A Garganta da Serpente
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O talentosíssimo diretor e o medíocre atorzinho

(Eduardo Selga)

- Oxalá não se acabem rapidamente as últimas velas do único castiçal que sobrou e ilumina, no limite que suas forças permitem, esta casa. Este assombramento. O lume é raquítico, mas consegue espantar de mim boa parte do escuro que tenho deles. Às vezes quatro, às vezes cinco... Eles. Depende muito da noite, a quantidade. Mas a lua não é a culpada pelas aparições, às vezes sequer se desnuda no céu. É o vento que as primeiras horas de sombra trazem consigo e permanecem no interior da escuridão. Quando se aproxima intenso, denso, transformando-se rapidamente naquela ventania que... Espera: qualquer farelo de holofote lilás aqui viria a propósito, um ambiente mais carregado... Naquela ventania que percorre diversas vezes o entorno da casa, redemoinho, assovio saci, descabela as palmeiras no terreiro, empresta asas noturnas às flores do algodão... Quando é assim um quinto aparece junto aos outros fantasmas. Uma família, decerto. Ou melhor: presumo. De qualquer modo, a friagem me diz na pele que eles, daqui a pouco, outra vez. Tão cansativos. Melhor me levantar da namoradeira, perambulante, cigano dum lado para o outro dentro de casa, pensar noutras coisas. Alguma possível bela paisagem interior ainda haverá em mim? Olha, sou um intérprete que assimila muito facilmente a atmosfera do personagem, e sei que ela está pedindo qualquer bocado a mais de luz neste ponto. Calma, tudo bem... é apenas uma ideia... Sigamos: talvez minha paisagem interior não seja nenhuma beleza panorâmica, apenas detalhes menos feios aqui e ali. Eis o motivo pelo qual poucos deles tentam um diálogo maior comigo neste velho casarão, acredito. Na verdade casebre, uma vez que o habitável está reduzido à sala e ao meu quarto, logo ali. Tudo o mais são mobílias doentes, baratas, abandono, teias, as tábuas banguelas do piso. Frequento o resto porque inevitável, necessito preparar meu alimento mal temperado e comê-lo no mais das vezes sem vontade e ir ao banheiro parir os excrementos. E como existem restos em mim!... Apesar do frio e dum certo medo, melhor permanecer aqui, esperando alguma conversa mais longa entre a minha pessoa e os fantasmas que habitam em nós dois, a casa e eu. Engraçado... O mais eventual dentre eles, o que lança ares patriarcais, é o único com quem é possível trocar bem mais que meia dúzia de palavras. Aborrecidas, sempre. Como um velho bordão de videoteipe, mas ao menos a sozinhez me dá um descanso. Insiste em arrogar-se, num risinho que mal lhe escapa dos lábios, o soberano desta antiga casa-grande e dos oitenta e três escravos que se amontoavam na senzala, hoje esqueleto, ontem navio negreiro ancorado. Sinhô Castro Condoreira Alves Hugoano, seu humilde criado. Crioulos fétidos, feiticeiros, filhos do Capeta! Desculpe... não se assuste com meus rompantes. Mas pode acreditar no que acabei de lhe dizer. Nalgumas escuridões sacudidas pelo noroeste, como a de hoje, na boca da senzala ou próximos ao canavial, eram homens e mulheres horrendos a dançar em círculos, velas, umas palavras invocando um Cão do Subterrâneo cujo nome era... era... se me lembro bem... Oxalá!

Cólera. Após ladrar sua raiva, inaceitável a petulância deste unzinho, cuja tarefa é apenas ceder corpo, vida e verossimilhança ao personagem que ainda não se livrou da mortalha que é o papel escrito, quinze minutos de pausa. Sua vontade, num primeiro movimento após o grito, foi discursar novamente quem o diretor, quem o intérprete do monólogo. Mas... talvez melhor o silêncio por enquanto, este canastrão está me desgastando muito. Agora indiferença. É caso perdido este rapaz, dobra em partes o roteiro, logo em seguida desfaz a ameaça de origami. Amarrota levemente enquanto pensa. Como se não o quisesse mais o ofício, deixa o papel cair no piso vestido avermelhado, volta a sentar-se. Agora suspiro. Donde está jorrando tamanha angústia? Há décadas isto não me invadia!... Uma das pernas dos óculos por alguns minutos presa aos incisivos, o olhar morto entornado nas palavras sem foco do roteiro indigente, no chão. Agora tédio. A boca semissorri preguiçosa ao supor a ideia surreal que pousa breve: a permanecer desfalecido no carpete, emaranhado como um feto encolhido e malquisto, o texto apodrecerá. Uma espécie de aborto. Ajeita os óculos, apanha e abre as laudas, os olhos esquadrinham sem ler. Mas, levianos, tropeçam no substantivo "incompetência", fala do personagem. Agora sobressalto. Vê nitidamente seu mundinho, colorido e sólido como uma bolha de sabão, implodir e escoar. Larga-se à poltrona, desgosto. A ferida interna é bactéria que entra pelas retinas letradas e monta acampamento e rasga sua vida cheia de certezas tecidas em pano ordinário.

- Vamos recomeçar, senhor diretor?

Finge desouvir a ironia pouco sutil que a frase carrega. Coitado deste imbecil... Não se apercebeu ainda a sutileza, esta arte, é objeto para muito poucos? Os olhos fixos no candelabro suspenso e apagado no teto barroco, as pernas abertas e abandonadas, assiste a certos episódios de seu tempo mais antigo retornarem à memória, navegando apressadíssimos para o presente, como se fosse cais confiável. Meu pretérito ainda não entendeu o quanto sou mar incerto, ora manso, ora bravio. Quase chora, saqueado por seus pensamentos piratas. E se não permite as lágrimas descerem, encachoeiradas, é porque não sabe, nos estratos mais profundos, quem ele é. Motivo pelo qual a ideia de chorar, mesmo em segredo, o envergonha. Em que me fui transformando, imperceptivelmente, aos poucos? Finge não saber, eu todo sou uma mentira. Conhece muito bem o espírito e a personalidade que habitam seu corpo, mas os fatos incomodam. Porque desmentem seu umbigo. Criou para si mesmo, e para iludir o meio artístico, ao longo dos anos, um personagem que do criador tem pouco. Embora verossímil o bastante para dificilmente manifestações culturais aceitas pela elite para comprar seu bilhete na primeira classe. Como se fosse um grande artista. Cansado de sua interpretação chinfrim, seu pseudointelectualismo para as câmeras, seu falso engajamento político por responsabilidade com o meio ambiente e justiça social. Meses atrás, inclusive, adotei um crioulinho catarrento. Como algumas celebridades europeias e norte-americanas. Foi grande a audiência. E o melhor: o salário da fulaninha, babá responsável por cuidar e manter a criatura distante de mim quando as câmeras também estiverem, é nulo comparado aos lucros midiáticos advindos dessa estratégia publicitária.

- Vamos recomeçar, senhor diretor?

Outra vez, após anos e anos, o nó na garganta: vomitar tudo e manter-se em paz com sua consciência, sua mediocridade inata. Também esse efeito colateral nos primeiros meses em que resolveu interpretar na vida alguém socialmente valorizado para não ser mais um anônimo no tumulto. Sentia-se especialíssimo. Hoje, porém, como noutras vezes, avalia-se ridículo até às vísceras, seu paiol de clichês muito perfeitamente adequados a cada situação. Porque a poesia de T.S.Eliot; porque o legado filosófico aristotélico nos ensina sem margens para dúvidas; mas você há de aquiescer comigo quando pleiteio jamais podemos olvidar: o pós-moderno não se mostra visível apenas nas artes: existe todo um arcabouço procedimental que age no mundo globalizado... Não consegue fugir à analogia que se apodera, monta acampamento, e o envergonha: parece aquelas mocinhas, idiotizadas pela vaidade, que vencem concursos de miss e respondem, afetação, caras e bocas típicas de atriz ruim, que o melhor livro jamais lido é sem dúvida O pequeno príncipe. Pesa. Pensa. Abandonar a máscara teatral que faz dele um eterno sorriso perante os outros significa ser feliz verdadeiramente, é quase certo. O eu desnudado virá à luz, talvez de início ainda surpreso com a liberdade, tantos anos respirando o sufocamento. Porém, fazer isso equivale a renunciar aos confetes, aos brilhos da mídia, às entrevistas arranjadas...

- Vamos recomeçar, senhor diretor?

Volta à postura que alguém em sua função deve ter perante seu elenco ou mesmo orientando um único intérprete. Fixa muito longamente, e com disfarçado pouco caso, o olhar naquele atorzinho beócio, feiticeiro aprendiz que se julga preparadíssimo para substituí-lo no comando do caldeirão. A parvoíce, quando notória, deveria pagar oneroso tributo à intelligenzia nacional. Da qual faço parte, é lógico. Súbito, gargalha num crescendo, decibéis nas alturas, tentando conceber mentalmente encenação na qual haveria enorme fila de néscios a pagar imposto a ele, virtuosíssimo artista.

- Está tudo bem com o senhor, diretor?

- Comigo? Na santa paz, meu jovem. Façamos assim: vou à cafeteria saborear um capuccino mentolado, enquanto você retoma o ensaio desde a primeira frase. Pode até inserir seus muitos cacos, requerer ao iluminador mais ou menos tom dessa ou daquela luz. Finge-se diretor do espetáculo, querido. Se quiser alterar o nome do fantasma, à vontade; se preferir excluir todo o texto e converter o monólogo num improviso genial, tanto se me dá. Se o autor der faniquito, amanso depois. Mas quando a reportagem do TV Celebridade chegar corre à cafeteria, me chama. A mídia não pode esperar. Tampouco meu brilhantismo, sempre ansioso por conceder entrevistas.

Dá as costas, sai. Consciência tranquila. O melhor é seguir interpretando para o mundo artístico o personagem amplamente aceito, o artista notável. Afinal, não sou o único medíocre em cena.

  • Publicado em: 07/10/2009
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