A Garganta da Serpente

Flávio Ilha

  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Sabores

(Flávio Ilha)

Zhon Xun enfiou uma colher cheia de gelatina na boca da mulher e disse que tanto fazia, podia ser feijão frito fervendo - como agora a pouco - ou o porco apimentado que já estava preparado, podia estar gelado ou ser servido fervendo, que não faria diferença. Estavam diante de uma mulher de pedra, tão resistente quanto a grande muralha que serpenteava pela China do norte. Os camponeses espantavam-se.

A mulher não tinha mais sensibilidade e paladar desde que fora atropelada por um caminhão e ficara sete dias e sete noites em coma, com o crânio rachado. O médico havia dito que era um milagre ela estar viva e ter apenas perdido o gosto, além do olfato. O que era, para seu padrasto, uma perda tolerável diante da gravidade do acidente.

Ela não achava assim. Para Chan, estar privada de sentir o gosto e o cheiro das coisas obrigava-a a procurar uma memória dessas sensações. Quando comia uma melancia, fechava os olhos e tentava se aproximar ao máximo da verdade que havia naquele pedaço de esponja molhado. Mas a memória se apagava aos poucos sem o ingresso de novas informações, assim como um tecido tingido desbota no sol. A memória simplesmente não existe sozinha. O tempo acaba com tudo.

Tinha perdido o equilíbrio depois do atropelamento. Vivia sentada. Não ficara com cicatriz alguma, e quem a visse não diria se tratar de uma ressuscitada. Foi o médico quem usou a expressão. "Chan nasceu de novo", disse a Zhon Xun, o padrasto que agora exibia-a em feiras populares para pagar o custo dos remédios. Ele esquentava substâncias em uma colher e enfiava na boca da menina, que não sentia nada. Ficava assim uns segundos e cuspia, não mostrando nenhuma reação adversa à brutalidade. Depois, engolia a gelatina. Em outro número, o homem a fazia mastigar pimenta e as pessoas esperavam lágrimas de sofrimento brotarem dos olhos de Chan. Mas ela apenas ficava indiferente. O povo irrompia em aplausos.

Não sabiam que aquilo era fruto de um acidente. O padrasto descrevia uma mulher forte e resistente, quando Chan era apenas pouco mais que uma menina, e tão frágil que se deixava dominar - sem alternativa - por um Zhon Xun pragmático. Terminado o show, o velho recolhia as moedas e descansava.

Chan ficava olhando um ponto qualquer, tentando se lembrar do momento em que atravessou a rua e, sem explicação, foi jogada à distância pelo caminhão de peixe. Não havia registrado a cena, a memória parava no momento em que saíra do bangalô de X'ao para comprar no parque, do outro lado da rua, o algodão doce que o vendedor anunciava. O noivo ficara rindo com o desejo da amada, sair correndo de seus braços para comprar açúcar em forma de nuvem colorida. O tempo pulava para a cena de uma mulher de branco perguntando insistentemente seu nome e seu endereço. Chan não sabia mais responder.

A memória era uma coisa estranha. Chan gostaria de saber o que havia acontecido. Onde estava o seu noivo X'ao? Por que perambulava por vilas e feiras imundas com seu padrasto, comendo coisas? Qual a razão de não conseguir se manter de pé? Zhon Xun iria iniciar mais um show. Chamou Chan para perto de si e começou a esquentar um óleo viscoso e amarelo numa espiriteira, que já borbulhava na colher. Disse as palavras de sempre, entoando-as com a ênfase exata, nos momentos certos. A mulher fechou os olhos e abriu a boca. Pensou no algodão doce e no parque.

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br