A Garganta da Serpente
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Três vidas

(Elisabete Antunes)

Manhã, 22 de Agosto, o céu está nublado. Mais um dia cinzento. Os olhos dele raiam inocência; o seu sorriso exprime uma alegria indescritível. Fomos até à praia, começam a cair as primeiras gotas de água, as ondas são grandes, fortes e brancas, a chuva desliza nos nossos rostos, inocentes de todo o mal naquele momento, forte e breve; Disse - Vem Fui. E juntos caminhamos para as ondas, ele sempre alegre, de uma alegria nunca vista. Viemos à tona da água, ele olhou em redor, e de repente tudo mudou, o seu olhar mudou, a sua expressão mudou, o seu sorriso não existia; Senti uma dor forte na garganta, algo terrível tinha acabado de acontecer, lágrimas brotavam dos seus olhos vermelhos de cólera contida. Não sabia o que fazer, estava perplexa, impotente, queria dizer qualquer coisa mas não conseguia, estava sufocada naquela dor disforme e indescritível. - Vamos embora - disse num tom imperativo. Mas… o que foi? Perguntei, ainda confusa com tudo aquilo. -Não vês? Não vês? Os cadáveres a boiarem, rôchos de miséria a dar à costa? infestando a beleza do mundo, fazendo-nos ver que tudo é miséria e corrupção. E que nem esta paisagem, a mais pura de todas, a mais rebelde, foi poupada! Não vês? Não percebes? Como posso eu voltar aqui e amar esta visão alucinadamente como em criança se tudo o que vejo são horrendos cadáveres e sangue podre! - Ele estava a desabafar comigo, pela primeira vez. Pela primeira vez e única ele estava exposto a mim, de coração aberto, e eu, não fiz nada, fiquei totalmente impotente. - Percebes-me? Compreendes-me? - Perguntou num tom quase suplicante, e eu continuava desesperadamente calada. Rolavam lágrimas do seu rosto. - Claro que não! Tu felizmente não padeces deste mal alojado em mim, e ainda podes amar e gozar o mundo. - Os seus olhos tornaram-se soturnos, gélidos, o seu rosto exprimia uma expressão sarcástica e fria, por momentos julguei que ele fosse explodir e de novo os seus olhos se enchessem de cólera e se torna-se tão odioso como um cão raivoso ansioso de sangue. Tive medo. Mas foi um medo prematuro. Ele apenas ficou calado, como que se um punhal lhe estivesse cravado no peito e ele o tivesse que carregar até ao fim dos seus dias. Não havia nada que eu pudesse fazer. Dos seus olhos emanava uma tristeza passiva, profunda e permanente. Chegamos a casa, ele sentou-se no sofá a ouvir Wagner. Os olhos dele estavam vazios, ausentes, livres de sangue e de ódio, mergulhados num eterno lago, profundo como o oceano, lago que eu jamais poderia mergulhar, partilhar ou perceber. Chovia ininterruptamente para além da janela.

Na esfera do sentido todos nós amamos, odiámos, atraiçoámos, matámos, não existem pessoas inocentes, só pessoas inconscientes, inconscientes de matar, de espezinhar, de odiar, mas sempre prontas para o motim, com voz na razão e na justiça, acabando por cometer um crime muito mais horrendo do que aquele que as suas vitimas cometeram, e assim se matam inocentes, e o povo tão bom e generoso apenas se arrepende de se ter enganado no criminoso, mas não é punido, nem banido, passado dois ou três dias tudo está esquecido e a vida continua. Como vês Sílvia, à noite todos os gatos são pardos e todas as vítimas são criminosos. Ah! Ah! Ah! Ah! - E desatou a rir, naquele seu rir maquiavélico e cruel que me entrava nas entranhas e me deixava vazia de amor e enterrada em trevas. Odiava-o, odiava-o, muito mais porque para além de toda aquela sordidez e crueldade, ele tinha razão!

Tenho 22 anos, saí de casa aos 17, para lutar contra o sistema, hum, jovenzinha idealista sem concepção da realidade, deixei casa, família, estudos, comida e roupa lavada, para me juntar a uma seitazinha de jovens revolucionários, pobres coitados, que só sabiam gritar, curtir e roubar se quisessem comer e muitas vezes pedir, os revolucionários do sistema, que mais se podiam chamar idealióctarios do sistema, enfim eu era uma deles e foi com eles que numa discoteca a sul da cidade, a discoteca Vibe, que agora mudou a decoração e se chama Transmission, conheci o Victor, ele estava sentado ao balcão a beber vodka com laranja e a conversa entre nós ocorreu espontaneamente quando fui buscar uma bebida para mim, ele disse olá, eu respondi e a partir daí começamos a conversar fluentemente, pode-se dizer que estava na altura no auge da minha fé e convicção que eu, mais os meus amigos revolucionários, iríamos conseguir mudar alguma coisa e ajudar a tornar este mundo num mundo melhor. Durante toda a conversa ele partilhou comigo o melhor que pôde os meus ideais e convicções e ouviu cuidadosamente os meus planos e dos meus amigos para revolucionar a sociedade, para no fim me dizer com toda a calma que era tudo mentira e que não me dava um mês para me ver regressar a casa dos meus pais com o rabinho entre as pernas a chorar para que me aceitassem de volta, fiquei estupefacta, sem saber o que dizer, ele levantou-se, disse tchau e foi embora, fiquei louca de raiva, mas, dois meses depois, já tinha perdido por completo todas as esperanças de mudar seja o que for e encontrava-me apenas com cem paus no bolso e morta de fome sentada num banco de um jardim qualquer, quando, por coincidência, ele apareceu, falamos um pouco e fomos até à casa dele, à entrada da porta estendia-se uma enorme carpete vermelha, - qual entrada triunfal, disse, - o vermelho é a cor da minha alma e com ela me recebo e recebo todos os meus convidados, sejam amigos ou inimigos, - sorriu ironicamente. - É simpática a tua casa, um pouco sinistra, mas mesmo assim, simpática, tens muito bom gosto. - Dizes sinistra, devido aos punhais? - Sim, são extraordinariamente belos, mas não deixam de ser um instrumento para matar. - O Victor tinha exposto nas paredes magníficos punhais, uns emoldurados, ou como ele dizia, vestidos, e outros sem moldura, a nu, poderia facilmente agarrar num deles e espetar no que quisesse, ele fazia questão de os ter sempre afiados e a brilhar, o seu fascínio por este objecto era intenso e profundo, quase como se fizesse parte dele e das suas vidas passadas. A partir desse dia nunca mais nos separamos.

Aqui deponho angustias do passado e do presente futuro, aqui e além despedaçados, destruídos de memória, os pedaços da vida inteligente e inumana, só o silêncio me rege e me domina como o fio de água que escorre de mim em direcção à terra viva.

Parvoíces de uma parvónia de uma terra instalada numa parvoíce de memória.

A vida é nada, é tudo, barulho construído no silêncio de viver no abismo de cada dia, esperando cair e ficar nada, só paz e silêncio… - João, traz-me um copo de água se faz favor. - Escrevo aqui, neste meu diário da adolescência, cosido à mão, encadernado a vermelho, como dizia a minha alma, vermelho a paixão, a revolução, encadernado a encarnado, cosido a vermelho dos teus dedos de sangue, brincava o Victor com o seu jogo de palavras viciado na loucura dos dias que me seduzia e me enleava na sua embriaguez. "Para fugir à loucura dos dias" escrevi eu como introdução às minhas aventuras, como máxima a seguir, Ah! Ah! Ah! Isto dá vontade de morrer a rir, parece que eu não fui lá muito boa aluna das minhas próprias lições. Estou cansada, cansada, do vermelho dos dias; anseio o branco, o branco, voar, voar, azul, azul, azul.

Estou morta. - Estás morta! - Correu desvairado, pegou-me nos pulsos e gritou - estes pulsos pulsam o pulsar do teu coração! Os pulsos dos mortos não pulsam, as tuas lágrimas, vês as tuas lágrimas, sentes as tuas lágrimas, os mortos não choram, não sentem, não respiram, não falam, não gritam, estão mortos! Tu vives, tu sentes, tu choras… Por isso ainda há esperança, ainda há esperança! … - Enterrando os seus olhos nos meus, ausentes, cobertos de água, inertes a tudo e a todos. - Será João? - Perguntei sem convicção. Esta vida é um jogo de dados viciado, e eu estou farta desta merda toda, vou dormir, a cama está suave, os lençóis frescos, acabados de lavar, fecho os olhos, a vida é bela do outro lado do espaço. Porquê que eu não tenho uma nave espacial?

Imagino as imagens a despedaçarem-se como pedaços de um copo acabado de partir que atirara de propósito contra a parede para aliviar os nervos e sentir-me pura, mas elas voltam, vivas e intactas, sorrindo-me irónicas como um pesadelo pronto a desabar sobre mim, enrolando-me num óvulo sufocante e nauseabundo. Tento-me libertar, acordar, mas a força do óvulo é mais forte e eu sufoco, uma voz do exterior chama insistentemente por mim, acordo, agarro-me aquela voz como a água no deserto durante alguns segundos até cair em mim, suada e tremelicante, apercebendo-me que estava acordada, que tudo tinha acabado e ficado para trás, a voz era a do João que mais uma vez me arrancara das entranhas mais triturantes do meu pensamento. Estava livre, solta para respirar o ar da manhã, o sol penetrava no quarto com uma luz estranha e sublime de Inverno, o cheiro do pequeno-almoço na cabeceira era bom e reconfortante, sentia-me feliz, como nos primórdios da infância em que mal sentia o cheiro do Inverno subir-me às narinas corria para a rua e agarrava-me aos troncos das árvores para sentir a vida que corria pelo espaço. Senti uma esperança a crescer em mim como um raio de luz que penetra as trevas à muito fechadas entre si, e vai crescendo, crescendo, tornando-se maior, maior e maior. Levantei-me da cama num pulo, energicamente, contente de mim, vesti-me e corri até lá fora para um longo passeio pela cidade.

No silêncio escuro do quarto, iluminado apenas pelo néon das luzes lá fora, ando de um lado para o outro, qual fantasma pairando pelas paredes… ouço as vozes ausentes a gritarem-me no espírito; Poderosas, vivas, mortas no espaço distante do tempo… Desespero! Agarro-me ao chão, aos tapetes, às paredes, chamo por ele, Victor! Victor! Victor! Victor! A dor trespassa-me… - Sílvia! Sílvia! - O João agarra- me, salva-me mais uma vez - Sílvia o quê que se passa? Pronto, já passou, eu estou aqui. - Eu sei - segura-me o rosto, os cabelos - O que foi, foi mais um pesadelo? Pronto, já passou (abraça-me) - foi João, foi mais um pesadelo. - Menti. - Estou completamente neurótica, estás a ver bem quem alojas-te na tua casa? Uma louca! - Não digas disparates, foi só um pesadelo. - Estou com medo João, muito medo, ficas comigo, ficas? Preciso de ti. - Eu também preciso de ti - abraça-me - Sempre.

O João apaixonou-se por mim, ou pelo menos pensa que sim. Amo-te, sussurrou enquanto me apertava contra o peito na noite passada, mantive-me calada, adormecida, e acordei de manhã ainda abraçada a ele, não me largou por um segundo. Ele sabia o quanto eu precisava dele, e sabia que eu não estava em condições de lhe dar nada em troca, pelo menos não naquele momento. Eu estava doente. A carne do Victor palpitava dentro do meu peito, arrebentava-me as veias; a dor trespassava-me de um lado ao outro do corpo; estava constantemente com hemorragias que não conseguia estancar, desfalecia contra qualquer canto, se não fosse o João, morria ali e nunca mais acordava.

16 Horas e 22 minutos, estou encostada à janela do quarto, inerte, sem me poder mexer, não consigo sair deste estado de letargia deprimente, desta coma de imagens pertencentes ao passado mas sempre presentes em mim como uma praga que me estrangula a garganta, prende-me o corpo e cola-me às paredes até me fundir com elas transportando-me para uma outra paisagem, a trama fatigante das imagens transforma-se agora em sombras e nevoeiro, calmo como a morte. Impera uma pacificidade clara e luminosa junta com os pinheiros verde musgo. Não existe vermelho ou fogo - apenas paz. Tenho frio, tremo, mas não me consigo mexer, hipnotizada pelos meus próprios pensamentos, o João encontra-me, leva-me para a cama, deita-se a meu lado, abraça-me com força, adormecemos juntos.

O Victor morreu, causa de morte - SUICÍDIO. Pedia desculpa numa enorme faixa de tecido que pregou de um lado ao outro da parede, uma nota na mesinha de cabeceira dizia: este pedido de desculpa é só para ti, por favor, retira a faixa da parede e queima-a, e o meu corpo também, não quero um túmulo no cemitério. Faz o que quiseres com as cinzas.

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