Depois de muitos anos a pão e água, chegou circo em Tabuí.
Pequeno e fuleiro, montado em meio dia de trabalho. Molecada em cima, fiscalizando
e apreendendo. Marmanjos de butuca. Grã Circo Americano. Glória
para a cidade. Nome pomposo, sugerindo ao povo um monte de artistas estrangeiros.
Merreca de fazer dó. Nem assentos para a distinta plateia. Umas
tábuas mal colocadas, empenadas, garantiam o lugar de umas poucas pessoas.
A lona que o cercava, toda ensebada, cheia de buracos e remendos. Cobertura
não havia.
Assim que notou a movimentação da montagem do circo, a Luiza Abete,
moreninha pra lá de ajeitada, da ladeira do Beco, se ajeitou toda, botou
brinco, passou batom e pó de arroz e foi pra rua. Pensando no mais tarde.
Caçou com os olhos o Nildenô, - sua paixão -, distraído,
ocupado em plena fiscalização do movimento. Ela interessada e
o outro regateando, como quem não quer nada, mas querendo tudo.
- Cê vai no circo hoje, Nildenô?
- Sei não, sá! Confofoovô!...
Até a moça Jaquelina deixou bilhete pro coitado do chefe avisando
que não ia trabalhar na loja de secos e molhados naquela tarde. Tava
meio adoentada...
- Vô lá o quê! Aí o chefe pega no meu pé e
num deixa eu ir no circo!...
A grande estreia seria às sete da noite. Às três
o palhaço, devidamente paramentado, chamava a criançada para percorrer
as três ou quatro ruas da cidade. Às quatro, mais menino que gente.
Começa a bagunça, depois de pequeno ensaio. O palhaço,
montado numa jumenta fogosa, enfeitada com flores de plástico descoradas,
puxa a molecada pela rua do Comércio.
- Hoje tem espetáculo?
- Tem, sim sinhô!
- Hoje tem marmelada?
- Tem, sim sinhô!
- E o paiaço, o que é?
- É ladrão de muié!...
À molecada que acompanhasse o palhaço, fora prometido ingresso
para a estreia. Assim que a tribuzana chega na praça, encontra
o Mirto Ladeira, que vinha do trabalho na roça e, como sempre, com fome,
cansado e puto com as injustiças da vida, mas cheio de amor a Deus. Esqueci
de dizer que Mirto tava montado num jumentinho novo, gordinho e muito animado
e que a jumentinha do palhaço tava no cio. Não deu outra. Paixão
à primeira vista. Assim que se olharam, começaram aquela barulheira,
correram um para a outra e vice-versa. Desobediência plena aos comandos
dos freios e rédeas. Um zurro só. Não adiantou chicote
e espora do Ladeira com os seus gritos de paracuisso e quequiéisso gente
e nem a gritaria do palhaço, tudo captado pelo alto-falante. O jumento
se armou todo e crau. O palhaço teve que pular fora para livrar o trazeiro
e a zueira babenta do animal no seu cangote e caiu de mau jeito, batendo a testa
numa pedra. Mirto Ladeira, no empino do jumento, caiu de costas, rolando no
meio da meninada. Um grande e hilariante espetáculo, como há muito
não visto em Tabuí. O palhaço, meio tonto, sem entender
direito o que acontecia, berrava a plenos pulmões, pelo alto-falante:
- Gente! Oquecouve? Oncotô? Poncovô? Qui trem mais esquisito, sô!...
O Mirto, ainda mais puto da vida pelo tombo e por aquela sem-vergonhice toda,
arrancou a peixeira e queria achar o culpado pela tragédia.
- Arreda, sôs muleque! Cadê ele? Cadê ele?
O palhaço isalou no mundo, abandonando jumenta e catracagem de som. Da
molecada, alguns chegavam a rolar no chão de tanto rir. Outros, mais
inocentes, se retraiam, saindo de mansinho. As meninas, idem, tentando tapar
olhos e ouvidos, ao mesmo tempo. E o povo, com aquela latumia toda, foi chegando,
atraído pela tribuzana transmitida no alto-falante. Quando chegou o padre
Dima, com sua maquininha de retratista sempre à mão, cheio de
interrogações, correndo, arfando e suando dentro da longa batina
preta, foi menino pra todo canto. Não ficou um pra contar a história
e pra pegar o ingresso. Aí o seu Mirto Ladeira caiu de joelhos, aos pés
do vigário, pedindo perdão por aquele pecado para o qual, inconscientemente,
acabava de colaborar, trazendo a jumentinha pra praça, justo naquela
hora.
Bem depois das sete em ponto começa o espetáculo. Quase só
adultos. A meninada, correndo do padre, ficara sem o ingresso prometido. Como
o circo só tinha lugar para uns poucos sentados nas tábuas empenadas,
quem podia trouxe a sua cadeira de casa. No primeiro número, lá
estava o palhaço de novo, precedido pelo retumbar de tambores que saía
de uma radiola velha. Começou ele com aquele papo de palhaço,
conseguindo uma ou outra risada amarela, até que pediu um voluntário
para a mágica. Sim, era mágico o palhaço. O Milomem, -
mais conhecido como Milinho - que havia entrado por baixo do pano, garoto assim
duns treze anos, se ofereceu. O palhaço mágico mandou que ele
se abaixasse, com as mãos nos pés e o traseiro arrebitado. Aí
aprontava aquele monte de palhaçadas, conseguindo que algum ou outro
risse. Nesse primeiro número de mágica, o palhaço arrancou
do bumbum do Milinho, assim fazendo muita força, uma peteca, com penas
bem compridas e um ramalhete de flores cheias de espinhos.
- Isso é uma indecência! - bradou a dona Daiana, doida para aparecer
e fazer propaganda pra sua tendinha de ler a sorte lá no canto da Rua
do Assobio.
- É memo! Aqui tem famia! Vamo pará cuisso! - gritou dengosa e
virando o zoinho a menina Carorina, pendurada no pescoço do Zé
Pretinho e numa esfregação quisó.
- Tadinho do minino! - gemeu a dona Cláudia - a mãe do ano de
Tabuí - arrepiada no seu recatamento, crente que aquele monte de espinhos
tinha, de fato, saído do traseiro do Milinho.
- Meu Deus do céu! Que trem escandaloso! - reclamou a moça Dianaminha,
olhos carentes, na esperança de ser achada, dentro do circo, por aquele
menino que queria ser padre....
O mágico palhaço, desconfiado que o mar ali não estava
para peixe, rapidinho recolheu a aparelhagem. Fez gesto pro auxiliar e subiu
novamente o rufar de tambores, enquanto ele caía fora do picadeiro. Passaram-se
vários minutos, só tocando música militar de um bolachão
arranhado, naquela radiola velha. O público impaciente. Aí, é
anunciado pela voz do palhaço, o número do leão.
- Bicho feroz, vindo há poucos dias lá das banda da Floresta Amazônica!...
- Eu, heim?!... Leão tupiniquim? Nunca vi isso!... - era a professora
Patricilda, - mostrando sapiência para os vizinhos da plateia.
O picadeiro foi cercado com uns pedaços de tela grossa mal emendados
e o leão trazido, numa jaula, carregado por quatro pessoas, uma delas
o palhaço, que era também o domador do circo, homem bem entendido
de habitat animal. O bicho chegou cochilando e cochilando ficou, mesmo quando
a jaula foi aberta. Deitado, magro, sujo e desanimado, só se levantou
quando ouviu o estalo do chicote do palhaço domador. Aí a fera
ficou brava e saiu da jaula soltando urros fortíssimos, fazendo muita
gente na plateia ficar com o coração pequenininho na mão.
Houve quem, aproveitando a oportunidade, pulasse no colo do vizinho, como aconteceu
com a Carorina e a Analuiza - as duas já um pouco mal faladas pelas redondezas.
A última porque dera, ultimamente, a andar com polícia e garrucha
na cintura. O domador estala de novo o chicote e o leão se assusta, indo
de ré e batendo na tela que o prendia ao picadeiro. Um pedaço
dela cai pro chão. Não deu outra. Vendo o buraco aberto, o bicho
cai fora e vai pro meio da plateia, - da turma que trouxera cadeira de
casa - urrando e encarando um ou outro com olhos apetitosos. Foi nessa hora
que o delegado Coríntio, que mal tinha chegado e arrumado um cantinho
pra sua cadeira, sentindo o bafo do leão assim bem pertinho dele, mas
querendo dar uma de machão, resolve apelar, sem decidir se corria ou
se ficava. Recurso foi gritar, mais forte que o leão, para assustar o
bicho:
- Larga d'eu, trem! Arreda, satanais!...
Cada um se vira como pode. Saindo de fininho. Alguns, pé ante pé,
carregando sua cadeirinha. Ninguém queria encarar o bicho. De vez em
quando ele, - o leão -, sem entender que estava livre, soltava urros
que arrepiavam cabelo de neguinho. E o povo vazando fora, querendo distância
da fera. Muita gente subiu pras tábuas que formavam a arquibancada do
circo e aquilo foi pesando. O Pedro Alfaiate, mais conhecido por Pedroca, que
conseguira lugar na emenda entre uma tábua e outra, estava quase vazando,
com o traseiro afundado, já que as tábuas arrebitaram os cantos.
- Ai, meu Deus, desde pequena eu queria assistir o circo, mas o trem aqui num
tá bão!... - isso era dona Renata, - que chegara recentemente
lá do Arraial do Sossego -, gemendo, gungunando com seus botões,
chorosa pelo tempo perdido e o dinheiro gasto.
Aí o leão resolve olhar e caminhar pro rumo do povo das tábuas,
e a turma, quase em peso, se levanta e começa a pular, caindo e rolando
de qualquer jeito, vazando por debaixo do pano e ganhando o mundo. Menos o Pedroca,
que tava procurando os óculos para achar a bengala. Acontece que a turma,
ao levantar da tábua, o peso sobre esta diminui e o Pedroca fica com
o traseiro preso e os ovos espremidos. Esquecendo de óculos e bengala,
gemendo, com os olhos cheios de lágrimas e muito mais alto que o domador
palhaço, que chamava o leão pelo alto-falante, o Pedroca reuniu
as parcas forças, premido pela dor, e gritou, implorando, na esperança
de que alguém o atendesse:
- Senta, gente!... Senta meu povo! Senta que o leão é manso!...
E soltou um gemido de agonia com as forças que ainda tinha, prestes a
desfalecer:
- Ai, meu saco!...
Ainda bem que, nessa hora, antes de vazar pelo buraco mais perto que achara
na lona, dona Quiristina viu a cena, teve dó do homem e do seu documento,
que já devia estar mais do que roxo, e se pendurou no meio da tábua
para, forçando-a, libertar o Pedroca do sufoco.