Zhon Xun enfiou uma colher cheia de gelatina na boca da mulher e disse que
tanto fazia, podia ser feijão frito fervendo - como agora a pouco - ou
o porco apimentado que já estava preparado, podia estar gelado ou ser
servido fervendo, que não faria diferença. Estavam diante de uma
mulher de pedra, tão resistente quanto a grande muralha que serpenteava
pela China do norte. Os camponeses espantavam-se.
A mulher não tinha mais sensibilidade e paladar desde que fora atropelada
por um caminhão e ficara sete dias e sete noites em coma, com o crânio
rachado. O médico havia dito que era um milagre ela estar viva e ter
apenas perdido o gosto, além do olfato. O que era, para seu padrasto,
uma perda tolerável diante da gravidade do acidente.
Ela não achava assim. Para Chan, estar privada de sentir o gosto e o
cheiro das coisas obrigava-a a procurar uma memória dessas sensações.
Quando comia uma melancia, fechava os olhos e tentava se aproximar ao máximo
da verdade que havia naquele pedaço de esponja molhado. Mas a memória
se apagava aos poucos sem o ingresso de novas informações, assim
como um tecido tingido desbota no sol. A memória simplesmente não
existe sozinha. O tempo acaba com tudo.
Tinha perdido o equilíbrio depois do atropelamento. Vivia sentada. Não
ficara com cicatriz alguma, e quem a visse não diria se tratar de uma
ressuscitada. Foi o médico quem usou a expressão. "Chan nasceu
de novo", disse a Zhon Xun, o padrasto que agora exibia-a em feiras populares
para pagar o custo dos remédios. Ele esquentava substâncias em
uma colher e enfiava na boca da menina, que não sentia nada. Ficava assim
uns segundos e cuspia, não mostrando nenhuma reação adversa
à brutalidade. Depois, engolia a gelatina. Em outro número, o
homem a fazia mastigar pimenta e as pessoas esperavam lágrimas de sofrimento
brotarem dos olhos de Chan. Mas ela apenas ficava indiferente. O povo irrompia
em aplausos.
Não sabiam que aquilo era fruto de um acidente. O padrasto descrevia
uma mulher forte e resistente, quando Chan era apenas pouco mais que uma menina,
e tão frágil que se deixava dominar - sem alternativa - por um
Zhon Xun pragmático. Terminado o show, o velho recolhia as moedas e descansava.
Chan ficava olhando um ponto qualquer, tentando se lembrar do momento em que
atravessou a rua e, sem explicação, foi jogada à distância
pelo caminhão de peixe. Não havia registrado a cena, a memória
parava no momento em que saíra do bangalô de X'ao para comprar
no parque, do outro lado da rua, o algodão doce que o vendedor anunciava.
O noivo ficara rindo com o desejo da amada, sair correndo de seus braços
para comprar açúcar em forma de nuvem colorida. O tempo pulava
para a cena de uma mulher de branco perguntando insistentemente seu nome e seu
endereço. Chan não sabia mais responder.
A memória era uma coisa estranha. Chan gostaria de saber o que havia
acontecido. Onde estava o seu noivo X'ao? Por que perambulava por vilas e feiras
imundas com seu padrasto, comendo coisas? Qual a razão de não
conseguir se manter de pé? Zhon Xun iria iniciar mais um show. Chamou
Chan para perto de si e começou a esquentar um óleo viscoso e
amarelo numa espiriteira, que já borbulhava na colher. Disse as palavras
de sempre, entoando-as com a ênfase exata, nos momentos certos. A mulher
fechou os olhos e abriu a boca. Pensou no algodão doce e no parque.