpar em beleza, em harmonia. Se acaso a vida em semelhantes moldes e suas insuportáveis cores multiplicar-se planeta afora, terei trabalho de cão pela frente, dirá, iracundo, vomitando vários ódios, seu inimigo a céu aberto. Desde que o mundo é tempo.

Oras e oras alimentará as flores suas, indiferente ao chicotear do calor desértico. Nenhuma evidência de exaustão. Por que? Alegria descansa a alma, será? Finda a jardinagem, joelhos à terra de areias. Mãos espalmadas. Agradecimentos. Murmúrios. Persignar-se-á. Corpo e espírito, unos, cantarão porque a felicidade desconhece abismos; antes, constrói pontes. Cantiga ancestral, dum tempo antes da Terra brotar no universo. Antes de a primeira vida surgir.

Terreiro, degraus, empurrará a porta com o pé suavemente, cômodo único. No interior do qual haverá grande mesa, treze cadeiras pobres. Ainda sem a necessária arrumação para todos eles, os convidados. O sorriso, um desenho nos lábios, vai traduzir com todas as letras: céus... e ainda existe um mundo de minúcias gigantescas por organizar... Comecemos logo, antes que eles cheguem para a reunião. Ou pior: antes que Ele, o outro, tente impedir, inverter caminhos de modo eu não consiga parlamentar com todos a tempo.

Percebendo no ar a atmosfera perfumada do dever cumprido em sua plenitude, arrumará com carinho toalha de estopa sobre a mesa. Minutos rápidos, pronto o cômodo humilde: num cesto, peixes; jarros em argila bruta, vinho tinto; cálices grosseiros; a luminosidade parda do sol morrediço invadindo, sonolento, como quem procura o leito, janela adentro e escorrendo da mesa para sentar-se numa das cadeiras; o pão; a ânsia quase infantil em distribuir sua alegria em doze pedaços mais ou menos iguais.

No outro lado da história, numa variante de estrada, não exatamente longe dali, o festim terá chegado a termo. A fogueira mesma responsável pela queima das carnes do cordeiro saboreado por todos, soltará, ao centro, últimos suspiros. Enquanto crepitará alguma vida, ossos esparsos por todo o terreno, como sementes que lavrador faz espalhar pretendendo colheita vindoura. Poucas brasas. Barris imprestáveis porque esvaziados pelos que estarão ébrios à última gota de lucidez. Serão doze. Onze na mais absoluta inutilidade. Alguns no chão, poeirentos, dormindo, porcos; outros tentando cantar ladainhas; uns tantos, abraçados às árvores, chorando promessas de amor aos mandamentos, usando palavras mal articuladas. Vômitos, risos sem controle, tentativas sem êxito manterem-se homens de pé, dignos homens... Afinal, onde o inadiável compromisso assumido?

Ele, bem antes da conversa particular com o traidor barato, um idiota de primeira grandeza e muito útil aos planos, verá muito satisfeito o resultado positivo de sua armadilha preparada com paciência há milênios. Bem vestido, bem cheiroso, bem falante, vai gargalhar mudo para não se denunciar e pôr tudo a perder. Bem sucedido o desvio no curso do rio da história. Incisão cirúrgica. Jamais enxergarão forças para encontrar outra vez o caminho e as palavras Daquele.

À sua frente, absolutamente sóbrio, ainda mastigando esganado umas carnes do cordeiro, ele será o único dentre os amigos presentes a saber que o desvio foi proposital, traçado em pergaminho. Cúmplice. O olhar ganancioso em direção ao mentor intelectual da estratégia. Olhar cobrando, pouco sutil, a parte combinada pelo seu ótimo desempenho enquanto traidor. Mas qual! Nem mesmo cumprimentos formais ou elegantes: uma ordem gritada, impaciente. Pouca conversa na troca de palavras entre ambos, apenas o necessário. De certa forma, asco por aquela figura facilmente comprável, como que em promoção. Terá em seu reino assento privilegiado, é justo.

- As moedas prometidas, meu caríssimo. Faça bom proveito... enquanto puder.

Séculos irão passear pela mesma janela por onde aquele sol havia. Continuará esperando, sentado, os doze amigos do peito para conversa da mais alta relevância. Até que o cansaço, inevitável, se fará presente, mais um algoz. Então erguerá ao teto do casebre os olhos como quem procurando o céu, como quem caçando respostas. Rezará silêncios preocupados. Suspiros de resignação.

- Errei?! Mas em qual etapa do caminho?!...

Levantar-se-á, desânimo. Esquecida num dos quatro cantos, mesa. Bacia com água limpa. Ainda que a canseira se faça imperatriz, caminhará alguns passos, lavará as mãos tristes como quem lamenta. Meia-volta, vai abrir a porta, com esperança envolta em névoa espessa: vê-los no horizonte, vindo, ainda que atrasados. Mas a caminho. Porém, coração sem maldades, não vai perceber detalhe fundamental e sintomático: seu jardim, de queridas flores, estará falecendo às pressas. Inexoravelmente.

- Bem... não há de ser nada. Atrasos acontecem... é humano. Mais um pouco e estarão todos presentes. Todos os doze.

Em resposta a tal expectativa pensada em voz alta, ecoará no planeta uma gargalhada tétrica que somente alguns darão ouvidos o bastante para contaminarem a si e toda as suas descendências até o último dia do século último. Mas, por felicidade, uns outros tantos não sentirão nem mesmo uma risadinha brejeira, quanto mais uma zombaria catársica em tom de réquiem. A História dará luz a mais um afluente, filhote dum possível final feliz.

  • Publicado em: 11/03/2004
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