A Garganta da Serpente

François Coppée

François Édouard Joachim Coppée
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Os Tamanquinhos de Natal

(François Coppée)

Era uma vez, há tanto tempo que todos esqueceram a data, em uma cidade do norte da Europa cujo nome é tão difícil de pronunciar que ninguém se lembra dele, um rapazinho de sete anos chamado Wolff, órfão de pai e mãe e entregue aos cuidados de uma velha tia, mulher áspera e avarenta, que não beijava o sobrinho senão no dia de Ano Novo e que soltava um suspiro de pesar sempre que lhe dava uma tigela de sopa.

Contudo, o pobre menino era dotado de tão boa índole que, mesmo assim, estimava a tia, apesar de ter muito medo dela e de não poder olhar, sem tremer, para a grande verruga ornada de quatro pêlos grisalhos que ela tinha na ponta do nariz.

Como a tia de Wolff era conhecida por ter casa própria e uma meia de lã cheia de dinheiro em ouro, não se atrevera a mandar o sobrinho à escola dos pobres; mas fizera tais diligências para conseguir que o mestre-escola onde Wolff estudava lhe fizesse um abatimento, que aquele pedante, vexado por ter um discípulo tão malvestido e pagando tão mal, punha-lhe muitas vezes, e sempre injustamente, um letreiro nas costas e uma carapuça de orelhas de burro na cabeça, e chegava a incitar contra ele os outros alunos, filhos de burgueses abastados, que faziam do órfão o seu burro de carga.

Em consequência, o pobre garoto era infeliz como as pedras da rua e escondia-se em todos os cantos para chorar, quando chegou o Natal.

Na véspera do grande dia, o mestre-escola devia levar os discípulos à missa do galo e acompanhá-los depois à casa dos pais.

Ora, como o inverno era muito rigoroso, e como nos dias antecedentes caíra grande quantidade de neve, os alunos chegaram à escola, à hora combinada, muito agasalhados, com barretes de pele enterrados até as orelhas, dois ou três casacos, luvas ou mitenes de lã e botas de sola grossa e pregueada. Wolff foi o único que se apresentou tiritando, com sua roupa de todos os dias, em meias de camponês e com os pés calçados em pesados tamancos.

Os outros rapazes, vendo o seu ar acanhado e o seu pobre vestuário de camponês, cansaram-se de escarnecê-lo; mas o órfão estava tão entretido em aquecer as mãos, chegando-as à boca, e as frieiras doíam-lhe tanto, que não reparou nisso. E o bando de garotos, caminhando dois a dois com o mestre-escola à frente, dirigiu-se para a vila.

A igreja estava resplandecente de tochas acesas; e os garotos, excitados pelo calor agradável, aproveitaram os sons do órgão e do canto para conversarem a meia voz. Todos gabavam a ceia que os esperava em casa. O filho do burgomestre tinha visto, antes de sair, um pato enorme, cheio de trufas que o salpicavam de pontos negros, dando-lhe o aspecto de um leopardo. Em casa do primeiro almotacel havia um pinheiro pequeno dentro de uma caixa, e dos ramos desse pinheiro caíam laranjas, confeitos e polichinelos. E a cozinheira do tabelião prendera atrás da cabeça, com um alfinete, as duas contas da touca, o que fazia unicamente nos dias de inspiração, quando tinha certeza de ter executado com esmero o doce favorito.

Depois, também o que lhes levaria o Menino Jesus, o que ele colocaria nos sapatos que eles teriam o cuidado de deixar na chaminé, antes de irem para a cama; e nos olhos daqueles garotos, espertos como um bando de ratos, cintilava antecipadamente a alegria de verem, quando acordassem, o papel cor-de-rosa dos sacos de amêndoas, os soldados de chumbo enfileirados na sua caixa, as casinhas de madeira envernizada e os magníficos palhaços vestidos de púrpura e lantejoulas.

O pobre Wolff sabia perfeitamente, por experiência, que sua tia avarenta o mandaria para a cama sem ceia; porém, como estava certo de ter sido o ano todo tão obediente e aplicado quanto era possível, esperava ingenuamente que o Menino Jesus não se esquecesse dele, e tencionava colocar seus tamancos em cima das cinzas da lareira.

Logo que terminou a missa do galo, os fiéis retiraram-se, impacientes pela ceia, e o bando de estudantes, sempre dois a dois e precedidos pelo pedagogo, saiu da igreja.

Fora, debaixo do pórtico, sentado em um banco de pedra sobre o qual havia um nicho ogival, dormia uma criança coberta com um vestido de lã branca e com os pés nus, apesar do frio. Não era um mendigo, porque o vestido era asseado e novo, e ao seu lado, no chão, viam-se, presos por um pedaço de sarja, um esquadro, um compasso, um machado e outros utensílios de aprendiz de carpinteiro. Seu rosto, iluminado pela luz das estrelas, tinha uma expressão de bondade divina, e os cabelos, compridos e anelados, de um loiro ruivo, formavam-lhe como que uma auréola em torno da fronte. Mas os pés, pequenos e arroxeados pelo frio daquela cruel noite de dezembro, oprimiam o coração.
Os estudantes, tão bem-vestidos e calçados para o inverno, passaram com indiferença junto da criança desconhecida; alguns, filhos dos sujeitos mais notáveis da terra, dirigiram àquele vagabundo um olhar onde se lia o desprezo dos ricos pelos pobres, dos gordos pelos magros.

Mas o pequeno Wolff, que fora o último a sair da igreja, parou comovido diante da formosa criança que dormia.

- Ah! - pensou o órfão -, que horror! Este pobre menino anda descalço, com um tempo tão ruim . . . E, o que é ainda pior, não tem um sapato ou um tamanco onde o Menino Jesus possa lhe deixar alguma coisa para lhe aliviar a miséria, enquanto ele dorme!

E, impelido pelo seu bom coração, Wolff descalçou o tamanco do pé direito, colocou-o no banco ao lado da criança adormecida e, conforme pôde, ora com o pé no ar, ora molhando a meia no gelo, voltou para a casa da tia.

- Que patife, este! - exclamou a velha, enfurecida, quando viu o garoto descalço. - O que você fez com o tamanco, miserável?

Wolff não sabia mentir, e, apesar do terror que sentia vendo os cabelos grisalhos do nariz da megera já eriçados, tentou, balbuciando, contar a sua aventura.

A velha, porém, deu uma gargalhada medonha.

- Ah!, você se descalçou por causa de um mendigo! Ah!, inutilizou seu par de tamancos por causa de um vadio! . . . Muito bonito, sim, senhor! . . . Pois bem, visto isso, vou pôr na chaminé o tamanco que lhe resta, e o Menino Jesus vai deixar lá esta noite, com certeza, alguma coisa para eu o açoitar quando você acordar . . . E amanhã você ficará o dia todo a pão seco e água . . . Veremos se, de outra vez, você torna a dar os sapatos ao primeiro vagabundo que aparecer.

E a velha avarenta, depois de dar umas bofetadas no pobre menino, mandou-o ir para o sótão onde ele dormia. O garoto, desesperado, deitou-se no escuro, e não tardou a adormecer no travesseiro ensopado de lágrimas.

No dia seguinte, pela manhã, quando a velha, acordada pelo frio e pelo catarro, desceu à sala de baixo, que maravilha!, viu a grande chaminé cheia de brinquedos cintilantes, de caixas de bolos magníficos, de riquezas de toda espécie; e, no meio desse tesouro, o tamanco do pé direito, o que seu sobrinho dera ao pequeno vagabundo, estava junto ao do pé esquerdo, que ela deixara ali, nessa mesma noite, e onde tencionava meter um feixe de chibatas.

E enquanto o pequeno Wolff, que acordara ao ouvir os gritos da tia, se extasiava ingenuamente defronte dos esplêndidos presentes de Natal, ouviram-se grandes gargalhadas lá fora. A velha e o menino saíram para saber o que aquilo significava, e viram todas as vizinhas reunidas em volta do chafariz. O que sucedera? Uma coisa muito engraçada e muito extraordinária! Os filhos de todos os ricaços da terra, aqueles que os pais queriam surpreender com os melhores presentes, tinham encontrado apenas chibatas dentro dos sapatos.

Então, o órfão e a velha, lembrando-se das riquezas que estavam em sua chaminé, sentiram-se atemorizados; mas, de repente, viu-se chegar o padre, com a fisionomia transtornada. Tinha visto naquele momento, em cima do banco da porta da igreja, no lugar onde na véspera uma criança vestida de branco e descalça, apesar do frio, estivera com a cabeça encostada, dormindo, um círculo de ouro incrustado na pedra.

E todos se benzeram com devoção, compreendendo que aquela formosa criança adormecida, que tinha ao seu lado utensílios de carpintaria, era Jesus de Nazaré em pessoa, que se tornara por uma hora tal como era quando trabalhava em casa de seus pais, e curvaram-se perante aquele milagre que Deus se dignara a fazer a fim de recompensar o ânimo e a caridade de uma criança.

  • Publicado em: 13/12/2002
menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br