Cê pensa que Tabuí é um fim de mundo? É não.
É que ocê não conhece a Ingrizia. Lá, sim. É
onde o vento encosta o cisco. Tem pra mais de vinte anos que dezenove pessoas
moravam na Ingrizia e, embora o povinho de lá comece cedo a fazer nhanha,
- já que a outra única diversão é pescar -, a cada
um que nasce, dois ou três vão embora. A população
de Ingrizia, hoje, resume-se a treze pessoas: o Lazo, a Fiíca, os sete
filhos e mais quatro gatos pingados que não acharam pra onde ir.
Ingrizia fica lá pras cucuias, no entremeio da Serra do Urubu, prensada
entre esta e o Rio Sorongo. Do lado que podia morar mais gente, sem tanto morro,
é mata fechada, onde não andam jumento e nem bode. O caminho para
chegar na Ingrizia é uma tortuosa trilha, de mais de quatro léguas,
subindo e descendo morro, cortando brejos e tafuiando pelas matas. O povo de
lá é tão acostumado a viver só que, quando chega
gente de fora, fica assustado e se esconde. O visitante corre o risco de chegar
naquelas bandas, - isso se não errar a trilha -, e não achar ninguém.
O Lazo, com sua turma, passava anos se ir à cidade. Dos filhos, só
os dois mais velhos, Guinel e Laíde, conheciam Tabuí. Semana Santa.
Lá vão eles, com roupinha de ver Deus, em fila indiana, trilha
a fora, ainda de madrugada, para participarem da procissão do Senhor
Morto, organizada pelo padre Anacleto, pro comecinho da noite. Parada só
num córrego ou noutro para beber água, molhar os pés e
lavar o suor do rosto. Com cuidado para espantar as piranhas e as arraias e
pondo sentido para evitar o ataque da sucuri traiçoeira. Se algum filho
parava para catar araçá, gabiroba, coquinho, ovo de passarinho
ou algum galho de peidorreira, depois tinha que correr atrás e, segundo
ordem do pai, ficar no final da fila.
- O úrtimo da fila é quem a onça sorratera pega premero,
viu?
Por medo, ninguém queria ficar pra isca de onça e só paravam
mesmo quando a fome apertava demais da conta ou quando o de comer era pra lá
de apetitoso. Paravam também por outros três motivos: pras necessidades,
- todo mundo de uma vez -, cada um atrás de uma moita; para comer a matula
de frango com farinha de mandioca, na beira da Lagoa dos Valérios; ou
para rezar, ao pé de cada cruz, um mistério do terço. Chegavam
na cidade de terço garantido, uma vez que passavam por cruzes que assinalavam
cinco mortes no caminho, uma de morte morrida, outra de morte matada e três
por morte d'onça. Mas, naquele dia, assim que terminaram as quatro léguas
da trilha e entraram na estrada esburacada de carro de boi, - com mais duas
léguas chegariam a Tabuí -, logo no começo, uma cruz nova,
de peroba. Rezaram mais um mistério do terço. Nem bem andaram
trinta metros, outra cruz. Mais um mistério. Logo depois, outra. Todas
de peroba. Outro mistério. E não parava de aparecer cruz... cruzcredo!
Enfileiradas. A cada trinta metros, mais uma. Foi aí que o Guinel protestou.
- Pai, já rezemo quatro terço e num pára de aparecê
cruiz... assim nóis vai chegá pra procissão só amanhã!...
Lazo resolve olhar melhor as últimas cruzes e as achou estranhas. Bem
diferentes das antigas, pois que tinham o pé comprido demais, desproporcional
aos braços e à cabeça, muito curtos.
- Gente, vamo pulá uma cruiz ô outra! O Guinel tá certo.
Num vamo rezá em todas não... que me descurpe cada falecido...
Foi aí que apareceu outro ingrediente na história. Amarrados nos
braços de cada cruz, a partir do Capão dos Óculos, - coisa
esquisita -, dois fios de arame ligando uma à outra. Aquilo foi muito
curioso, novidade de primeira, foi bão demais da conta pra meninada e
apressou a caminhada de todos, pois, quando chegavam numa cruz e viam que tava
amarrada com o arame, corriam pra seguinte e pra seguinte a fim de terem certeza
de que o arame continuava.
- Ôta arame cumprido, pai!...
Aí foi que o Lazo entendeu tudo.
- Muié! Fios! Vamos cortá a rezação! Isso daí
num é cruiz! É a tal de luiz eletri qui vi dizê qui tá
chegano lá na Mutuca. Essas cruiz pareceno girafa deve sê pra sigurá
esses arame que vai acendê a luiz da Mutuca... bãobora digero quisinão
a gente num bamo vê nem chero de procissão!...