(à Vina)
Um dia, o destino, trôpego velho de cabelos cor da neve, deu-me uns sapatos
e disse-me:
- Aqui tens estes sapatos de ferro, calça-os e caminha... Caminha sempre,
sem descanso nem fadiga, vai sempre avante e não te detenhas, não
pares nunca!... A estrada da vida tem trechos de céu e paisagens infernais;
não te assuste a escuridão, nem te deslumbres com a claridade;
nem um minuto sequer te detenhas à beira da estrada; deixa florir os
malmequeres, deixa cantar os rouxinois. Quer seja lisa, quer seja alcantilada
a imensa estrada, caminha, caminha sempre! Não pares nunca! Um dia, os
sapatos hão-de romper-se; deter-te-ás então. É que
terás encontrado, enfim, os olhos perturbadores e profundos, a boca embriagante
e fatal que há-de prender-te para todo o sempre!
Isto disse-me um dia o destino, trôpego velho de cabelos cor da neve.
Calcei os sapatos e caminhei, O luar era profundo; às vezes, cantavam
nas matas os rouxinois... Outras vezes, ao sol ardente do meio-dia desabrochavam
as rosas, vermelhas como beijos de sangue; as borboletas traziam nas asas, finas
como farrapos de seda, os perfumes delirantes de milhares de corolas! Outras
vezes ainda, nem uma estrela no céu, nem um perfume na terra, e eu ouvia
a meus pés a voz de algum imenso abismo. Passei pelo reino do sonho,
pelo país da esperança e do amor que, ao longe, banhado pelo sol,
dá a impressão duma imensa esmeralda, e vi também as terras
tristes da saudade, onde o luar chora noite e dia! Não me detive nem
um só instante! O coração ficou-me a pedaços dispersos
pelos caminhos que percorri, mas eu caminhei sempre, sem fraquejar um só
momento!... Há muito tempo que ando, tenho quase cem anos já,
os meus cabelos tomam-se da cor do linho, e o meu frágil corpo inclina-se
suavemente para a terra, como uma fraca haste sacudida pela nortada. Começo
a sentir-me cansada, os meus passos vão sendo vagarosos na estrada imensa
da vida!
E os sapatos inda se não romperam!
Onde estareis vós, ó olhos perturbadores e profundos, ó
boca embriagante e fatal que há-de prender-me para todo o sempre?!...
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