Talvez muitos estilhaços de tempo já tenham se corroído,
e da recordação tenha sobrado apenas alguma carcaça. Entretanto,
meu espírito celebra. E se lembra, nitidez, das imagens mais combustíveis
para ele. O que havia sobrado, além da morte que se alastrara, lâmina
rasgando casas e cidades inteiras com suas gentes, mundo enquanto necrópole,
o que havia sobrado eram os ratos. Superpopulação sem predadores
ou vigilâncias sanitárias à vista. Muitas baratas também,
é verdade. Os insetos, no entanto, sem a música-morte dos murídeos
e distantes do fascínio deles. Risonhos. Crianças a brincar de
esconde-esconde, os ratos. As ruínas e o podre formavam uma bela Disneylândia.
E eu na plateia, palmas e assovios travestidos de sorrisos, ambicionava
mais. Na verdade, que o mundo morresse. Para meu deleite. Os chiados dos ratos-pretos
eram gargalhadas, oportuna trilha sonora em celebração à
conquista da Terra, após séculos de guerra surda contra a espécie
humana. Como crioulinhos vadios, sempre muito solidários entre si, os
bichos sussurravam um na orelha do outro a melhor estratégia para roubar
as guloseimas expostas nos asfaltos sem sofrer represálias. Entretanto,
impossível ocorresse qualquer censura: todo o mundo, quando não
morto, agonizando. E os poucos vivos, precários. Daí nenhum ânimo
bastante para reagir, enxotar. Mesmo uma pedrada incerta, ela não aconteceria.
Alguns, atrevidos porque experientes, bem o sabiam. Viva! Oba! Vamos nos fartar,
canalhada! Brincadeiras em bandos, globos oculares da multidão cadáver
faziam as vezes de bolinhas de gude. Outros, espíritos antes aventureiros
que brincalhões, regozijavam-se ao entrar pelas bocas roídas e
sem dentes, traqueias abaixo como tobogãs. Rega-bofe em meio às
vísceras, por certo. Saíam, felizes, arrombando cús, bocados
de intestinos e outros filés presos às bocas.
Do ângulo em que estávamos os três, no interior da ruína
dominada após assassinarmos a vagabunda (como toda mulher prenha só
pode ser), a vagabunda que fizera daqueles restos algum abrigo para si e para
a lombriga humana habitante de sua barriga inchada, da ruína em que estávamos,
a visão do maravilhoso Flagelo Terrestre era singular.
Hoje, rememorando, tenho surtos de risos. Morreu à toa, a putinha. Mas...
quis valorizar o produto e não soube fazer negócio... Porque o
Sacrossanto Casamento, porque o Céu, porque a Maternidade... Tudo o que
eu propunha era muito simples para qualquer mulherzinha com estrogênio
mínimo percorrendo o corpo: sexo. Transbordantemente sexo. Mas não
de qualquer jeito, está certo pode vir quando muito bem entender e se
lambuzar trepando em mim e pôr para fora isso tudo o que você tem
represado aí. Não... gratuito, não... Afinal, o mundo nos
indicava estar em seus últimos gemidos. Chegaríamos à próxima
lua minguante? Difícil, naqueles dias. A morte arreganhava suas cáries
para nós. Eu desejava e merecia o sexo trilhando o roteiro que desde
garoto me disseram gostoso: a mulher teatraliza algum obstáculo, faz
de conta ainda não é a hora meu bem, mas sempre o final feliz.
Esqueceu, portanto, a inteligência. Não precisava ter ratificado
a própria morte. Burrice! É possível não tenha visto
no meu corpo e comportamento rijos a virgindade? Nunca antes havia conhecido
carnes e secreções e gemidos duma mulher real. Exausto de tanta
mulher-papel, tanta mulher-fotograma! Um corpo feminino e sólido, e líquido
de tão macio, urgentemente! Então propus: a ruína já
nos pertence; você até pode continuar; eu quero estuprá-la
tantas vezes por dia, todos os dias. Desde que sua vagina grite, dor intolerável.
Não, porra! Que mané acordo! Necessário você reaja,
proteste, mamãe socorro, resista! Mulherzinha não é de
fato mulher, nunca lhe ensinaram? Serenidade, rapaz... Violência causará
aborto e eu quero o filho do meu esposo morto. Com qual intuito, vagabunda?
Se vai alimentar os ratos minutos após sair de sua caverna quentinha,
úmida... O calor dos belíssimos fogaréus (logo ali... vê?)
só alguns adultos aguentamos, idiota, jamais um excremento feito
criança! Aparvalhada! E pediu. E chorou. Por favor... basta algum cuidado,
minha barriga... eu consinto.
Mas eu pretendia muito sofrimento àquele rosto ordinário, feminino.
Assassinamos. Não: eu mesmo matei, quase sem cúmplices. Porque
os dois velhinhos muito incompetentes na tarefa a que se dispuseram de bom grado
após umas ordens minhas, bem gritadas: submetê-la. Enterrei devagar
(ainda hoje eu orgasmo quando a memória acorda) o punhal naquela barriga
gestante. Abri. Corte oblíquo, como uma boca de palhaço sorrindo.
Cesariana amadora. E divertida. Prazeroso ouvir sua gritaria, ela desmoronada
e a vida (essa praga a ser extinta) sussurrando tchau, estrebuchões.
Ma-ra-vi-lha! Melhor ainda porque, ao esfregar meu piru até então
virgem naquele mar vermelho que nascia do corpo, ereção absurdamente
intensa. Como jamais. Daí aconteceu: entrei e saí e entrei e saí,
ela queria gritar por causa daquela invasão de domicílio, mas
o ferimento ensurdecia-lhe a voz, transformada em gemidos roucos e agonizantes.
Morrendo. No rosto o desespero, as feições de mãe que perde
o filho. Lágrimas, reticências... murmúrios incompreensíveis.
Mas era ódio, eu conheço. Olhos abertos, morreu tão bonita
a mulher tão feia... Eu encravado nela. Poucas vezes assisti a espetáculo
tão... Gozei! Gozei! Dilacerantemente. Pela primeira e única vez,
até hoje. O corpo permaneceu ali, putrefazendo-se à minha disposição,
para todas as vezes em que eu sentisse necessidade de acalmar a fome infinita
que me mastigava.
Com as mãos e ferramentas improvisadas capinamos algum espaço.
Bocados de paredes, vergalhões, restos. Estivéssemos aberto clareira
em floresta profunda, arriamos ali nosso cansaço de andanças e
mais andanças por metrópoles e cidadelas. Mortas, em sua maioria;
outras, últimos suspiros. Os velhos inúteis, que até então
morriam de pânico frente à morte vizinha, sossegaram, apesar de
somente duas paredes na vertical e meia laje, que um dia foi teto, ameaçando
desabamento.
À minha frente, cinema, o mundo prestes a sair de cartaz. Sem paredes
a obstacular o cenário, a fotografia do extermínio. Avenidas rasgadas
como se a pavimentação fosse chita ordinária, repletas
de bocas às escâncaras engolindo, famélicas, construções
vizinhas. Aos poucos, crocodilo que caminha sorrateiro para devorar sua vítima,
as bocarras aumentavam até que prédios e fulanos escorregassem.
Muitos indivíduos, no entanto, precipitados, satisfaziam o apetite da
Terra lançando-se às profundezas meio a rugidos de dor. Incendiados
e em desespero. Xingavam a Deus antes de sumirem crateras abaixo, engolidos
pelas labaredas que, súbitas como fogos-fátuos, emergiam. Línguas
do Inferno.
O velho, menos roído pelo tempo que sua parceira caduca, divertia-se
e divertindo-se me irritava duma tal maneira!... Minhas bofetadas em seu rosto
encarquilhado e os gritos não mais estalasse aquela maldita língua
no céu da boca enquanto atirava para o alto moeda de centavo, estivesse
disputando cara-coroa com o invisível, os cinco dedos de minha mão
feita chicote naquelas rugas asquerosas eram imprestáveis: ele não
silenciava!...
- Talvez esteja certo, moleque... É boa hora para vingar-se de mim.
Sua infância... os espancamentos com ou sem motivo justo eram meu divertimento.
Inesquecível. É. Tem razão. Nunca lhe amei mesmo... Aliás,
como se pode amar um verme, um inseto? Aproveita, seu doente emocional... Cadê
o vigor destas porradas?
Só com os lábios, sem mostrar os dentes, ria do meu incômodo
com vontade e tortura. Em certo momento resolveu enlouquecer-me ainda mais:
o médio e o polegar da mão sem moeda passaram a manufaturar uns
estalidos em razoável harmonia com o barulho encolerizante da boca. Não
me deixou alternativa: surrá-lo, violência e tanto prazer que quase
o desfigurei. Aquela ruína humana e ensanguentada sobre os cacos
de tijolo e cimento, fosse cadáver anônimo lançado à
vala comum. Moído, sentou-se. Na fisionomia, dor. Seus olhos, hematomas,
ainda alcançavam lançar-me um ódio vindo lá... dos
tempos idos. Velha conhecida minha, sua cólera.
- E nunca mais me irrita nessa vidinha morta, velho moleque! Abaixa a cabeça
frente às minhas mágoas! Elas estão aqui na garganta desde
criança!
No céu, a radiação provocara um caos sedutor: desenhos
inconstantes e coloridos, aurora boreal sem polo norte, o vermelho, o
laranja, o amarelo. Tons mesclados às dores lacerantes e praguejos dos
que eram extintos, o Inferno logo ali na minha frente. Mas algumas imagens semeavam-me
perguntas. Por qual motivo os roedores carregavam no lombo, bandos gigantescos,
esculturas que um dia significaram importância para alguns povos? Seguiam
todos o mesmo itinerário, comportamento saúva, caminho da roça,
meia dúzia deles manifestando claramente postura generalesca. Por que
sequestrar a Estátua da Liberdade, fazê-la enxergar a escuridão
da toca? Ao mesmo tempo em que a transportavam, muitos eram os dentes ocupados.
Esquartejamento. Os braçais, cuja tarefa consistia em guilhotinar a cabeça
e a mão na qual o archote simbolicamente acesso, pareciam ter muita pressa.
Talvez porque a madame de cobre, histérica, gritava dores cortantes para
ela, um tal de suplicar misericórdia. Nunca enxerguei a certeza absoluta,
porém, pela distância em que estávamos, foi nítida
a sensação: chorava purulências enquanto era sequestrada
e roída. Difícil esquecer imagem tão saborosa, ainda que
eu pretendesse. A vagabunda, lá no canto, tivesse chorado da mesma maneira,
lágrimas do mesmo pus... Eu alcançaria orgasmo ainda mais enlouquecedor.
A velha tricotava, muito diligente, uma espécie de mantilha para aquecer
a netinha muito queridinha. Ou cobrir o esquife, se o corpo fosse encontrado.
Embora não admitisse a morte da pirralha. Resmungava antiguidades
incompreensíveis durante o processo de lãs e agulhas. Ria com
o corpo todo, sem mais aquela, citando episódios reais e imaginários.
Fosse eu bom filho teria dito, mas preferi o silêncio: renunciar ao secreto
prazer que me causava sua expectativa caduca? Não. Lá fora, os
ratos, organizadíssimos, empilhavam e roíam, tão felizes
quanto eu, cadáveres infantis. Muito provavelmente sua netinha no cardápio,
iguaria imprescindível. Afinal, carne tenra... suave... cheirosa... Anos
antes de lambuzar-me na fulana tentei com a menina, que certa vez, à
hora do ângelus, apareceu lá em casa e brincando de casinha montou
acampamento. Conseguiu escapar enquanto lhe exibia o membro. A filha duma puta,
aos gritos, estridente, vovó acode eu.
- Veja só, garoto da mamãe... Não ficou mesmo uma belezura?
Quando minha neta...
- Blá-blá-blá... Já sei, velhice! Discurso interminável!
- Olha! Não é a Esperança saindo barriga afora, saindo
daquela mulher engravidada por você quando nos mudamos para esta casa?
Esta casa... Alguma coisa estranha nesta casa.
- Quanta cegueira... Ratazanas entrando, saindo! Pela vagina, pela ferida à
cesariana... Não vê?!
Olhou-me fixamente, riu mansa e idiota sem entender palavra. Ou não?
O que veio depois foram para eles, os velhos, as últimas cenas de infinitos
dias escuros, quentes e sem sol. Aquela barriga aberta, aquelas pernas abertas,
o sangue farto e coagulado, tudo à disposição dos meus
hormônios em tumulto. Ainda hoje, eu dos poucos que sobreviveram psicologicamente
saudáveis, me questiono, como se ignorasse a resposta: é possível
mulher-da-vida em estado cadáver ser excitante e gostosa? O sangue ferveu
na presença do corpo arreganhado e putrefazendo-se a aromas vistos, ao
mesmo tempo em que me desfiz do calção e... Entrei todo. Tudo.
Todo. Tudo. Todo. Como se o coração dela ainda batesse. A única
nódoa é que ela já não podia, nem com os olhos,
gritar sai daqui seu animal.
Vários foram os orgasmos, misturados à fetidez da carne. Eu ria,
apedrejava com palavras sua dignidade, fios de saliva umedecendo a pele frouxa
por causa do atrito entre nossos corpos, enquanto eles, os roedores, invadiam,
pedaços da Liberdade na boca. Semicírculo em torno e, coro, uma
gargalhada colossal, uníssona. E aplausos.
- Acabou, tio? É que as coisas do mundo de cima, eu e meus coleguinhas,
a gente vai levar pro nosso quartinho de brinquedos, lá em baixo.
Terá sido mera ilusão? Ouvi, cristalino como um diamante, na
voz da ratazana que me interrompeu a orgia, tom não apenas feminino:
também infantil. Algo como certa criança conhecida, a aprendiz
de vagabunda que a velha insistia neta, a tal Esperança. E a ratazana
falava, nos olhos um olhar endurecido enquanto lançava moeda para cima.
Ilusão?