A Garganta da Serpente
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Necrose

(Eduardo Selga)

Talvez alta madrugada quando acordei. Súbito. Assombro. Oxigênio insuficiente, estivesse eu sofrendo de algum pesadelo arquitetado por fantasmas parasitas de alma. Não, porém. Revirei pelo avesso as gavetas da memória (onde baratas montaram acampamento há tempos) ali mesmo na cama, sentado, suor, músculos cardíacos em pânico e fora dos trilhos. Eu, paleontólogo de minhas cavernas íntimas, procurando exumar as efígies certamente terríveis que... teriam mesmo acordado meu sono? Busca sem indícios, impraticável encontrar os restos fósseis do sonho ruim. Mãos espalmadas à cabeça, pressionei têmporas na tentativa de implodir o cérebro, sangrar, moer respostas. O quarto, absorto na semiescuridão (luar volátil, muito filtrado por nuvens mal-humoradas, conseguia sem dificuldades transpor os vidros da janela), e percebi: eu apodrecendo. Dedos e palmas fediam insuportavelmente. Em putrefação. Mas como?! Resquícios do suposto sonho mau! Foi quase instantâneo percebermos, eu e meus horrores: eloquência, o fedor discursava, oratória inigualável. Todo meu corpo igual ao de um cadáver em festa, festa e banquete para todos os vermes da Terra. Saltei cama afora, coração ansiando cavoucar espaços (porque toupeira) e fugir pela boca (porque covarde). Saltei. À procura, no negrume cinza, dum espelho que me explicasse letra por letra os últimos acontecimentos.

Tateei. O nada. Parede. Interruptor. Acendi a lâmpada, sol charlatão, suspensa no teto. Um semiazul -semibranco engoliu pela metade a noite já nem tanta assim, desnudou o véu da luminância sobre o pardacento tímido e lunar. E o coração nos lábios, foge-não-foge. Meus dois olhos arregalaram-se simultaneamente, terrificados. É que sobre o travesseiro... como se ornamento do quarto ou broche feito por ourives ainda aprendiz, orelha. Instinto, esquadrinhei os lados da cabeça, descobrir qual delas não estava. A direita. Espelho enorme na suíte mostrou-me, cínico porque nitidamente degustava o infortúnio, o canal auditivo nu. Alguma sobra de carne (lóbulo e mais qualquer coisa) que ainda presa a seu devido lugar não sangrava. Era um tecido pestilento, exalava intenso mau cheiro. Sonho ordinário, nascido do ventre dessa vida meretriz! Maldito pesadelo sem cais! Chega! Aporta! Acorda! Berrei louco a melhor putaqueopariu que conhecia, para exorcizar o desespero. Invasor completo de mim pelas metades. Antes permanecesse silêncio: lábio inferior tombou na pia, corpo defunto que é atirado ribanceira abaixo e rola e tomba e capota e desce... O ralo foi obstáculo bastante para impedir o sumiço eterno, esgoto afora. Chorei... desbocado... criança... pânico... E cada lágrima vagarosa e tonelada que escorregava, percorria o rosto, era leito seco de rio escavado em solo pobre. Minha pele solúvel em água e sal.

Como pretendesse evaporar irremediavelmente da vida sem remédio, eu fugi, um tormento só e tropeções vários, corredor da casa afora. Porém ele se esticava em extensão, comprimento e altura quanto mais punha nas pernas força e pavor. Subitamente: claridade. Sem que, entretanto, o dilúvio interno estiasse ou os trovões calassem a boca: estéril a pressa desmedida; lugar nenhum acolheria meu peito exacerbado. Cansaço, então. Sentei, escorregando pela parede. Oxigênio seria bem-vindo. Imperativo traduzir para meu verbo a avalanche de aberrações. Minutos-dias, olhos peixe-morto e alheios num ponto cerâmico qualquer do piso. Referência. Tão somente para destumultuar os pensamentos. Vivíssimos e ensandecidos.

Com a mesma indolência que a tarde usa ao travestir-se noite, a metamorfose: sons apenas possíveis se eu estivesse numa floresta equatorial: o peregrinar nômade do vento entre folhagens, chuá, uirapuru, rugidos, macacos-gritadores, alguém muuuuuuuito distante a implorar socorro usando minha voz quando eu amordaçado pelo horror. Os cômodos ocultos por brenhas: folhas, cipós, troncos. Chega de loucura! Exijo minha casa do jeito que sempre foi, gritei e o eco imitou a frase, gargalhando-se da pretensão. Teria perdido as rédeas da vida (essa burra xucra), as margens, as fronteiras tombando no precipício da loucura sem ao menos uma corda improvisada com trapos amarrados para voltar? Na esperança de que, alucinação, a normalidade restabelecesse sua comarca, fechei os olhos com a mesma força de quando minha cólera desmedida chuta paredes e portas da casa. Fracasso, porém: um colibri do tamanho duma gaivota absurdamente grande beijou-me o lábio único, e sorriu dizendo sem pronunciar palavra algo como, se ouvi bem, fundamental eu ter com as pessoas o mesmo doce que eu possuí um dia, criança; findara a primavera para as flores amargas do meu canteiro interior; eu que não tornasse minha vida solo ressequido. Bateu asas, meu olho esquerdo caiu como se o acontecimento fosse o mais natural dos fenômenos. E o pássaro voou para os interiores d'água. Água?! Donde arraia tão colorida quanto pipa de moleque saltou para, movimentando-se como um objeto fotografado em múltipla exposição, engolir meu globo ocular durante a queda, antes mesmo que ele boiasse. Ainda permitiu-se à ironia de, nadadeiras à guisa de asas, navegar por toda a atmosfera asfixiante daquela casa-mata. Submarino aéreo. Após o que, tchibum. Pela primeira vez em muitos anos de vida adulta senti-me soterrado, subterrâneo, tantas situações sem controle ou lógica plausível.

Foi quando percebi não estava sentado no mesmo chão dantes, e sim no leito dum córrego pedregulhoso em cujas margens flores inéditas. Lá! Minha orelha direita boiando, nave, lentidão, as águas como rodovia. O lugar dela, desde que nasci, sempre foi em minha cabeça, mas quando acordei estava deitada no travesseiro. Orelhas não dormem, é sabido. Portanto... soltou-se!... Podre? E, mais assustador, de repente barquinho, como fosse pouca a rebeldia já demonstrada. Poderia simplesmente passar ao largo, obedecer à correnteza, fingir inexisto. Mas não! Lançou âncora próxima aos meus tornozelos. Como quem enamorado, encostou-se. Temperatura incandescente e súbita nos membros inferiores. Minutos após, o pé, sem pedir licença, abandonou-me. Não ensanguentou a perna e seguiu viagem com a orelha, ignorando o corpo. Corpo... pilhéria sem graça... Dos joelhos para baixo as carnes completamente deterioradas. Talvez eu não sentisse a fedentina da necrose avançar a galopes largos em função da água, próxima à cintura.

- Mal-assombrado vossa mercê, pois não? Diria...

Diante de mim, sentado sobre uma pétala cuja cor indefinível por não ser variante de nenhuma outra do espectro conhecido, um fauno tocava pífano. Ali?! Desde... que momento? Pernas cruzadas deixando evidente os cascos de ungulado onde deveria haver pés, mãos com inequívoca elefantíase. No rosto animalesco, cicatrizes varicelas, pelas quais larvas visguentas entravam e saíam continuamente. Dos orifícios esfuracados no bambu brotavam, além de dó-ré-mis melodiosos, varejeiras às multidões. Empesteavam o oxigênio, insistiam em apalpar-me o corpo nauseabundo, em irreversível decomposição.

- Quem...

- Relevância não há em conhecer-me. Inclusive porque a pergunta de fato é bem outra. Queres mesmo é saber-se vivo ou falecido, pois não? Diria... Ambas as opções têm pés na verdade, creia-me. Entretanto, é por demais fatigante ser obrigado a explicar a alguém despreparado, vossa mercê, fenômeno tão pueril. Pois sim. Diria... Em escassas palavras, portanto: Queres a vida como a conheces? Acordar é tudo quanto basta. Despertar em toda a multiplicidade de significados que o vocábulo carrega, visíveis ou não; a morte é a dama que mais excita vossa pessoa? Permita-se jazer onde estás sentado, simplório espectador dos fatos. Pois não? Diria...

- Difícil entender...

- Pois sim... Diria... Façamos o seguinte, nós os dois: enquanto eu paulatinamente desaparecerei, observa aquela clareira onde a sala existia. Há de entrar umas gentes e... Ora, vivas! Essa vida é mesmo pasmos sobre pasmos. Veja com teu olho solteiro, o que não foi engolido pelo peixe! Já ocupam o espaço, trocam ideias. Discutem a melhor maneira de encomendar teu corpo, meu jovem cadáver. Pois não? Diria...

Quis reagir. Porém quando virei o rosto, ruído de osso quebrando. Era minha cabeça não mais sobre o pescoço. O que a segurava era um caos formado por pele, nervos, tendões. Inclinada em mais ou menos noventa graus. Ainda foi possível ver aquela criatura demoníaca tornar-se invisível, no ar um rastro adocicado e típico do óxido nitroso. Tanto gás hilariante fez-me gargalhar contra a vontade, perfeito débil mental, ao mesmo tempo em que, quase sem cabeça, via aquela gente estranha e animada tecendo comentários a meu respeito. Quem seriam? Num repente viraram-se para mim, sorriso plástico esticando ao máximo a musculatura do rosto, olhos arregalados. E tudo ficou muito claro: todos eram eu mesmo, em idades diversas. Portanto...

Aquele alguém na mata usando minha voz outra vez! Não mais distante, porém. Na porta do quarto, em pé, sobre as águas, um idoso também repleto das malditas varejeiras deitou um olhar choroso em mim. E à medida que lágrimas transformaram-se em soluços de dor, benzeções contínuas e frenéticas. Aos poucos, ele de joelhos. Mãos espalmadas para um céu que inexistente por causa das folhas. Deus me perdoa, disse nos gestos e nos olhos. Antes de a minha cabeça cair de vez e seguir correnteza, foi possível perceber nele várias ausências: lábio inferior, orelha, um dos pés, olho. E no pescoço uma profunda necrose.

  • Publicado em: 18/01/2005
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