Era um daqueles tempos que diziam ser bons, algo como década de 50. Cinquenta.
Ou cincoenta, como uma vez aprendi na escola, uma segunda opção
que recusei terminantemente a utilizar. Um daqueles inconformismos que me perseguem
feito a ausência de uma letra n em "muito".
E assim como a época boa e sutil, também era tarde boa, dessas
em que não faz nem muito frio, nem muito calor, onde a amenidade do clima
combina com todas as amenidades tagareladas pelas mulheres que bebem chá.
Chá quente. Bem quente. E nem fazia muito frio.
Ela era uma dessas mulheres que gostamos de qualificar como belas; não
que fosse tão bela assim, mas casos contados não têm graça
se as mulheres não forem belas, se seus dentes não brilharem explosivos
como flashes estourados ou se sua pele não for de seda. Então
ela era assim mesmo, jovem e bonita, como toda mulher fictícia deve ser;
princesinha da carochinha, mas nem tão pura, afinal, já tinha
se casado! Seu nome era Belinda, algo do qual valeu a pena caçoar nos
tempos estudantis, com todos os substantivos que rimassem ou formassem termos
similares. Sua mãe, católica muito devota, queria batizá-la
Rita de Cássia, fazê-la santa e padroeira de sabe-se lá
o quê, mas seu pai, historiador tradicionalista que havia lido "Sonhos
de uma noite de verão", de William Shakespeare, 64 vezes, quis que
fosse Belinda. Quase fora Desdêmona, mas uma ínfima ponta de bom
senso atravessou-o, fazendo-a escapar de martírio ainda maior do que
viver na eterna berlinda de seu nome. Era substantivada por incitações
à crueldade infantil, mesmo assim, acostumou-se porque nomes são
para sempre. Na verdade, ela se acostumava com tudo, não por ser conformista,
mas a vida lhe dera costumes absolutamente toleráveis dos quais ela não
fazia questão de se livrar.
Era uma moça simples (e todas as moças simples são deveras
conformadas) e suas instruções não passavam de compilações
básicas sobre a arte de se assar um pudim cheio de poros e com a calda
no ponto certo. Os dons extraordinários de sua vida foram adquiridos
em anos de estudo de piano, mas nem eram exatamente tão peculiares, pois,
todos os dias, às quatro e dezessete da tarde, dezenas de mulheres adocicadas
competiam num uníssono desgovernado, treinando praticamente as mesmas
valsinhas que aprenderam com o mesmo velho que afinava os trombolhos encordoados
da cidade. Seu dom talvez não tenha sido musical, mas apenas o da capacidade
de aquisição de paciência ao martelar as mesmas notas por
tantos anos. Ela também lecionava música, ensinava melodias bobinhas
a menininhas que, quando crescessem, seriam tão estagnadas quanto ela.
E, já dito, ela era casada. E seu cônjuge não era bonito,
porque este não é um dos adjetivos corretos a se dar a um macho
da espécie, mas tinha todas as características dos mesmos contículos
dos quais ela saíra: era charmoso, provido de inteligência suficiente
para persuadi-la a casar-se com ele, mesmo sabendo que suas emoções
não ultrapassariam aquele ciclo lento das convenções sociais.
Era amável. Isso lhe bastava.
Ele trabalhava em um pequeno escritório de contabilidade [obviamente
apenas ele, pois ela não ousava desenterrar interesses além das
paredes de sua casa]. Pagava as contas do mês, nunca comprava móveis
novos, mas sempre reservava uma quantia de seu salário estável
para adquirir diariamente uma caixinha de bombons na doceria da esquina. Fim
de tarde (calor, frio, amena, quem sabe...), enlameava o tapete da entrada,
chamava-a como se orientasse um cachorrinho, tocava-lhe os lábios com
os seus próprios (sem estalar os beiços) e entregava-lhe os docinhos,
que muitas vezes vinham com gosto de mofo. Ela aceitava de bom grado e assim,
findava o dia. Ela era Belinda. Ele era Perseu (o herói!).
Não tiveram filhos. Talvez quisessem tê-los, mas um dos dois poderia
ser estéril, mas, se era, esse fato nunca vieram a conhecer. E também
não era importante. Belinda ficava feliz a cada vez que desenformava
o pudim sem deixá-lo desmanchar- e seu sorriso expandia quando constatava
que ali nunca haveriam marcas de dedinhos pífios. Ele nunca tocou no
assunto. Bastava-lhe o sexo, não suas consequências.
Eram felizes daquele jeito como só as pessoas felizes são; deixavam
a cama cedo, ele urinava num jato auditivamente irritante, ela estendia a cama
passando os dedos sobre cada possível dobra do lençol, ele escovava
os dentes, ela fazia o café que ele bebia junto com o sabor mentolado
do dentifrício. Eles eram da época do dentifrício. Conversavam
um pouco durante o desjejum, ele ia para o trabalho e ela distraía-se
com seus pudins.
Belinda às vezes queria sentir-se culta, por isso catava livros na estante
da sala sempre que fazia muito calor. Mas folheava apenas livros de música,
não tinha capacidade para aventurar-se em outro assunto- e, se o fizesse,
bateria o nariz em sua ignorância. Seu desejo era por cultura, mesmo que
fosse sua limitada cultura sobre notação musical, compassos e
o ritmo que ela não possuía... Mas estudava, tardes quentes e
muito chá, seu modo de se sentir útil e de se atualizar para calejar
os dedinhos das garotinhas que ali estacionavam, gotejando notas frágeis
em seu arranhado piano.
E era só isso. Cama, urina, barulho, lençol, café, pudim,
piano, lama, chocolate, boa noite, bom dia, tchau, oi, caixa de bombons. Rotina
em sua melhor versão: como rotina.
Sua maior aventura talvez tenha sido espetar o dedo na agulha enferrujada com
a qual cerzia uma das meias de Perseu. E teve medo de pegar tétano, mas
não contou nada a ninguém, porque queria ao menos uma vez guardar
um segredo para si. Remoeu o medo por muito tempo, quietinha, torcia por um
pouco de febre e muitas vezes ria baixinho quando pensava em seu corpo enfermo.
Mas nunca manifestou nada e acabou se esquecendo do assunto.
Algumas vezes faziam sexo. Ou copulavam, como Perseu dizia em raros momentos
quando tocava no assunto, esfregando as mãos e engasgando pelas letras
como num sexo oral totalmente falho. O sexo era tão conformado como Belinda,
automático, ritualístico como jogar cartas no sábado à
noite. E quando ele gozava ela corria para lavar-se (e retornava esbaforida)
caçando manchas na colcha que acabara de bordar. Não manchou,
ainda bem! Amavam-se sim, no sentido mais genuíno da palavra, mas amavam
da maneira que aprenderam a amar, assim, amenos, como a maioria das tardes regadas
a chá.
Como mais aquela tarde... Terrivelmente calorenta, suada. Belinda havia estudado
muito, mais do que de costume. E Perseu chegou, interrompendo-a no meio de um
acorde, com os sapatos limpos e sem a caixa de doces nas mãos. Ela estranhou,
mas pouco ligou, afinal, já sentia náuseas ao pensar nos chocolates
que hora acertavam no ponto do licor e hora eram insossos como sua respiração.
Seguiu o roteiro de sua vida e ofereceu a boca cerrada ao marido, aguardando
os esbarrões entrelábios sem estalos. Ele não remedou o
beijo. Enfiou-lhe a língua dentro da boca, sufocando-a, estancando suas
secreções, apertando todo seu corpo e arroxeando seus braços
e suas bochechas. Quando ele a empurrou contra a parede ela bloqueou pensamentos
e perguntas; afiou as unhas contra suas costas, enveredou os quadris completamente
oferecida, fácil, inerte e ainda mais incapaz. Seu ápice não
foi apenas físico, mas a levou a uma realidade mais estúpida,
mas muito melhor do que qualquer coisa que ela já conhecera. O momento
seguiu por horas, ultrapassando a tarde quente e furando a noite indefinida.
Belinda não dormiu.
Na manhã seguinte Perseu a acordou com um beijo. Não seguiu apressadamente
ao banheiro, não fez a barba, não quis apenas café, mas
empanturrou-se com pães e nacos de manteiga altamente lubrificante. Belinda
não bebeu café. Nem chá. E seu pudim esmoreceu, sem furinhos;
a calda queimou e ela nem quis saber. Quebrou algumas xícaras e espatifou
todas as definições de relacionamento que havia aprendido. Juntou
os cacos de louça e de pensamento e jogou no lixo, juntamente com o pudim
que não dera certo. Repetiu as cenas da noite em sua cabecinha o tempo
todo, recordando toques e penetrações bruscas do momento em que
ele atritava o peito contra suas costas.
Quando Perseu retornou do trabalho, não a levou à cama. Jogou-a
sobre os móveis que nunca trocava, desempoeirou a mesa com as nádegas
dela, esmiuçou seu vestido e tapou-lhe a boca com todas as suas extremidades.
A cada dia sua pobreza rotineira dava lugar a surpresas e posições;
imposições e desejos; caldas queimadas e muitas outras caldas
que ela nunca tinha visto. Em uma tarde fria Perseu chegou em casa com uma caixinha
de doces sob o braço. Ela apenas suspirou, e sofreu por segundos, deixou
arder os olhos e bambeou as pernas, quase carente. Mas ele não lhe estendeu
a caixa, apenas abriu-as (sim, as duas) expondo chocolates frescos cheios de
licor.
E a rotina que era rotina ganhou novos ares e viu-se então que todo hábito
era sempre um hábito, sendo diferente apenas a forma.
Certa manhã, com café mas ainda com beijos, após despedir-se
do marido enfiando as mãos onde não caberiam mãos, ela
foi tomada por um pensamento súbito: "O que o levara a mudar suas
atitudes, abandonando o jeito morno e abocanhando desejos irrepreensíveis?".
Ficou com aquilo na cabeça e, assim como o episódio do tétano,
não comentou nada com o companheiro.
No mesmo dia, depois do ato e das atitudes, Belinda esboçou:
- Perseu...
- Sim...?
- Você me ama?
E ele, sem hesitar, lançando um daqueles olhares que mulheres nunca sabem
recusar:
- Claro que sim...! Que pergunta!
E beijou-a ternamente.
Durante um longo período a mente maquinou a dúvida, estraçalhou
perguntas, sofreu, espetou os poros de pudim com palitos de madeira; seu marido
mudara o comportamento e ela haveria de descobrir porquê. Sentia-se plena,
culta, ainda que não mais abrisse livros de música nas tardes
ferventes. Fazia sexo, mas também pensava. Ou não pensava tanto
assim, pois logo abandonou a dúvida como à agulha enferrujada.
Numa quinta-feira quis trazer resquícios do passado. Engalfinhou seu
velho caderno de música- à esta altura bastante embolorado- e
sorriu ao folheá-lo dedilhando as páginas e o clitóris,
equilibrando sua ingenuidade e o caminho aberto pelas enormes (imensas!) portas
de ferro. Tom e semitom, ponto de aumento, tetracordes, quiáltera...
"Quiáltera" - relembrou- "quando três colcheias
estão juntas no mesmo compasso... A terceira colcheia, excedente, altera
a divisão de tempo, extrapolando o compasso, mas não altera o
andamento...". Então, num repente, parou e começou a repetir
em pensamento: "Terceira colcheia, terceira colcheia, terceira colcheia...".
Levantou-se, tonta, bêbada de estupidez e cuspiu no escarro mais denso
que conseguira expelir:
- Perseu tem uma amante!!!!
Seria mais uma peça de suas limitações, insegurança
humana e sincera de alguém que não gostaria de perder uma rotina
que era apenas uma doce rotina? Poderia estar enganada (não raramente
se enganava), mas... E se não estivesse? E se este fosse finalmente o
tétano que almejou por meses e meses? Uma cólera que dava enjoos
e fazia-a meter o dedo indicador na garganta a ponto de não sobrar mais
resquícios de pudim em ponto algum de seu corpo.
Saiu de casa, coisa que não fazia nunca, mas saiu, pisando duro e requebrando
os quadris delatores de todas as suas noites. Mesmo sendo ainda a mesma Belinda
em sua essência não precisou fazer esforços para colar a
cara na vitrine do escritório onde o marido alojava seu trabalho insípido
e flagrá-lo puxando cabelos e botões de uma outra mulher. Ele
não a viu.
Ela continuou fingindo não saber de nada sobre o caso extraconjugal do
homem com quem dividia muito mais que um espaço, mas gastava o que ainda
restava dos restos de massa cinza tentando decidir o que fazer. Porque não
destruir os hábitos e humilhar-se em público ao invés de
sofrer sozinha e em silêncio como era de costume? Poderia matá-lo
e exilar-se em qualquer outro lugar. Poderia exilar a instituição
do casamento e... Pensou no marido. Pensou nos anos que vivera com ele. Pensou
no sexo que tinha com ele.
- Às vezes a quiáltera é necessária para completar
a melodia perfeita...
E foi fazer um pudim.