A jardineira que carregava o povo de Tabuí era desengonçada. E põe
desengonçada nisso. Mas o dono da dita cuja, o Vivaldino, homem caprichoso
e cheio das invenções, sempre tava arrumando uma melhoria na sua
máquina de ganhar a vida. Arruma daqui, arruma dali, a coisa foi melhorando.
O máximo mesmo foi quando ele inventou de colocar uma porta na traseira
da dita cuja e uma catraca com o cobrador no meio do corredor. Povo de Tabuí
ficou tão orgulhoso da sua empresa de transporte que nunca mais a jardineira
viajou de banco vazio. Todo mundo queria experimentar a novidade que, segundo
se dizia, sem tirar nem pôr, era igual aos coletivos de Bel'Zonte. E Vivaldino,
vivo pra danar, ganhando dinheiro. Carregava gente, galinha, porco, bode, pato,
ovos, saco de carne, abóbora, tudo, em troca de uns trocados.
Foi aí que um dia entrou o velho Honorato com sua cara metade, a Honorina
e mais umas muquiças na jardineira. Indo pra Tabuí. Se ajeitaram
como puderam. Jardineira quase desmontava nas subidas e descidas. Ar parado. Sol
do meio-dia. Calor de matar. Fedentina braba. Poeira sufocante deixando todo mundo
meio bazé. Honorina, de pandu cheio, vendo aquilo tudo, sentindo aqueles
cheiros, vendo as árvores passando de carreirinha, ouvindo a conversa mole
do Tõe Carapina, com bafo de cachaça misturado com cheiro da gasolina,
começou a sentir tonteira. Honório não teve conversa e soltou
o verbo:
- Pára! Pára! Pára aí, Vardino!
Vivaldino, todo cheio de paciência, pára a condução,
olha pra trás e pergunta:
- O quê que foi home de Deus?
- É a muié qui tá cum pobrema, sô! Nóis vai
descê um tiquinho! Péra aí!
Desceram. Honorina respirou um ar mais puro, sem poeira e fedentina, e melhorou.
Toca a jardineira. Tõe Carapina, com a garrafa da Providência no
bolso traseiro, de vez em quando dava uma bicada para molhar a palavra. Soltava
o verbo e ficava mais bêbado e chato, contando potocas e piadas sem graça
e até inconvenientes. Ninguém mais tava aguentando sua conversa
mole na parte traseira da jardineira, de pé e trocando as pernas.
Aí é que entrou a madama. Gente fina, com jeito de cidadã.
Todo mundo viu. Sapatos de salto alto. Batom vermelhinho nos lábios. Bolsa
das mais chiques no ombro. Vestido verde, longo e decotado. E um perfume!... ôta
perfume! Daqueles que atraem qualquer nariz.
Madame, toda dengosa, com passo de veada e nariz arrebitado, não olha pra
ninguém. E tava injuriada sentindo a capiauzada silenciosa de olhos pregados
nela. Tõe Carapina, o bebum, de butuca e de boca aberta, foi seguindo a
recém-chegada pelo corredor da jardineira. Acontece que a madame, ao fazer
força para passar na catraca, se descuidou um pouquinho e deixou escapar
um sonoro pum.
Todo mundo volta a olhar para a distinta, agora, com cara de surpresa e reprovação.
Mas nem precisava. Ela já não tinha onde botar a cara. Vermelha
como um pimentão maduro. Pum todo mundo solta, mas, assim, vindo de uma
madame, ele tinha uma cor muito especial. Ela passa pela roleta, passa pelo Honório
mais a Honorina e vai lá pra frente, sem nem olhar de lado, tonta de vergonha.
Mas voltemos ao Tõe Carapina. Passa também pela roleta e vem vindo
meio cambaleante. Cai aqui, cai acolá... Senta no colo dum negão
que lhe dá um chega pra lá. Aí vem pra bem junto da madame
e, todo serioso, dá mais uma bicada na Providência e, meio consolativo,
fala bem alto, pra todo mundo ouvir:
- Dona madama! Fica com vergonha não, tá? Hic!... oia, todo
mundo peida, sá! Óia, motorista peida, cobradô peida, hic!...
eu peido, aquela veia peida... hic!... fica com vergonha não, tá?
Madame não tinha onde colocar a cara. Honorina, quando viu ser citada como
"aquela veia" que peida e os passageiros olhando para ela com
cara de riso, não aguentou. Passou mal outra vez. Chamou o juca com
todo o entusiasmo. Uma parte do vomitado lambuzou o vidro e a outra foi misturar-se
à poeira da estrada. Honorina cutuca no Honorato e gunguna umas coisas
tampando a boca com a mão. E o velho outra vez põe a boca no mundo:
- Pára! Pára! Pára aí, Vardino! A muié tá
com pobrema de novo!
- Que que foi dessa vez?
- É que ela foi lançá e gumitô a dentadura!
- Foi longe?
- Não... foi bem ali acolá lá atrais! Dá uma macharré
pa trais, dá Vardino!
Vivaldino engata uma marcha-ré na jardineira que volta sacolejando de má
vontade uns cem metros.
- Pára! Pára, Vardino! Foi aqui!
Honorato desceu. Procurou a danada da dentadura tempão danado enquanto
a Honorina ficou dentro da jardineira tampando, com a mão, a boca murcha.
Depois de um bom tempo, volta o Honorato, meio triste e com cara de nervoso.
- Uai, Honorato, num achô a dentadura não?
- Uai, sô! Inté que achá ieu achei! Mas num é que a
rodera passô in riba e ismigaiô ela?