A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Sobre Peixes de Aquário

(Eleazar de Santa'fé)

O feixe de luz entrou sorrateiramente na sala por uma fresta na cortina da janela.

Seguiu suave através da água do enorme aquário que encontrou à sua frente para ser fragmentada em diversos feixes coloridos como num prisma.

Atingiu então incisivamente o rosto do homem adormecido (e um tanto contorcido) sobre o sofá branco de tafetá, acordando-o.

Ele foi abrindo os olhos lenta e dolorosamente e a primeira coisa que viu foram sombras voando dentro de um arco-íris ondulado. Eram as silhuetas de seus peixes dentro do aquário iluminado pela luz invasora.

Tinha paixão por peixes ornamentais. Ficou alguns segundos imóvel, admirando o espetáculo.

Apenas olhava. Somente isso, mais nada. Sentia-se vazio naquela manhã. Oco talvez fosse a melhor definição por ser mais frágil, mais quebradiço, era como se sentia.

Levantou-se aos estalos de seu corpo mal dormido, pôs comida para seus peixes e enfiou-se no banho.

Cem litros de água quente depois e o corpo estava limpo, mas não parecia. Não quando o espírito continua carregado.

Passou a mão no espelho embaçado pelo vapor do banho escaldante e descobriu seu rosto atrás da névoa espessa. Como era rotina tentou fazer a imagem repetir as mesmas palavras:

"Você é o melhor!"

"Todos gostam de você!"

"Hoje é o seu dia!"

Mas reflexo, que olhava com olhos frios para ele, não tinha nada a lhe dizer naquela manhã. Não havia nada alí além de uma estátua sem volume, um busto de vidro, laminado, que aos poucos ia se escondendo novamente atrás da névoa pálida do chuveiro.

Vestiu um terno azul marinho. No pescoço fez um nó irlandês. Enquanto tomava sua xícara de café, levantou a cortina da sala para olhar a rua por detrás do vidro.

Estranhou! A claridade que via indicava que estava calor lá fora e dentro da sua casa era sempre frio, efeito do ar condicionado, seu ambiente artificial.

Morava em um condomínio para solteiros. As ruas ficavam sempre desertas. A única pessoa que viu foi o vizinho da casa em frente que, como ele, também olhava pela janela.

Não sabia seu nome, mas já havia reparado nele. Era bonito, atraente.

Pensou em acenar, mas em vez disso, largou a renda da cortina, fechando a comunicação.

Olhou o relógio brilhante no pulso, pegou as chaves do carro e, antes de sair, deu algumas batidas no vidro do aquário com os dedos. Exatamente três batidas. Os peixes assustaram-se, ficando alvoroçados dentro da caixa de vidro. Deu um meio sorriso e foi para o carro.

Antes de sair da garagem, fechou hermeticamente os vidros do veículo para ligar o ar condicionado, seu ambiente artificial novamente.

"Agora, sim!" Pensou. E saiu para enfrentar o lento fluxo do rio de asfalto que levava ao seu escritório.

Olhando pelo vidro de seu carro via crianças brincando, casais de mãos dadas, amigos em mesas nas calçadas tomando cerveja, velhos lendo jornais sentados nos bancos de praças... E tudo isso ia ficando para trás conforme passava. "Ficando para trás!" Tal pensamento lhe pesou como bigorna na face geralmente inexpressiva.

Parou no sinal vermelho. Recebeu três batidas leves no vidro ao seu lado, exatamente três! Mesmo o carro sendo blindado, assustou-se.

Era um senhor vestido precariamente que batera com os dedos na janela para chamar a atenção do motorista que se encontrava distraído.

Mesmo sem entender o que aquele senhor de aspecto encardido lhe dizia, o homem do terno azul marinho gesticulou que não, com uma das mãos, e olhou para frente, ignorando o pedestre que dirigiu-se ao próximo carro.

Algum tempo depois chegou finalmente ao seu destino: um imponente edifício espelhado de dezessete andares no coração comercial da cidade.

Entrou na garagem subterrânea e parou em sua vaga, ao lado de seu elevador privativo.

Subiu até o último andar onde ficava seu escritório.

Na recepção, guardando a porta da sua sala, estava sua secretária.

"Bom dia, doutor! Já estou separando os documentos para o senhor assinar."

O nó irlandês na garganta impediu que o cumprimento saísse de sua boca, apenas assentiu com a cabeça e entrou em sua sala, fechando a porta ao passar.

Seu escritório era amplo, cercado por janelas de vidro. Cento e oitenta graus de vista panorâmica da cidade.

Sentiu um calafrio, o ar-condicionado estava mais forte que o normal. Procurou sem sucesso o controle para desliga-lo, tudo bem! Depois pediria para sua secretária cuidar disso.

Parou de frente à sua mesa e ficou olhando o pequeno aquário sobre ela, onde mantinha seu peixe favorito, Betta splendens, um Beta azul marinho. Uma criaturinha solitária. Um peixe de briga que podia lutar até a morte com qualquer intruso que invadisse seu território.

"É engraçado!", pensou.

"Esse peixe é típico de águas muito pobres em oxigênio na Tailândia, águas em que nenhum outro peixe sobreviveria. Mesmo assim defende seu território com a vida. No fim, briga por algo que não presta pra nada!"

Mal concluíra seu raciocínio e viu seu peixe pular para fora do aquário.

Por algum motivo não o colocou de volta na jaula de vidro, ficou olhando enquanto a criatura sufocava. Ele próprio sentia-se assim. Afrouxou a gravata mas o mal-estar não passou.

Foi até a janela e a abriu.

Uma rajada de vento fresco entrou envolvendo todo seu corpo, era um ar real, como não respirava há muito tempo.

Sentia-se bem, leve, era como se aquele vento o inflasse, preenchendo assim o vazio dentro dele.

Fechou os olhos e foi sentindo o vento tornar-se cada vez mais forte, mais rápido, chegava a ser áspero contra a sua pele. Sim, sentia-se bem!

A secretária entrou no escritório com uma pasta de documentos por assinar. Não encontrou o patrão. A única coisa que viu foi um peixe azul marinho debatendo-se em agonia sobre a mesa de vidro.

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br