A Garganta da Serpente
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Crônica da hipocrisia

(Fernanda Hanna)

Todos os dias passo por aquela rua estreita do Grajaú e vejo a velha na janela.

Nunca a deixa.

Ela e uma xícara velha.

Sempre me questiono acerca do conteúdo.

A curiosidade me consome.

Não mais do que a de entender a velha na janela.

Sempre lhe digo o tradicional "dia!!!" e nada me responde.

Assim concluí os estudos, cresci, me fiz homem, casei e tive filhos, os quais seguiram a mesma trilha e viram todos os dias aquela senhora e sua xícara acostadas no parapeito daquela janela.

Toda a vizinhança curiosa indagava sobre a cena, mas ninguém ousava aproximar-se muito porque havia comentários dando conta de que era bruxa.

E só podia ser.

Tantos anos na mesma posição, explicação plausível deveria haver.

E o povo especulava.

Um dizia que ficava assim porque matou o marido de tanta ordens que lhe dera.

O pobre desgostou e morreu.

Outro dizia que destruíra a felicidade da filha matando o genro em um grande poço.

Sim, por tratar-se de um plebeu deu venenos de encantamento inverso ao moço que, entorpecido, não viu a fossa e ali mergulhou profundamente e permaneceu para sempre.

Há quem diga que ainda nestes dias ouvem-se gritos no escuro, apesar do escuro.

A neta tomou para si e logo botou em um internato só para moças, onde permanece, com previsão de saída aos vinte e um anos, para casar com o neto do banqueiro.

E só com ele, porque dinheiro é bom e a tradição familiar há que ser mantida.

Assim, depois de tantos felizes e bons arranjos, em um dos seus preparativos para uma nova empreitada, desta feita tentar contra a empregada, com quem o velho, antes de morrer, a havia traído muitas vezes, inclusive com filhos, bastardos, mas filhos, um acidente provocou-lhe a cegueira.

Pó de maldade vendou-lhe os olhos para sempre, mas ressoa em sua mente até os dias de hoje, o que a faz desvairada e insana, os gritos desesperados daqueles que desgraçou.

No inferno das horas que teimam em passar tudo se ouve.

Merece, portanto, a serpente a cegueira, a janela e a velha xícara.

A primeira para que se perca.

A segunda para que a vejam perdida.

E a terceira, vazia.

(São Paulo, 30.11.2004)

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