A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Necropolitanos

(Eduardo Selga)

Talvez muitos estilhaços de tempo já tenham se corroído, e da recordação tenha sobrado apenas alguma carcaça. Entretanto, meu espírito celebra. E se lembra, nitidez, das imagens mais combustíveis para ele. O que havia sobrado, além da morte que se alastrara, lâmina rasgando casas e cidades inteiras com suas gentes, mundo enquanto necrópole, o que havia sobrado eram os ratos. Superpopulação sem predadores ou vigilâncias sanitárias à vista. Muitas baratas também, é verdade. Os insetos, no entanto, sem a música-morte dos murídeos e distantes do fascínio deles. Risonhos. Crianças a brincar de esconde-esconde, os ratos. As ruínas e o podre formavam uma bela Disneylândia. E eu na plateia, palmas e assovios travestidos de sorrisos, ambicionava mais. Na verdade, que o mundo morresse. Para meu deleite. Os chiados dos ratos-pretos eram gargalhadas, oportuna trilha sonora em celebração à conquista da Terra, após séculos de guerra surda contra a espécie humana. Como crioulinhos vadios, sempre muito solidários entre si, os bichos sussurravam um na orelha do outro a melhor estratégia para roubar as guloseimas expostas nos asfaltos sem sofrer represálias. Entretanto, impossível ocorresse qualquer censura: todo o mundo, quando não morto, agonizando. E os poucos vivos, precários. Daí nenhum ânimo bastante para reagir, enxotar. Mesmo uma pedrada incerta, ela não aconteceria. Alguns, atrevidos porque experientes, bem o sabiam. Viva! Oba! Vamos nos fartar, canalhada! Brincadeiras em bandos, globos oculares da multidão cadáver faziam as vezes de bolinhas de gude. Outros, espíritos antes aventureiros que brincalhões, regozijavam-se ao entrar pelas bocas roídas e sem dentes, traqueias abaixo como tobogãs. Rega-bofe em meio às vísceras, por certo. Saíam, felizes, arrombando cús, bocados de intestinos e outros filés presos às bocas.

Do ângulo em que estávamos os três, no interior da ruína dominada após assassinarmos a vagabunda (como toda mulher prenha só pode ser), a vagabunda que fizera daqueles restos algum abrigo para si e para a lombriga humana habitante de sua barriga inchada, da ruína em que estávamos, a visão do maravilhoso Flagelo Terrestre era singular.

Hoje, rememorando, tenho surtos de risos. Morreu à toa, a putinha. Mas... quis valorizar o produto e não soube fazer negócio... Porque o Sacrossanto Casamento, porque o Céu, porque a Maternidade... Tudo o que eu propunha era muito simples para qualquer mulherzinha com estrogênio mínimo percorrendo o corpo: sexo. Transbordantemente sexo. Mas não de qualquer jeito, está certo pode vir quando muito bem entender e se lambuzar trepando em mim e pôr para fora isso tudo o que você tem represado aí. Não... gratuito, não... Afinal, o mundo nos indicava estar em seus últimos gemidos. Chegaríamos à próxima lua minguante? Difícil, naqueles dias. A morte arreganhava suas cáries para nós. Eu desejava e merecia o sexo trilhando o roteiro que desde garoto me disseram gostoso: a mulher teatraliza algum obstáculo, faz de conta ainda não é a hora meu bem, mas sempre o final feliz. Esqueceu, portanto, a inteligência. Não precisava ter ratificado a própria morte. Burrice! É possível não tenha visto no meu corpo e comportamento rijos a virgindade? Nunca antes havia conhecido carnes e secreções e gemidos duma mulher real. Exausto de tanta mulher-papel, tanta mulher-fotograma! Um corpo feminino e sólido, e líquido de tão macio, urgentemente! Então propus: a ruína já nos pertence; você até pode continuar; eu quero estuprá-la tantas vezes por dia, todos os dias. Desde que sua vagina grite, dor intolerável. Não, porra! Que mané acordo! Necessário você reaja, proteste, mamãe socorro, resista! Mulherzinha não é de fato mulher, nunca lhe ensinaram? Serenidade, rapaz... Violência causará aborto e eu quero o filho do meu esposo morto. Com qual intuito, vagabunda? Se vai alimentar os ratos minutos após sair de sua caverna quentinha, úmida... O calor dos belíssimos fogaréus (logo ali... vê?) só alguns adultos aguentamos, idiota, jamais um excremento feito criança! Aparvalhada! E pediu. E chorou. Por favor... basta algum cuidado, minha barriga... eu consinto.

Mas eu pretendia muito sofrimento àquele rosto ordinário, feminino. Assassinamos. Não: eu mesmo matei, quase sem cúmplices. Porque os dois velhinhos muito incompetentes na tarefa a que se dispuseram de bom grado após umas ordens minhas, bem gritadas: submetê-la. Enterrei devagar (ainda hoje eu orgasmo quando a memória acorda) o punhal naquela barriga gestante. Abri. Corte oblíquo, como uma boca de palhaço sorrindo. Cesariana amadora. E divertida. Prazeroso ouvir sua gritaria, ela desmoronada e a vida (essa praga a ser extinta) sussurrando tchau, estrebuchões. Ma-ra-vi-lha! Melhor ainda porque, ao esfregar meu piru até então virgem naquele mar vermelho que nascia do corpo, ereção absurdamente intensa. Como jamais. Daí aconteceu: entrei e saí e entrei e saí, ela queria gritar por causa daquela invasão de domicílio, mas o ferimento ensurdecia-lhe a voz, transformada em gemidos roucos e agonizantes. Morrendo. No rosto o desespero, as feições de mãe que perde o filho. Lágrimas, reticências... murmúrios incompreensíveis. Mas era ódio, eu conheço. Olhos abertos, morreu tão bonita a mulher tão feia... Eu encravado nela. Poucas vezes assisti a espetáculo tão... Gozei! Gozei! Dilacerantemente. Pela primeira e única vez, até hoje. O corpo permaneceu ali, putrefazendo-se à minha disposição, para todas as vezes em que eu sentisse necessidade de acalmar a fome infinita que me mastigava.

Com as mãos e ferramentas improvisadas capinamos algum espaço. Bocados de paredes, vergalhões, restos. Estivéssemos aberto clareira em floresta profunda, arriamos ali nosso cansaço de andanças e mais andanças por metrópoles e cidadelas. Mortas, em sua maioria; outras, últimos suspiros. Os velhos inúteis, que até então morriam de pânico frente à morte vizinha, sossegaram, apesar de somente duas paredes na vertical e meia laje, que um dia foi teto, ameaçando desabamento.

À minha frente, cinema, o mundo prestes a sair de cartaz. Sem paredes a obstacular o cenário, a fotografia do extermínio. Avenidas rasgadas como se a pavimentação fosse chita ordinária, repletas de bocas às escâncaras engolindo, famélicas, construções vizinhas. Aos poucos, crocodilo que caminha sorrateiro para devorar sua vítima, as bocarras aumentavam até que prédios e fulanos escorregassem. Muitos indivíduos, no entanto, precipitados, satisfaziam o apetite da Terra lançando-se às profundezas meio a rugidos de dor. Incendiados e em desespero. Xingavam a Deus antes de sumirem crateras abaixo, engolidos pelas labaredas que, súbitas como fogos-fátuos, emergiam. Línguas do Inferno.

O velho, menos roído pelo tempo que sua parceira caduca, divertia-se e divertindo-se me irritava duma tal maneira!... Minhas bofetadas em seu rosto encarquilhado e os gritos não mais estalasse aquela maldita língua no céu da boca enquanto atirava para o alto moeda de centavo, estivesse disputando cara-coroa com o invisível, os cinco dedos de minha mão feita chicote naquelas rugas asquerosas eram imprestáveis: ele não silenciava!...

- Talvez esteja certo, moleque... É boa hora para vingar-se de mim. Sua infância... os espancamentos com ou sem motivo justo eram meu divertimento. Inesquecível. É. Tem razão. Nunca lhe amei mesmo... Aliás, como se pode amar um verme, um inseto? Aproveita, seu doente emocional... Cadê o vigor destas porradas?

Só com os lábios, sem mostrar os dentes, ria do meu incômodo com vontade e tortura. Em certo momento resolveu enlouquecer-me ainda mais: o médio e o polegar da mão sem moeda passaram a manufaturar uns estalidos em razoável harmonia com o barulho encolerizante da boca. Não me deixou alternativa: surrá-lo, violência e tanto prazer que quase o desfigurei. Aquela ruína humana e ensanguentada sobre os cacos de tijolo e cimento, fosse cadáver anônimo lançado à vala comum. Moído, sentou-se. Na fisionomia, dor. Seus olhos, hematomas, ainda alcançavam lançar-me um ódio vindo lá... dos tempos idos. Velha conhecida minha, sua cólera.

- E nunca mais me irrita nessa vidinha morta, velho moleque! Abaixa a cabeça frente às minhas mágoas! Elas estão aqui na garganta desde criança!

No céu, a radiação provocara um caos sedutor: desenhos inconstantes e coloridos, aurora boreal sem polo norte, o vermelho, o laranja, o amarelo. Tons mesclados às dores lacerantes e praguejos dos que eram extintos, o Inferno logo ali na minha frente. Mas algumas imagens semeavam-me perguntas. Por qual motivo os roedores carregavam no lombo, bandos gigantescos, esculturas que um dia significaram importância para alguns povos? Seguiam todos o mesmo itinerário, comportamento saúva, caminho da roça, meia dúzia deles manifestando claramente postura generalesca. Por que sequestrar a Estátua da Liberdade, fazê-la enxergar a escuridão da toca? Ao mesmo tempo em que a transportavam, muitos eram os dentes ocupados. Esquartejamento. Os braçais, cuja tarefa consistia em guilhotinar a cabeça e a mão na qual o archote simbolicamente acesso, pareciam ter muita pressa. Talvez porque a madame de cobre, histérica, gritava dores cortantes para ela, um tal de suplicar misericórdia. Nunca enxerguei a certeza absoluta, porém, pela distância em que estávamos, foi nítida a sensação: chorava purulências enquanto era sequestrada e roída. Difícil esquecer imagem tão saborosa, ainda que eu pretendesse. A vagabunda, lá no canto, tivesse chorado da mesma maneira, lágrimas do mesmo pus... Eu alcançaria orgasmo ainda mais enlouquecedor.

A velha tricotava, muito diligente, uma espécie de mantilha para aquecer a netinha muito queridinha. Ou cobrir o esquife, se o corpo fosse encontrado. Embora não admitisse a morte da pirralha. Resmungava antiguidades incompreensíveis durante o processo de lãs e agulhas. Ria com o corpo todo, sem mais aquela, citando episódios reais e imaginários. Fosse eu bom filho teria dito, mas preferi o silêncio: renunciar ao secreto prazer que me causava sua expectativa caduca? Não. Lá fora, os ratos, organizadíssimos, empilhavam e roíam, tão felizes quanto eu, cadáveres infantis. Muito provavelmente sua netinha no cardápio, iguaria imprescindível. Afinal, carne tenra... suave... cheirosa... Anos antes de lambuzar-me na fulana tentei com a menina, que certa vez, à hora do ângelus, apareceu lá em casa e brincando de casinha montou acampamento. Conseguiu escapar enquanto lhe exibia o membro. A filha duma puta, aos gritos, estridente, vovó acode eu.

- Veja só, garoto da mamãe... Não ficou mesmo uma belezura? Quando minha neta...

- Blá-blá-blá... Já sei, velhice! Discurso interminável!

- Olha! Não é a Esperança saindo barriga afora, saindo daquela mulher engravidada por você quando nos mudamos para esta casa? Esta casa... Alguma coisa estranha nesta casa.

- Quanta cegueira... Ratazanas entrando, saindo! Pela vagina, pela ferida à cesariana... Não vê?!

Olhou-me fixamente, riu mansa e idiota sem entender palavra. Ou não? O que veio depois foram para eles, os velhos, as últimas cenas de infinitos dias escuros, quentes e sem sol. Aquela barriga aberta, aquelas pernas abertas, o sangue farto e coagulado, tudo à disposição dos meus hormônios em tumulto. Ainda hoje, eu dos poucos que sobreviveram psicologicamente saudáveis, me questiono, como se ignorasse a resposta: é possível mulher-da-vida em estado cadáver ser excitante e gostosa? O sangue ferveu na presença do corpo arreganhado e putrefazendo-se a aromas vistos, ao mesmo tempo em que me desfiz do calção e... Entrei todo. Tudo. Todo. Tudo. Todo. Como se o coração dela ainda batesse. A única nódoa é que ela já não podia, nem com os olhos, gritar sai daqui seu animal.

Vários foram os orgasmos, misturados à fetidez da carne. Eu ria, apedrejava com palavras sua dignidade, fios de saliva umedecendo a pele frouxa por causa do atrito entre nossos corpos, enquanto eles, os roedores, invadiam, pedaços da Liberdade na boca. Semicírculo em torno e, coro, uma gargalhada colossal, uníssona. E aplausos.

- Acabou, tio? É que as coisas do mundo de cima, eu e meus coleguinhas, a gente vai levar pro nosso quartinho de brinquedos, lá em baixo.

Terá sido mera ilusão? Ouvi, cristalino como um diamante, na voz da ratazana que me interrompeu a orgia, tom não apenas feminino: também infantil. Algo como certa criança conhecida, a aprendiz de vagabunda que a velha insistia neta, a tal Esperança. E a ratazana falava, nos olhos um olhar endurecido enquanto lançava moeda para cima. Ilusão?

  • Publicado em: 04/12/2008
menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br