Há dias em que envelheço subitamente. Seja pela asfixia que o
mau humor produz quando consegue chance de me atacar, impiedoso, seja pela desesperança
que sinto em relação à raça humana, uma espécie
de experiência que me parece condenada ao fracasso por algum talvez erro
no cálculo estrutural. Deus me perdoe. Ou ainda quando alguém,
julgando-me pára-raios o bastante para suas frustrações
e derrotas, dirige-se a mim com palavras pontiagudas e desnecessárias.
Sinto-me em tais horas um atropelado numa rodovia escura. Então envelheço
subitamente, há dias. E envelhecido permaneceria sempre, até não
sei quando, acaso deixasse de tomar alguns remédios. O principal, a que
apenas às vezes consigo acesso (essa vida que nos empurram goela abaixo
é amarga demais para permitir frequência maior), o principal,
que tem o talhe de apenas surtir efeito quando ministrado durante horas seguidas,
o principal é esconder-me da realidade no jardim botânico. Onde
me esforço por esvaziar os pensamentos e deslembrar das pequenas vilanias
diárias que a muitos causa um prazer íntimo, mórbido, inconfessável.
Era domingo aquele dia, e, apesar das longas horas passeando à beira
dos lagos tranquilos da minha terapia sempre que possível semanal,
estava espinhoso absorver o impacto do que ocorrera na sexta-feira à
tarde, na Secretaria. Sem dúvida, há umas gentes estranhas habitando
este mundo. Talvez subespécie do Homem, mutação genética.
Carregam um temperamento que externamente demonstra equilíbrio, bom senso;
sorrisos na hora e na intensidade adequadas. Contudo, odeiam-se. E ao mundo
inteiro. Ruminam todo o santo dia um rancor adestrado a duras penas. Sempre
que podem, amabilidades e palavras muito bem escolhidas, envenenam almas: dúvidas
sutis, aparentemente fundamentadas, no espíritos desguarnecidos. E, pior,
com o que eu também não consigo atinar, uma felicidade interior
gigantesca quando veem "o circo pegar fogo", principalmente
quando responsáveis pelo fósforo ter sido aceso. Há algo
de furúnculo, de cancerígeno nessa enfermidade contemporânea.
Parecem o torturador que se delicia ao infligir sofrimento à sua vítima
e atinge o Nirvana só em ouvir os urros lancinantes. Perspicazes, não
atacam inadvertidamente, deixando o impulso emocional tomar conta das ações:
escolhem a presa com calma e aguardam o instante exato para a mordedura certeira.
Panteras ocultas nas folhagens, olhos atentos, nenhum movimento inútil.
Por que meu chefe tinha que me lembrar, usando de uma sutileza cruel e desumana,
justamente quando estava envolvido por um ótimo estado de humor, que
nunca fui capaz de conquistar um coração feminino, sensual? Ele
conhece minhas carências afetivas, onde a necessidade de sapatear sobre
a ferida? Mas... o orgasmo de me ver hemorrágico sempre foi para ele
sentimento imperador.
A tarde dava-me adeus quando resolvi é preciso ir de volta para casa
ainda que eu me desligue do mundo ao alimentar, pipocas e biscoitos, os marrecos
do lago. Sentia-me um pouco menos sangrando para o retorno ao abatedouro sem
fim que é a vida real. Um ligeiro desconforto, porém nada parecido
com a carcaça que eu era desde sexta-feira à tarde. Quando dei
conta do tempo, da vida, ela já estava sentada ao meu lado, encarando-me
fixa e constrangedoramente. Surgira não sei de onde. Quem aquela moça,
pensei com meu soslaio desconfiado. E o coração pateta, virgem,
já estava invadido por ideias dum amor talvez quem sabe, sem as
malícias da carne porque inocente. Alguma hesitação houve
a princípio, interrogações a respeito duma possível
inconveniência. Entretanto, decidido a conhece-la. Virei-me, tão
cheio de dedos quanto possível, e pude perceber melhor a jovem: uma inexpressividade
no rosto cujos traços algo andróginos; vida no quintal dos vinte
anos; vestido inteiriço e florido com girassóis exagerados, vermelhos;
pés descalços, maria-chiquinha, ramo de alfazema numa das orelhas;
sobre o colo, uma caixa de pequenas dimensões.
Não foi à toa que sentei ao lado dele com minhas lembranças
encarceradas no caixãozinho. Eu sabia, também frequentava
regularmente o jardim botânico, sabia a que espécie de solidão
o espírito dele estava preso. Conhecia de priscas eras aquele desconforto
eterno que é viver apenas para aguardar a visita da morte. E de alguma
forma queria ser-lhe ombro, amiga. Não! Mentira, mais uma das minhas!
Pretendia mesmo era parabenizá-lo por conseguir, melhor do que eu, sobreviver
razoavelmente bem às flechas e estilingues da vida, dizer-lhe sou caso
muito pior e sem remédio possível. Afinal, diante dele estava
uma colecionadora de mágoas. Todas comigo (e eu com ele), uma a uma,
no pequeno esquife. Catalogadas. Com certidão de nascimento, mas nenhuma
com a de óbito. Inesquecíveis. Meu senhor, tenha bondade desculpar
a petulância, sou aparentemente muito mais jovem e talvez não devesse
me arrogar conselheira, mas por experiência própria digo não
se deixe balear no coração por essa vidinha. Abrir a guarda foi
o que fiz há dez anos atrás e eis o resultado: estou morta. Vê?
Aqui, peito e féretro, minhas mágoas insepultas. Quando as primeiras
nasceram, eu não me permitia enterrá-las; hoje, não consigo.
Cada uma das inúmeras pulsa latente bem aqui dentro de mim e do caixão,
nódoa indelével. Como (já bebeu?) cachaça: fazem
mal, fazem um bem... Maravilha de impossível que é viver sem elas,
embriago-me à inconsciência. E vomito com prazer a dose ainda não
metabolizada do meu ódio. Porém, ele retorna mais corrosivo. Entende?
Adoro sentir ódio. É um furor de sangues voando de pressa nas
veias, um conseguir enxergar o poço de cada alma fulaninha que se aproxima
de mim. É péssimo, meu senhor. Mas é ótimo. Pareço
ter neurônios estropiados, seu pensamento está com essas palavras
bem assim agora. Muito antes fosse! Não teria lucidez, ótimo!
Minha vida um labirinto sem luz e, portanto, sem nenhum caminho a percorrer.
Assim, não me perderia, como tantas vezes. Ah, Deus... já fiz
pedidos, desfiei rosários, subi de joelhos várias vezes as ladeiras
íngremes que existem dentro de mim... está esperando mais o quê?!
Enlouqueça-me, duma vez por todas! E agora... tambores, rufem! Confetes
coloridos e fogos de artifício explodindo no céu! Vou abrir meu
caixão! Aqui, um pai que só fazia humilhar-me perante quem fosse;
ali, o único homem da minha vida. Sugou-me a vitalidade o quanto pôde.
Depois, eu bagaço, foi-se embora sorrindo como se nada. Mais embaixo
há outros espécimes de mágoas, mais ou menos doloridas,
porém considero que minha coleção ainda está bastante
incompleta. Estou à procura de alguém diverso das tantas pessoas
que já me mataram aos poucos, e que consiga ferir-me na alma de maneira
original, para enriquecer meu caixãozinho. Quase tenho certeza de que
o senhor entende.Um sofrimento criativo para sentirmos uma dor de qualidade?
Nada melhor. Gostou da coleção?
Difícil mensurar quanto tempo fiquei observando a conversa insandecida
daquela jovem, Pandora é minha graça, que insistia em mostrar-me
uma caixinha de música como fosse um caixão em miniatura, onde
estariam guardadas todas as mágoas de sua vida. Senti vontade dizer algo,
procure auxílio psiquiátrico, mas... havia um quê de concreto
em tanto desvario. Seu rosto sem nenhuma expressão definida e o corpo
sem gestos apesar do palavreado infinito causava-me... hipnose, não sei.
Ou calafrio? Mudo, consenti meu olhar se afogasse no espelho do lago e me vieram
imagens desagradáveis, algumas até julgava enterradas, pessoas
várias que me machucaram em algum instante da infância, da juventude,
da maturidade. Sequência sem cronologia. Emergiram de repente, como
se eu já não as tivesse perdoado. Redemoinho que espalha por toda
a rosa-dos-ventos as roupas do varal.Voltei meu rosto para a moça, e
cadê ela? Evaporou. No assento, uma caixinha semelhante àquela,
porém manufaturada em marfim e pedrarias. Meu nome inscrito?! Mas como
ela poderia saber meu nome? Abri. Curiosidade, dizem, mata. Lá no fundo,
abismo escuríssimo, o rosto salafrário do meu chefe, o sorriso
cínico, a maledicência. À flor-da-pele brotaram para meu
assombro e para minha delícia, a antipatia, a mágoa, a ira, e
o ódio. Nunca em minha vida gostei tanto de experimentar aquele sabor
na boca, sem muita definição através das palavras. Algo
como sangue quente, grito de dor inimigo, entranhas expostas. Desejo e dúvida:
fechar e não fechar a caixa. Amanhã, segunda-feira... Outro dia.
Ele que me aguardasse.
Aquele domingo foi embora logo que, vencendo a mim mesmo, atirei no lago o objeto
que parecia querer me serpentear, fazer de mim um enlouquecido por tantos ressentimentos
venenosos. E ainda hoje há dias em que envelheço subitamente.
É quando me pergunto por quais caminhos andará a loucura de Pandora.
(12/07/2004)