A Garganta da Serpente
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A quiáltera

(Fernanda Lizardo)

Era um daqueles tempos que diziam ser bons, algo como década de 50. Cinquenta. Ou cincoenta, como uma vez aprendi na escola, uma segunda opção que recusei terminantemente a utilizar. Um daqueles inconformismos que me perseguem feito a ausência de uma letra n em "muito".

E assim como a época boa e sutil, também era tarde boa, dessas em que não faz nem muito frio, nem muito calor, onde a amenidade do clima combina com todas as amenidades tagareladas pelas mulheres que bebem chá. Chá quente. Bem quente. E nem fazia muito frio.

Ela era uma dessas mulheres que gostamos de qualificar como belas; não que fosse tão bela assim, mas casos contados não têm graça se as mulheres não forem belas, se seus dentes não brilharem explosivos como flashes estourados ou se sua pele não for de seda. Então ela era assim mesmo, jovem e bonita, como toda mulher fictícia deve ser; princesinha da carochinha, mas nem tão pura, afinal, já tinha se casado! Seu nome era Belinda, algo do qual valeu a pena caçoar nos tempos estudantis, com todos os substantivos que rimassem ou formassem termos similares. Sua mãe, católica muito devota, queria batizá-la Rita de Cássia, fazê-la santa e padroeira de sabe-se lá o quê, mas seu pai, historiador tradicionalista que havia lido "Sonhos de uma noite de verão", de William Shakespeare, 64 vezes, quis que fosse Belinda. Quase fora Desdêmona, mas uma ínfima ponta de bom senso atravessou-o, fazendo-a escapar de martírio ainda maior do que viver na eterna berlinda de seu nome. Era substantivada por incitações à crueldade infantil, mesmo assim, acostumou-se porque nomes são para sempre. Na verdade, ela se acostumava com tudo, não por ser conformista, mas a vida lhe dera costumes absolutamente toleráveis dos quais ela não fazia questão de se livrar.

Era uma moça simples (e todas as moças simples são deveras conformadas) e suas instruções não passavam de compilações básicas sobre a arte de se assar um pudim cheio de poros e com a calda no ponto certo. Os dons extraordinários de sua vida foram adquiridos em anos de estudo de piano, mas nem eram exatamente tão peculiares, pois, todos os dias, às quatro e dezessete da tarde, dezenas de mulheres adocicadas competiam num uníssono desgovernado, treinando praticamente as mesmas valsinhas que aprenderam com o mesmo velho que afinava os trombolhos encordoados da cidade. Seu dom talvez não tenha sido musical, mas apenas o da capacidade de aquisição de paciência ao martelar as mesmas notas por tantos anos. Ela também lecionava música, ensinava melodias bobinhas a menininhas que, quando crescessem, seriam tão estagnadas quanto ela.

E, já dito, ela era casada. E seu cônjuge não era bonito, porque este não é um dos adjetivos corretos a se dar a um macho da espécie, mas tinha todas as características dos mesmos contículos dos quais ela saíra: era charmoso, provido de inteligência suficiente para persuadi-la a casar-se com ele, mesmo sabendo que suas emoções não ultrapassariam aquele ciclo lento das convenções sociais. Era amável. Isso lhe bastava.

Ele trabalhava em um pequeno escritório de contabilidade [obviamente apenas ele, pois ela não ousava desenterrar interesses além das paredes de sua casa]. Pagava as contas do mês, nunca comprava móveis novos, mas sempre reservava uma quantia de seu salário estável para adquirir diariamente uma caixinha de bombons na doceria da esquina. Fim de tarde (calor, frio, amena, quem sabe...), enlameava o tapete da entrada, chamava-a como se orientasse um cachorrinho, tocava-lhe os lábios com os seus próprios (sem estalar os beiços) e entregava-lhe os docinhos, que muitas vezes vinham com gosto de mofo. Ela aceitava de bom grado e assim, findava o dia. Ela era Belinda. Ele era Perseu (o herói!).

Não tiveram filhos. Talvez quisessem tê-los, mas um dos dois poderia ser estéril, mas, se era, esse fato nunca vieram a conhecer. E também não era importante. Belinda ficava feliz a cada vez que desenformava o pudim sem deixá-lo desmanchar- e seu sorriso expandia quando constatava que ali nunca haveriam marcas de dedinhos pífios. Ele nunca tocou no assunto. Bastava-lhe o sexo, não suas consequências.

Eram felizes daquele jeito como só as pessoas felizes são; deixavam a cama cedo, ele urinava num jato auditivamente irritante, ela estendia a cama passando os dedos sobre cada possível dobra do lençol, ele escovava os dentes, ela fazia o café que ele bebia junto com o sabor mentolado do dentifrício. Eles eram da época do dentifrício. Conversavam um pouco durante o desjejum, ele ia para o trabalho e ela distraía-se com seus pudins.

Belinda às vezes queria sentir-se culta, por isso catava livros na estante da sala sempre que fazia muito calor. Mas folheava apenas livros de música, não tinha capacidade para aventurar-se em outro assunto- e, se o fizesse, bateria o nariz em sua ignorância. Seu desejo era por cultura, mesmo que fosse sua limitada cultura sobre notação musical, compassos e o ritmo que ela não possuía... Mas estudava, tardes quentes e muito chá, seu modo de se sentir útil e de se atualizar para calejar os dedinhos das garotinhas que ali estacionavam, gotejando notas frágeis em seu arranhado piano.

E era só isso. Cama, urina, barulho, lençol, café, pudim, piano, lama, chocolate, boa noite, bom dia, tchau, oi, caixa de bombons. Rotina em sua melhor versão: como rotina.

Sua maior aventura talvez tenha sido espetar o dedo na agulha enferrujada com a qual cerzia uma das meias de Perseu. E teve medo de pegar tétano, mas não contou nada a ninguém, porque queria ao menos uma vez guardar um segredo para si. Remoeu o medo por muito tempo, quietinha, torcia por um pouco de febre e muitas vezes ria baixinho quando pensava em seu corpo enfermo. Mas nunca manifestou nada e acabou se esquecendo do assunto.

Algumas vezes faziam sexo. Ou copulavam, como Perseu dizia em raros momentos quando tocava no assunto, esfregando as mãos e engasgando pelas letras como num sexo oral totalmente falho. O sexo era tão conformado como Belinda, automático, ritualístico como jogar cartas no sábado à noite. E quando ele gozava ela corria para lavar-se (e retornava esbaforida) caçando manchas na colcha que acabara de bordar. Não manchou, ainda bem! Amavam-se sim, no sentido mais genuíno da palavra, mas amavam da maneira que aprenderam a amar, assim, amenos, como a maioria das tardes regadas a chá.

Como mais aquela tarde... Terrivelmente calorenta, suada. Belinda havia estudado muito, mais do que de costume. E Perseu chegou, interrompendo-a no meio de um acorde, com os sapatos limpos e sem a caixa de doces nas mãos. Ela estranhou, mas pouco ligou, afinal, já sentia náuseas ao pensar nos chocolates que hora acertavam no ponto do licor e hora eram insossos como sua respiração. Seguiu o roteiro de sua vida e ofereceu a boca cerrada ao marido, aguardando os esbarrões entrelábios sem estalos. Ele não remedou o beijo. Enfiou-lhe a língua dentro da boca, sufocando-a, estancando suas secreções, apertando todo seu corpo e arroxeando seus braços e suas bochechas. Quando ele a empurrou contra a parede ela bloqueou pensamentos e perguntas; afiou as unhas contra suas costas, enveredou os quadris completamente oferecida, fácil, inerte e ainda mais incapaz. Seu ápice não foi apenas físico, mas a levou a uma realidade mais estúpida, mas muito melhor do que qualquer coisa que ela já conhecera. O momento seguiu por horas, ultrapassando a tarde quente e furando a noite indefinida. Belinda não dormiu.

Na manhã seguinte Perseu a acordou com um beijo. Não seguiu apressadamente ao banheiro, não fez a barba, não quis apenas café, mas empanturrou-se com pães e nacos de manteiga altamente lubrificante. Belinda não bebeu café. Nem chá. E seu pudim esmoreceu, sem furinhos; a calda queimou e ela nem quis saber. Quebrou algumas xícaras e espatifou todas as definições de relacionamento que havia aprendido. Juntou os cacos de louça e de pensamento e jogou no lixo, juntamente com o pudim que não dera certo. Repetiu as cenas da noite em sua cabecinha o tempo todo, recordando toques e penetrações bruscas do momento em que ele atritava o peito contra suas costas.

Quando Perseu retornou do trabalho, não a levou à cama. Jogou-a sobre os móveis que nunca trocava, desempoeirou a mesa com as nádegas dela, esmiuçou seu vestido e tapou-lhe a boca com todas as suas extremidades.

A cada dia sua pobreza rotineira dava lugar a surpresas e posições; imposições e desejos; caldas queimadas e muitas outras caldas que ela nunca tinha visto. Em uma tarde fria Perseu chegou em casa com uma caixinha de doces sob o braço. Ela apenas suspirou, e sofreu por segundos, deixou arder os olhos e bambeou as pernas, quase carente. Mas ele não lhe estendeu a caixa, apenas abriu-as (sim, as duas) expondo chocolates frescos cheios de licor.

E a rotina que era rotina ganhou novos ares e viu-se então que todo hábito era sempre um hábito, sendo diferente apenas a forma.

Certa manhã, com café mas ainda com beijos, após despedir-se do marido enfiando as mãos onde não caberiam mãos, ela foi tomada por um pensamento súbito: "O que o levara a mudar suas atitudes, abandonando o jeito morno e abocanhando desejos irrepreensíveis?". Ficou com aquilo na cabeça e, assim como o episódio do tétano, não comentou nada com o companheiro.

No mesmo dia, depois do ato e das atitudes, Belinda esboçou:

- Perseu...

- Sim...?

- Você me ama?

E ele, sem hesitar, lançando um daqueles olhares que mulheres nunca sabem recusar:

- Claro que sim...! Que pergunta!

E beijou-a ternamente.

Durante um longo período a mente maquinou a dúvida, estraçalhou perguntas, sofreu, espetou os poros de pudim com palitos de madeira; seu marido mudara o comportamento e ela haveria de descobrir porquê. Sentia-se plena, culta, ainda que não mais abrisse livros de música nas tardes ferventes. Fazia sexo, mas também pensava. Ou não pensava tanto assim, pois logo abandonou a dúvida como à agulha enferrujada.

Numa quinta-feira quis trazer resquícios do passado. Engalfinhou seu velho caderno de música- à esta altura bastante embolorado- e sorriu ao folheá-lo dedilhando as páginas e o clitóris, equilibrando sua ingenuidade e o caminho aberto pelas enormes (imensas!) portas de ferro. Tom e semitom, ponto de aumento, tetracordes, quiáltera...

"Quiáltera" - relembrou- "quando três colcheias estão juntas no mesmo compasso... A terceira colcheia, excedente, altera a divisão de tempo, extrapolando o compasso, mas não altera o andamento...". Então, num repente, parou e começou a repetir em pensamento: "Terceira colcheia, terceira colcheia, terceira colcheia...". Levantou-se, tonta, bêbada de estupidez e cuspiu no escarro mais denso que conseguira expelir:

- Perseu tem uma amante!!!!

Seria mais uma peça de suas limitações, insegurança humana e sincera de alguém que não gostaria de perder uma rotina que era apenas uma doce rotina? Poderia estar enganada (não raramente se enganava), mas... E se não estivesse? E se este fosse finalmente o tétano que almejou por meses e meses? Uma cólera que dava enjoos e fazia-a meter o dedo indicador na garganta a ponto de não sobrar mais resquícios de pudim em ponto algum de seu corpo.

Saiu de casa, coisa que não fazia nunca, mas saiu, pisando duro e requebrando os quadris delatores de todas as suas noites. Mesmo sendo ainda a mesma Belinda em sua essência não precisou fazer esforços para colar a cara na vitrine do escritório onde o marido alojava seu trabalho insípido e flagrá-lo puxando cabelos e botões de uma outra mulher. Ele não a viu.

Ela continuou fingindo não saber de nada sobre o caso extraconjugal do homem com quem dividia muito mais que um espaço, mas gastava o que ainda restava dos restos de massa cinza tentando decidir o que fazer. Porque não destruir os hábitos e humilhar-se em público ao invés de sofrer sozinha e em silêncio como era de costume? Poderia matá-lo e exilar-se em qualquer outro lugar. Poderia exilar a instituição do casamento e... Pensou no marido. Pensou nos anos que vivera com ele. Pensou no sexo que tinha com ele.

- Às vezes a quiáltera é necessária para completar a melodia perfeita...

E foi fazer um pudim.

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