A Garganta da Serpente
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Leite Derramado

(Eleazar de Santa'fé)

"… foi até a 25 de Março para…" Sônia, que concentrava-se para colocar o leite dentro da mamadeira sem derramar, esticou o pescoço fora da porta da cozinha para se certificar que não era ouvida pelo seu filho, o pequeno Samuel de um ano e oito meses, que brincava no quintal. "… para comprar o presente de Natal do Samuel!"

Faltava duas semanas para as festas natalinas, Josimar, marido de Sônia, havia acordado cedo e aproveitado o sábado de folga para resolver todas as pendências de fim de ano, presentes, dívidas e, é claro, confraternizações com os amigos.

"Até a hora do almoço ele já deve estar de volta. Porque você não espera e almoça com a gente?"

Dona Daguimar, que era com quem Sônia conversava, agradeceu o convite dizendo que infelizmente tinha compromisso, mas passaria outra hora.

A verdade é que Daguimar conhecia seu irmão Josimar bem o suficiente para saber que ele não chegaria para o almoço (talvez nem para a janta), o que renderia uma briga daquelas com a esposa. Coisa que Daguimar não estava interessada em presenciar.

"Droga!"

Era o leite. Apesar dos esforços da jovem mãe de vinte e cinco anos, ele acabara escorrendo, formando uma poça no chão da cozinha.

Samuel veio correndo do quintal e começou a esfregar o piso com um pano que tinha nas mãos. A mãe deu um berro.

"Não!"

O menino parou assustado, mas era tarde demais.

"Esse guardanapo estava limpinho, Samuel. Olha o que você fez com ele!"

O garoto se acocorou, triste pela bronca, num canto do quintal.

A tia sorriu, lembrou-se do irmão lhe dizendo.

"Aquele moleque fica tão grudado na barra da saia da Sônia que vai acabar ficando afeminado. Agora deu de querer ajudar a mãe a limpar a casa. Vê se pode, onde a Sônia vai, ele vai atrás esfregando o paninho."

O pai podia não entender, mas a tia sendo mais velha (e mãe de quatro filhos) entendia bem aquilo.

Samuel nascera prematuro, com sérios riscos de não sobreviver. Até hoje, era pequeno para sua idade. Era de se esperar que a mãe fosse super protetora, ainda mais ele sendo filho único.

Dona Daguimar despediu-se da cunhada. Ao sair, como era de costume, fechou o portão para que o menino não fosse pra rua, avisando.

"Soninha! O Samuel ainda está com o guardanapo na mão."

"Tá bom! Só vou esquentar a mamadeira e já tiro já."

0:01:00, 0:00:59, 0:00:58... 0:00:02, 0:00:01 fim fim fim.

Tirou o leite quente do micro-ondas e chamou o filho.

"Samuel!"

Esperou.





"Samuel!"





Nada.

"SAMUEL!"

Saiu para procurá-lo, o coração pulsando de uma forma estranha, tentando deixá-la tonta.

O terreno não era grande, ficou lá parada no meio dele enquanto o quintal girava em volta dela. Mesmo com todo aquele movimento nauseante conseguiu focalizar o portão, foi como se puxasse um freio de mão. O carrossel de imagens parou. O coração não. Era a única coisa que ouvia, o próprio batimento cardíaco.

Correu até a entrada da casa, o portão estava fechado, mas não trancado.

Frio na barriga! Imaginou que alguém havia levado seu filho.

"Meu, Deus! Por favor, não! Por favor, Deus, não!"

A súplica ficou apenas em pensamento. A garganta estava colada, não conseguia pronunciar uma sílaba sequer.

Saiu pela rua em desespero, buscou todas as suas forças e conseguiu fazer com que as palavras rasgassem a garganta e fossem cuspidas pela boca.

"Meu filho! Alguém viu meu filho? Socorro! Pelo amor de Deus! Socorro…"

Com as palavras veio também o pranto, que foi mais pesado do que as pernas de Sônia puderam suportar. Caiu ajoelhada até que foi amparada por um vizinho que chamou a polícia.

A busca iniciou-se no próprio quintal da casa e durou apenas quinze minutos.

Samuel foi encontrado dentro de um balde preto ao lado do tanque de lavar roupas, afogado em um palmo de água. O garoto estava encolhido dentro do recipiente, parecia uma trouxinha de roupas de molho, por isso a dificuldade em visualizá-lo. Uma fatalidade!

Tentaram impedir a mãe de ver o corpinho. Seria mais fácil dominar um leão.

Ela ficou cerca de dez minutos abraçada ao cadáver até conseguirem desvencilhá-la levando-a para a cozinha.

Já não chorava mais, nem falava ou se movia. Apenas fitava o chão como um manequim inanimado.

Os amigos e parentes tentavam consolá-la, mas ela só ficava lá, parada, olhando para o chão.

Um único minuto de distração, ninguém entendia como uma coisa daquelas podia ter acontecido.

Mas Sônia sabia! Soube no momento em que viu seu filho, com sua mãozinha fechada, segurando um pano branco.

Samuel tentara lavar o guardanapo para agradar a mãe, a água estava tão difícil de alcançar no fundo daquele balde que, no esforço, o menino acabou caindo para dentro. Seu pequeno corpinho não teve peso suficiente para tombar o recipiente traiçoeiro e, em menos de um minuto, tempo em que a mãe esquentava a mamadeira, desapareceu do quintal.

Muitos falavam pesares, outros choravam lamentos. Sônia ficava imóvel, de olhos fixos no chão…

Olhando para o leite derramado!

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