A Garganta da Serpente
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Falange Branca de Neve

(Eduardo Selga)

"A humanidade tem uma moral
dupla: uma que prega e não pratica,
outra que pratica mas não prega.
"
(Bretrand Russell)

A sala do apartamento é um escândalo de metros quadrados, como é conveniente a toda cobertura defronte ao mar. Duas janelas abertas para a noite permitem a invasão de imagens da madrugada sem luz que nasceu há trinta minutos atrás. Também entra a brisa fria, feminina porque exala perfumes marinhos do Floresta Encantada, balneário logo abaixo. Cortinas pêssego dançam leves, são refletidas pelo espelho retangular e jateado que ocupa a maior parede do cômodo. Pintores célebres e abstratos dependurados aqui e ali. Num dos cantos, um bar jacarandá aguarda sonolento a hora em que, com toda certeza, seus uísques e conhaques e outros álcoois coloridos serão utilizados por eles. Se todos, sete (ela não bebe, apenas dá ordens). No vértice diagonal ao bar, o requinte dos moradores (um quase papai, uma quase mamãe e uma garotinha de vinte e três anos, mimada ao extremo e cheia de vontades), o requinte dos moradores mostra seu gesto máximo: um poste metálico do início do século vinte, sobre o qual um lampião apagado e saudoso espera inutilmente a visita do acendedor. Nem supõe que o ofício já inexiste. Tudo é silêncio, cheiro de assepsia, algumas tulipas vermelhas sobre a mesa de centro muito mentirosas porque moldadas em porcelana.

Ela parece fazer parte da decoração, apenas mais um objeto na sala, tal a ausência de movimentos que demostrem o que de fato está sentindo: impaciência. Sequer busca no pulso o relógio para confirmar as horas, confirmar o atraso dos meninos, membros que não podem faltar à reunião. Apenas observa, olhos como fossem vidro, sentada no sofá, o ambiente confortável em que sempre viveu. Enquanto mantém confinada nos porões do seu íntimo a quase transbordante cólera pela falta de pontualidade dos amiguinhos. Talvez a hora de eliminar alguns tenha chegado. Eliminar e substituir. Parecem querer divertir-se com a Luta, um menosprezo à Bandeira! E moram tão perto... todos neste mesmo condomínio fechado!... A justificativa terá que ser muito boa. Providências, providências imediatas. Ainda sublinhei não perdessem a maldita hora. Aproveitar ao máximo esta madrugada, especialmente favorável à reunião, já que papai e mamãe saíram. Cada qual para sua festa. Festa... só mesmo se fosse! Festim, na verdade! Ele numa orgia sexual, ela em outra. É até cômico observar o talento com que mentem sem fazer força, juram amor e fidelidade, fingem acreditar nas palavras interpretadas. E sabem que há muito eu conheço em detalhes os detalhes.

Os três meninos entram, cumprimentos ritualísticos usando cognomes, palavras incompreensíveis a quem não do grupo, toucas que permitem visibilidade apenas aos olhos azuis ou verdes e aos lábios finos. Apesar da relativa diferença de altura entre eles, nenhum tem idade superior a treze anos. Cada qual, obedecendo ao comando dela, retira do bolso (jaquetas sintéticas, padronizadas, lustrosas, negras) bandeira com emblemas estranhos, amarram-na em torno do pescoço como se fosse a capa do Super-Homem. Só então ela abandona o sofá em que estava, olha-os fixa e demoradamente como quem pretende flagrar uma irregularidade, ordena sentem-se em círculo.

- Mãos dadas! Esqueceram?

- Desculpe Princesa Branca...

- Ao inferno com tuas desculpas, Grumpy! A Falange não pode mais suportar tamanha anarquia interna. Nosso cronograma de trabalho está atrasado por causa disso. Com toda a certeza alguns de vocês estão menosprezando a Causa. Onde estão os outros quatro, Bashful?

- Não vieram.

- Eu estou vendo, imbecilidade! Quero as causas!

- Inventaram motivos os mais diversos. Mas... mentira: é medo do castigo, Princesa.

- Ah... é medo? Tome este trinta e oito. Amanhã quero vê-los mortos.

- Mas Princesa Branca...

- Eu ainda não te chamei na conversa, Dopey! Coisa irritante, menino! Vamos às tarefas, a madrugada está alta demais para o meu gosto. Agora sim, Dopey, solta a língua. E... digamos eu tenha esquecido... Qual a tarefa de hoje, mesmo?

- Ir à Praça Brasileira... aqueles pobres que dormem lá.

- Perfeito! Mas parece que vejo uma certa... digamos... piedade no tom de tuas palavras. Mas por enquanto prefiro acreditar ser mera impressão minha. Afinal, é sabido por todos nós, esse tipo de sentimento pertence aos fracos, aos covardes. E essas duas aberrações da natureza humana a Falange não toleramos. Além disso, espero ninguém perca de vista a majestade implícita na tarefa que nos foi confiada. É um trabalho detergente: o que faremos hoje, extensão de outras madrugadas, será a desinfectar o bairro onde moramos, eliminando aqueles crioulos fedorentos que tomaram conta da nossa pracinha, contaminam nossos brinquedos. São os últimos por aqui. Eles mortos, entregues ao inferno de onde foram escarrados, voltaremos a conviver apenas com gente de estirpe, gente branca como a neve e portanto limpa. Depois partiremos para um outro setor, não muito distante, dar continuidade à louvável incumbência da Falange. E sem incompetências, como o que ocorreu na última assepsia: tragam-me a beiçorra de cada corpo, para minha coleção. Os litros com gasolina e os grilhões estão na garagem, sob a vigilância do porteiro, aquele escória que por qualquer esmola de arroz e carne se vende. Tanto melhor. Mas um pouco de estilo ao se corromper não lhe faria mal. E, por favor, parem de esquecer a sequência correta quando da execução da tarefa. Primeiro passo: ferros unindo pés e mãos; segundo: cortar os lábios, para mim; terceiro: mordaça bem feita; quarto: fogaréu. Difícil? À distância estarei observando. Quero uma fogueira bem bonita com aqueles corpos podres de negros, como fosse festa junina. Terminamos a reunião. Certamente ninguém vai fazer pergunta estúpida ou considerações descabidas. Levantem-se, bebam o que quiserem. Alguém estiver precisando do pó, está escondido atrás do uísque. Mas sejam rápidos que a madrugada corre.

- Princesa Branca...

- Pronto! Questionamento boçal a caminho! Já pensou bem antes de fazer a pergunta, Dopey?

- Quando o Príncipe Encantado reunirá conosco?

- Nosso líder maior no Brasil e protetor está trabalhando muito no Congresso Nacional. Provavelmente estaremos com ele no início do próximo mês. Mas a pergunta... por quê?

- Isso é bom... Teremos tempo.

- Tempo, Grumpy? Queiram fazer-me o favor de dizerem coisa com coisa!

- É, sim. Tempo. Para ocultarmos bem o teu cadáver.

- Muito engraçado, Bashful, realmente hilário. Até parece que meninos como vocês vão poder comigo, muito mais velha, treinada para exercer o comando da Falange Branca de Neve... Conte outra piada, mas seja rápido que estou sem paciência.

- Seremos bem ligeiros. Veja isto.

Janelas e cortinas e brisas e espelho e quadros e bar e lampião a gás e tulipas. Todas as coisas que constituem a sala testemunham uma cena macabra, impossível de ser narrada sem que se perca a fé no ser humano. Ouviriam também um urro animalesco, bestial, mas a mordaça...

(22/06/2004)

  • Publicado em: 13/09/2004
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