Manhã, 22 de Agosto, o céu está nublado. Mais um dia cinzento.
Os olhos dele raiam inocência; o seu sorriso exprime uma alegria indescritível.
Fomos até à praia, começam a cair as primeiras gotas de
água, as ondas são grandes, fortes e brancas, a chuva desliza
nos nossos rostos, inocentes de todo o mal naquele momento, forte e breve; Disse
- Vem Fui. E juntos caminhamos para as ondas, ele sempre alegre, de uma alegria
nunca vista. Viemos à tona da água, ele olhou em redor, e de repente
tudo mudou, o seu olhar mudou, a sua expressão mudou, o seu sorriso não
existia; Senti uma dor forte na garganta, algo terrível tinha acabado
de acontecer, lágrimas brotavam dos seus olhos vermelhos de cólera
contida. Não sabia o que fazer, estava perplexa, impotente, queria dizer
qualquer coisa mas não conseguia, estava sufocada naquela dor disforme
e indescritível. - Vamos embora - disse num tom imperativo. Mas
o que foi? Perguntei, ainda confusa com tudo aquilo. -Não vês?
Não vês? Os cadáveres a boiarem, rôchos de miséria
a dar à costa? infestando a beleza do mundo, fazendo-nos ver que tudo
é miséria e corrupção. E que nem esta paisagem,
a mais pura de todas, a mais rebelde, foi poupada! Não vês? Não
percebes? Como posso eu voltar aqui e amar esta visão alucinadamente
como em criança se tudo o que vejo são horrendos cadáveres
e sangue podre! - Ele estava a desabafar comigo, pela primeira vez. Pela primeira
vez e única ele estava exposto a mim, de coração aberto,
e eu, não fiz nada, fiquei totalmente impotente. - Percebes-me? Compreendes-me?
- Perguntou num tom quase suplicante, e eu continuava desesperadamente calada.
Rolavam lágrimas do seu rosto. - Claro que não! Tu felizmente
não padeces deste mal alojado em mim, e ainda podes amar e gozar o mundo.
- Os seus olhos tornaram-se soturnos, gélidos, o seu rosto exprimia uma
expressão sarcástica e fria, por momentos julguei que ele fosse
explodir e de novo os seus olhos se enchessem de cólera e se torna-se
tão odioso como um cão raivoso ansioso de sangue. Tive medo. Mas
foi um medo prematuro. Ele apenas ficou calado, como que se um punhal lhe estivesse
cravado no peito e ele o tivesse que carregar até ao fim dos seus dias.
Não havia nada que eu pudesse fazer. Dos seus olhos emanava uma tristeza
passiva, profunda e permanente. Chegamos a casa, ele sentou-se no sofá
a ouvir Wagner. Os olhos dele estavam vazios, ausentes, livres de sangue e de
ódio, mergulhados num eterno lago, profundo como o oceano, lago que eu
jamais poderia mergulhar, partilhar ou perceber. Chovia ininterruptamente para
além da janela.
Na esfera do sentido todos nós amamos, odiámos, atraiçoámos,
matámos, não existem pessoas inocentes, só pessoas inconscientes,
inconscientes de matar, de espezinhar, de odiar, mas sempre prontas para o motim,
com voz na razão e na justiça, acabando por cometer um crime muito
mais horrendo do que aquele que as suas vitimas cometeram, e assim se matam
inocentes, e o povo tão bom e generoso apenas se arrepende de se ter
enganado no criminoso, mas não é punido, nem banido, passado dois
ou três dias tudo está esquecido e a vida continua. Como vês
Sílvia, à noite todos os gatos são pardos e todas as vítimas
são criminosos. Ah! Ah! Ah! Ah! - E desatou a rir, naquele seu rir maquiavélico
e cruel que me entrava nas entranhas e me deixava vazia de amor e enterrada
em trevas. Odiava-o, odiava-o, muito mais porque para além de toda aquela
sordidez e crueldade, ele tinha razão!
Tenho 22 anos, saí de casa aos 17, para lutar contra o sistema, hum,
jovenzinha idealista sem concepção da realidade, deixei casa,
família, estudos, comida e roupa lavada, para me juntar a uma seitazinha
de jovens revolucionários, pobres coitados, que só sabiam gritar,
curtir e roubar se quisessem comer e muitas vezes pedir, os revolucionários
do sistema, que mais se podiam chamar idealióctarios do sistema, enfim
eu era uma deles e foi com eles que numa discoteca a sul da cidade, a discoteca
Vibe, que agora mudou a decoração e se chama Transmission, conheci
o Victor, ele estava sentado ao balcão a beber vodka com laranja e a
conversa entre nós ocorreu espontaneamente quando fui buscar uma bebida
para mim, ele disse olá, eu respondi e a partir daí começamos
a conversar fluentemente, pode-se dizer que estava na altura no auge da minha
fé e convicção que eu, mais os meus amigos revolucionários,
iríamos conseguir mudar alguma coisa e ajudar a tornar este mundo num
mundo melhor. Durante toda a conversa ele partilhou comigo o melhor que pôde
os meus ideais e convicções e ouviu cuidadosamente os meus planos
e dos meus amigos para revolucionar a sociedade, para no fim me dizer com toda
a calma que era tudo mentira e que não me dava um mês para me ver
regressar a casa dos meus pais com o rabinho entre as pernas a chorar para que
me aceitassem de volta, fiquei estupefacta, sem saber o que dizer, ele levantou-se,
disse tchau e foi embora, fiquei louca de raiva, mas, dois meses depois, já
tinha perdido por completo todas as esperanças de mudar seja o que for
e encontrava-me apenas com cem paus no bolso e morta de fome sentada num banco
de um jardim qualquer, quando, por coincidência, ele apareceu, falamos
um pouco e fomos até à casa dele, à entrada da porta estendia-se
uma enorme carpete vermelha, - qual entrada triunfal, disse, - o vermelho é
a cor da minha alma e com ela me recebo e recebo todos os meus convidados, sejam
amigos ou inimigos, - sorriu ironicamente. - É simpática a tua
casa, um pouco sinistra, mas mesmo assim, simpática, tens muito bom gosto.
- Dizes sinistra, devido aos punhais? - Sim, são extraordinariamente
belos, mas não deixam de ser um instrumento para matar. - O Victor tinha
exposto nas paredes magníficos punhais, uns emoldurados, ou como ele
dizia, vestidos, e outros sem moldura, a nu, poderia facilmente agarrar num
deles e espetar no que quisesse, ele fazia questão de os ter sempre afiados
e a brilhar, o seu fascínio por este objecto era intenso e profundo,
quase como se fizesse parte dele e das suas vidas passadas. A partir desse dia
nunca mais nos separamos.
Aqui deponho angustias do passado e do presente futuro, aqui e além despedaçados,
destruídos de memória, os pedaços da vida inteligente e
inumana, só o silêncio me rege e me domina como o fio de água
que escorre de mim em direcção à terra viva.
Parvoíces de uma parvónia de uma terra instalada numa parvoíce
de memória.
A vida é nada, é tudo, barulho construído no silêncio
de viver no abismo de cada dia, esperando cair e ficar nada, só paz e
silêncio
- João, traz-me um copo de água se faz favor.
- Escrevo aqui, neste meu diário da adolescência, cosido à
mão, encadernado a vermelho, como dizia a minha alma, vermelho a paixão,
a revolução, encadernado a encarnado, cosido a vermelho dos teus
dedos de sangue, brincava o Victor com o seu jogo de palavras viciado na loucura
dos dias que me seduzia e me enleava na sua embriaguez. "Para fugir à
loucura dos dias" escrevi eu como introdução às minhas
aventuras, como máxima a seguir, Ah! Ah! Ah! Isto dá vontade de
morrer a rir, parece que eu não fui lá muito boa aluna das minhas
próprias lições. Estou cansada, cansada, do vermelho dos
dias; anseio o branco, o branco, voar, voar, azul, azul, azul.
Estou morta. - Estás morta! - Correu desvairado, pegou-me nos pulsos
e gritou - estes pulsos pulsam o pulsar do teu coração! Os pulsos
dos mortos não pulsam, as tuas lágrimas, vês as tuas lágrimas,
sentes as tuas lágrimas, os mortos não choram, não sentem,
não respiram, não falam, não gritam, estão mortos!
Tu vives, tu sentes, tu choras
Por isso ainda há esperança,
ainda há esperança!
- Enterrando os seus olhos nos meus,
ausentes, cobertos de água, inertes a tudo e a todos. - Será João?
- Perguntei sem convicção. Esta vida é um jogo de dados
viciado, e eu estou farta desta merda toda, vou dormir, a cama está suave,
os lençóis frescos, acabados de lavar, fecho os olhos, a vida
é bela do outro lado do espaço. Porquê que eu não
tenho uma nave espacial?
Imagino as imagens a despedaçarem-se como pedaços de um copo
acabado de partir que atirara de propósito contra a parede para aliviar
os nervos e sentir-me pura, mas elas voltam, vivas e intactas, sorrindo-me irónicas
como um pesadelo pronto a desabar sobre mim, enrolando-me num óvulo sufocante
e nauseabundo. Tento-me libertar, acordar, mas a força do óvulo
é mais forte e eu sufoco, uma voz do exterior chama insistentemente por
mim, acordo, agarro-me aquela voz como a água no deserto durante alguns
segundos até cair em mim, suada e tremelicante, apercebendo-me que estava
acordada, que tudo tinha acabado e ficado para trás, a voz era a do João
que mais uma vez me arrancara das entranhas mais triturantes do meu pensamento.
Estava livre, solta para respirar o ar da manhã, o sol penetrava no quarto
com uma luz estranha e sublime de Inverno, o cheiro do pequeno-almoço
na cabeceira era bom e reconfortante, sentia-me feliz, como nos primórdios
da infância em que mal sentia o cheiro do Inverno subir-me às narinas
corria para a rua e agarrava-me aos troncos das árvores para sentir a
vida que corria pelo espaço. Senti uma esperança a crescer em
mim como um raio de luz que penetra as trevas à muito fechadas entre
si, e vai crescendo, crescendo, tornando-se maior, maior e maior. Levantei-me
da cama num pulo, energicamente, contente de mim, vesti-me e corri até
lá fora para um longo passeio pela cidade.
No silêncio escuro do quarto, iluminado apenas pelo néon das luzes
lá fora, ando de um lado para o outro, qual fantasma pairando pelas paredes
ouço as vozes ausentes a gritarem-me no espírito; Poderosas, vivas,
mortas no espaço distante do tempo
Desespero! Agarro-me ao chão,
aos tapetes, às paredes, chamo por ele, Victor! Victor! Victor! Victor!
A dor trespassa-me
- Sílvia! Sílvia! - O João agarra-
me, salva-me mais uma vez - Sílvia o quê que se passa? Pronto,
já passou, eu estou aqui. - Eu sei - segura-me o rosto, os cabelos -
O que foi, foi mais um pesadelo? Pronto, já passou (abraça-me)
- foi João, foi mais um pesadelo. - Menti. - Estou completamente neurótica,
estás a ver bem quem alojas-te na tua casa? Uma louca! - Não digas
disparates, foi só um pesadelo. - Estou com medo João, muito medo,
ficas comigo, ficas? Preciso de ti. - Eu também preciso de ti - abraça-me
- Sempre.
O João apaixonou-se por mim, ou pelo menos pensa que sim. Amo-te, sussurrou
enquanto me apertava contra o peito na noite passada, mantive-me calada, adormecida,
e acordei de manhã ainda abraçada a ele, não me largou
por um segundo. Ele sabia o quanto eu precisava dele, e sabia que eu não
estava em condições de lhe dar nada em troca, pelo menos não
naquele momento. Eu estava doente. A carne do Victor palpitava dentro do meu
peito, arrebentava-me as veias; a dor trespassava-me de um lado ao outro do
corpo; estava constantemente com hemorragias que não conseguia estancar,
desfalecia contra qualquer canto, se não fosse o João, morria
ali e nunca mais acordava.
16 Horas e 22 minutos, estou encostada à janela do quarto, inerte, sem
me poder mexer, não consigo sair deste estado de letargia deprimente,
desta coma de imagens pertencentes ao passado mas sempre presentes em mim como
uma praga que me estrangula a garganta, prende-me o corpo e cola-me às
paredes até me fundir com elas transportando-me para uma outra paisagem,
a trama fatigante das imagens transforma-se agora em sombras e nevoeiro, calmo
como a morte. Impera uma pacificidade clara e luminosa junta com os pinheiros
verde musgo. Não existe vermelho ou fogo - apenas paz. Tenho frio, tremo,
mas não me consigo mexer, hipnotizada pelos meus próprios pensamentos,
o João encontra-me, leva-me para a cama, deita-se a meu lado, abraça-me
com força, adormecemos juntos.
O Victor morreu, causa de morte - SUICÍDIO. Pedia desculpa numa enorme
faixa de tecido que pregou de um lado ao outro da parede, uma nota na mesinha
de cabeceira dizia: este pedido de desculpa é só para ti, por
favor, retira a faixa da parede e queima-a, e o meu corpo também, não
quero um túmulo no cemitério. Faz o que quiseres com as cinzas.