A harmonia tinha uma imagem tão feérica que somente um casal como
aquele teria a chance de desfrutar. Nada que fosse assim tão deslumbrante,
é verdade, pois quem daria crédito a uma contemplação
insossa em que sobressaía apenas a uniformidade simétrica de um
simples casal de montículos sendo um de areia e outro colado a este de
pedrinhas acinzentadas como se estivessem aguardando a construção
de uma provável residência assim como que abandonada a uma esquina
de uma suntuosa Alameda do Planalto Paulista?
EXTERIOR. ALAMEDA SUNTUOSA. DIA.
Vemos um casal maduro - ele negro e ela branca - olhando admirados o outro
casal que lembrava mais a visão de um recorte de vale montanhoso perdido
numa área baldia cujo terreno era tão vermelho quanto os vasos
daquele par de olhos interessados.
DORIVAL: Podia jurar que fosse uma obra de arte saída de uma
pintura naturalista. Eu ainda sinto o sangue pulsar... Minha lembrança
dói quando lembro aquela tela....
NEUMA: E eu juraria que minha imaginação condensou a própria
matéria prima para concretizá-la à minha frente. Você
nunca pintou nada tão divino, Dorival.
Dorival vira-se a ela e frisa o cenho de encontro aos olhos como que não
gostando da observação sincera.
DORIVAL: Eu sou um projetista, Neuma! Você deveria lembrar-se
sempre deste detalhe.
NEUMA: Mas você me disse que pintava. E eu só tenho cinquenta
anos, ora!
DORIVAL: E o que isto quer dizer? Que não está velha e
esquecida, é isso?
NEUMA: Sim senhor! Nada mais me incomoda do que ser chamada de estúpida!
Isso eu não sou!
DORIVAL: Que é isso, Neuma? Nervosa de novo? E a pressão?
Quer voltar para o hospital?
NEUMA: Ora, Dorival! Você me deixa nervosa até os tímpanos!
Não aguento quando me confunde.
DORIVAL: Eu não confundo você coisa nenhuma. Estou apenas
corrigindo uma falha de sua memória.
NEUMA: Já disse que me lembro muito bem de que o senhor me falou
que pintava. Projetista do que, posso saber?
DORIVAL: Do quê, você pergunta? Não sei se merece
uma resposta civilizada a esta altura...
NEUMA: O que está querendo dizer? Que vai baixar o nível
ao ponto de se animalizar? E o estudo de engenharia, já esqueceu?
DORIVAL: Que tem o estudo de engenharia a ver com isso, Neuma? Você
ficou débil mental?
NEUMA: Mas não foi você que disse que era projetista, santo
Deus? O que está acontecendo com sua sanidade?
DORIVAL: Com a minha? Você tem certeza que é com a minha?
NEUMA: Sim, claro. Com a sua. Porque a minha, meu querido, está
tão em forma que eu me lembro exatamente as suas palavras quando me disse
que pintava. (ENGROSSANDO A VOZ EM IMITAÇÃO À DELE) "Pinto
desde quando vi um quadro de Monet no Masp. Tinha quinze anos. Foi numa excursão
com a escola. Isso faz tempo, claro".
Dorival não esconde a sua expressão furiosa e deixa Neuma ali
plantada na esquina.
Ele anda na direção do casal de montículos, chafurdando
os sapatos de verniz preto igual à sua pele na terra vermelha.
Tem horas que me dá vontade de... Não, não. Não
quero pensar nisso, não posso. Mas ela provoca e me dá vontade
de... Mas se eu fizer alguma coisa contra ela posso arrepender-me. Olha só
como ela me chama: "Dorival, meu amor! Vem aqui, querido! Eu estava enganada,
juro!" É ou não é pra estourar todos os miolos da
desgraçada? Mas não posso, não devo, embora queira, esteja
atiçado, com o corpo formigando de raiva. Ela sempre foi assim, desde
o dia do nosso casamento. Sabe que pinto apenas com o meu pinto, mas essas coisas
de pincel, tela, guache e o escambau, não são comigo. Por que
ela faz isso? Talvez tenha envelhecido e se esquecido disto. Não admite,
mas é a pura a verdade. Como encontrar respostas lógicas no meio
de tanta insanidade? Eu devia ter pagado aquela terapia que tanto ela queria,
e o filho da puta do psicólogo também. Encheu tanto o saco nosso
que quase eu o mandei tomar caldo de cana com uma pitada de alho pra ver se
é bom pra tosse. Filho da mãe. Acho que só queria o nosso
dinheiro. O problema continuou, não pagamos, Neuma ficou esquisita, trocando
as coisas, esquecendo outras, e eu aqui. Bonzinho da silva. É ou não
é pra ficar puto? No fundo estou com inveja desses dois aí na
minha frente. Uma união tão sólida, sem brigas, embora
diferentes... E uma união tão sólida só podia mesmo
vicejar um sólido projeto de construção. Que inveja desses
montes pascoais que ainda resistem ao tempo dos meus antepassados! Sim, eu sou
português. Português nascido em São Tomé e Princês
com muito orgulho. Sabe, eu nem sei se posso dizer que sou de lá. Faz
tanto tempo que estou aqui! Brasileiro... Alguém que fala português
brasileiro. Sou este amor de pessoa, que ela não reconhece porque é
uma burra! Ou será esquecida? Não sei mais... Estou farto. Só
me resta usar a cabeça agora.
Instantes.
Momento de tensão.
A imagem capta o olhar de Neuma incrédula olhando para o terreno baldio
onde está o seu Dorival agora sem cabeça.
Depois de um instante de paralisação, ela começa a correr.
Grita com horror e pânico.
Plano em movimento próximo acentua a sua agonia.
Instantes.
Ela entra no terreno chafurdando seus sapatos de salto relativamente altos.
A terra vermelha tinge rapidamente a película creme de seu sapato.
De repente, ela tropeça em seus próprios pés e cai sobre
um dos montes, o de areia.
Corte.
INTERIOR. QUARTO DE CASAL. NOITE.
Vemos Dorival e Neuma abraçados numa cama de tubos um de frente a outro.
O quarto tem uma cortina em forma de painel cobrindo a janela.
Eles conversam intimamente.
DORIVAL: Como eu ia esquecer, Neuma? Foi o dia mais engraçado
da nossa vida...
NEUMA: Engraçado? Como engraçado se ficamos todos sujos,
você até se machucou com as pedrinhas...
DORIVAL: Que importa isso; ficaria muito mais feliz se alguém
tivesse registrado o fato.
Neuma se solta dele e vira para o seu lado na cama, colocando um chinelo para
levantar-se.
Está apenas de baby-doll rosa e sem sutiã.
Passa a mão pelos cabelos desgrenhados.
NEUMA: Pelo amor de Deus, Dorival! Aquela cena foi muito ridícula
para ser registrada.
DORIVAL: Eu não achei. Aliás, foi uma cena fálica;
os dois enterrados com a cabeça até o fundo!
Neuma ri mas não esconde um ar de repulsa.
NEUMA: Que baixeza, Dorival! Não acredito que possa sentir alguma
coisa excitante com aquilo tudo. (TOM) Sabe, tem horas que imagino que o ser
humano não nasce sujo por acaso. Acho que é por isso que chora
ao nascer: de vergonha pelo que traz, desde aquela massa nojenta de placenta
ensanguentada. Por isso não quero ter filhos!
Neuma veste um penhoar e sai para o banheiro da suíte.
O quarto só tem uma iluminação vaga vinda de um insólito
abajur oriental posto no criado-mudo ao lado de Dorival.
Temos que aprender a ser civilizados desde pequenos, quando, na verdade,
não queremos. O que tem de mais enterrar uma ou duas cabeças em
um monte de areia ou de pedrinhas inocentes? Precisamos estar sempre nos trilhos
sem nada a nos acontecer de engraçado ou exótico? Por quê?
Tem de ser assim tão bonitinha e certinha a nossa vida?Mesmice cansa
e eu não sou chegado. Veja agora, por exemplo, eu ouvindo o barulho da
água do chuveiro caindo no corpo de Neuma, a imaginação
sonda possibilidades e então fico que não me aguento de fazer
alguma bobagem... Com a vida de Neuma... Não, não é isso;
não é essa de transar com ela naquele terreno baldio em meio aos
montículos... Originalidade seria pintá-la. Dessa maneira, pela
primeira vez, eu não a contrairia dizendo que não sou pintor.
O casal vivia relativamente bem e em harmonia. Seguia inconscientemente o duplo
sentido (como meio de expressão) ditado por Freud para o bem-viver, isto
é, amavam-se e trabalhavam como Deus manda (embora Freud fosse ateu).
Conheciam-se desde adolescentes da época do colégio Jesuíno
Maciel, escola pública onde tiveram toda a formação regular
com vistas a uma faculdade que não chegou devido a opções
vitais de sobrevivência, em que o trabalho tinha largado na frente dos
estudos, ou, antes, a necessidade de ganhar dinheiro para ajudar as suas respectivas
famílias veio primeiro e a puro galope.
A vida era realmente uma caixa de surpresas, porque Dorival e Neuma fizeram
treze pontos na loteria esportiva havia pelo menos vinte e cinco anos e ganharam
uma bolada tão grande que não voltaram para a casa dos pais, mas
sim, se mudaram para uma casa de praia onde ficaram até há alguns
anos atrás.
Neuma era uma loira bem branca, quase transparente, e mesmo com muitos anos
morando no litoral, ainda permanecia leitosa, agora mais rechonchuda, punhos
largos e roliços, gorduras localizadas e doidas procurando novos espaços,
enquanto Dorival era alto, bem preto, com uma força de pedreiro, os dentes
muito brancos, cara de boa praça, porém um pouco embrutecido,
talvez por não conseguir ser o pintor que gostaria, ou, apenas um projetista
sem a reputação idealizada. Coisas da vaidade humana por certo.
INTERIOR. BOX DE CHUVEIRO. SUÍTE DO CASAL. NOITE
Neuma toma banho de touca.
Está tão imersa no prazer daquela água quente que tem uma
expressão cálida e muito agradável.
Instantes.
Aos poucos, a fumaça do chuveiro vai embaçando todo o toalete.
Ela era uma grande mulher. Grande no sentido de alma, coragem, fidelidade.
Havia encarado o preconceito familiar por ter se casado com um negro de uma
forma notável. Sentara-se com todos de sua família de origem polonesa
e falado francamente do seu amor por Dorival. Evidente que levantaram questões,
sendo que a principal foi: "como foi gostar de alguém tão
diferente de você? Em nossa família nunca houve um caso desses!".
Neuma nunca se intimidara com argumentos convencionais que se sustentavam em
pontos de vista arcaicos. Ela sempre negara sua condição de branca
para ser mulher de todas as raças, por isso tinha feito amigas de todos
os credos e cores. Isto a orgulhava sobremaneira. Queria ter tido condições
de enfrentar os preconceitos e as culpas de suas amigas também, se fosse
possível.
No fim, a vida lhe sorrira com um amor verdadeiro, já que uma simples
tonalidade diferente de pele jamais pudera ofuscar e deprimir aquele sentimento
avassalador e irresistível que sentiu quando viu aquele negro alto, capacete
enterrado na cabeça, prancheta nas mãos e um olhar calmo que ia
e voltava pelas vigas de um edifício em construção, e pensou:
"nossa, que torre encapada mais linda, meu Deus!"
Evidente que havia muita fantasia de sua parte em tudo isso, afinal torre encapada
para ela correspondia não só ao tamanho de Dorival, mas a postura
reta e sinuosa que lhe saíam pela camiseta branca colada ao corpo e aquele
capacete cor de sangue na cabeça. Ela não pensava tratar-se de
um projetista, mas de um carregador de tijolos tamanho a forma que ele aparentava.
Não sei por que tenho estado tão crítica ultimamente;
talvez seja porque esteja enjoada do meu casamento. Ele tem tentado mudar alguma
coisa com suas maluquices, mas mesmo assim não sei... Acho que estou
ficando com depressão... E nem sei se preciso reagir. O mundo não
merece minha recuperação. Já estou velha, cinquentona,
no auge da menopausa, então por que deveria modificar aquilo que sinto
em função apenas do que poderiam pensar de mim? Dorival também
não está nem aí; pensa que sou estúpida, esquecida,
mas tenho pena dele. É um homem combalido, com pressão alta, frustrado
com o que faz. Talvez se aposente logo; talvez não. Ele merece essa dúvida.
Não teve coragem de mudar nada em sua vida. Se queria pintar desde adolescente,
por que não o fez até agora? Por que insiste em mentir para si
próprio? Será que o mal da civilização o pegou?
O registro foi fechado depois de uma hora. Neuma tinha o corpo fumegando, com
uma aura de fumaça que se espraiou por toda a toalete. Os vidros e espelhos
embaçaram e deram um tom blasé ao seu astral já sentido.
Ela queria virar água, escorrer pelo ralo e refletir pelo encanamento
de seu prédio. "Qualquer trajeto é melhor que voltar a ser
eu de novo".
INTERIOR. QUARTO DE CASAL. NOITE.
Plano abre em Dorival com um olho grudado na fechadura da porta da toalete.
Está com a respiração presa, tenso e preocupado.
De repente, ele relaxa e volta-se ao quarto pegando um peso de musculação.
A porta se abre e aparece Neuma metida num roupão, cabelos molhados e
muito cheirosa.
Dorival disfarça fazendo exercício.
NEUMA: Não vai tomar banho?
DORIVAL: Daqui a pouco.
NEUMA: Não demore que eu quero sair.
Dorival pára seu exercício e vira-se surpreso a ela.
DORIVAL: Sair para onde?
NEUMA: Para o teatro. Tem uma comédia com Dolores Costa que dizem
é muito engraçada. Quero dar risadas...
DORIVAL: Mas são duas da manhã, Neuma! Que Teatro está
aberto à uma hora dessas?
NEUMA: Não sei, mas deve ter um. A vida noturna não pára
nessa cidade. (TOM) E você: o que está fazendo com esse pesinho
a uma hora dessas hein? Se pode fazer ginástica de madrugada, eu posso
ir ao teatro também!
DORIVAL: Mas eu estou fazendo isso em casa. Aliás, o que você
tem contra o pesinho? Não preciso ficar em forma para dar conta de você?
NEUMA: Que presunção meu Deus! Acha mesmo que um pesinho
desses pode mudar alguma coisa a esta altura da sua vida? Quer dizer... da nossa
né?!
DORIVAL: Não sei por que anda tão infeliz ultimamente,
Neuma. Sinto muito se você está pouco à vontade depois de
vinte e cinco anos de casamento.
NEUMA: Vinte e sete. Muito tempo. Precisamos fazer coisas diferentes,
Dorival. Quer envelhecer assim? Nunca imaginei que ia ficar velha e entocada
num apartamento. Oh! Que vida ingrata!
DORIVAL: Você tem tudo, mulher! Que ingratidão é
essa, ora! Vamos, vamos sair então, vai. Vou tomar banho e me trocar.
NEUMA: (ABRAÇANDO-O) Oh! Querido! Você é o máximo!
Ainda...
Dorival olha para ela com desconfiança.
Instantes.
E eles saíram. Foram a um motel em vez do teatro. Dorival convenceu Neuma
que de nada adiantava procurar um teatro próximo das quatro da matina.
Não que Neuma não soubesse disso, mas ela havia encasquetado que
havia alguma sessão na madrugada, pois lera em alguma revista de variedades
a respeito. O mundo corria solto fora, ela argumentava. "Só a gente
é que fica sem fazer nada em casa"...
Dorival levou-a àquela alameda suntuosa. Naquela esquina onde havia
um terreno baldio e um casal de montículos. Estava amanhecendo e pelo
menos poderiam se inspirar neles, na diferença que confere harmonia,
uma vez que isso parecia terem deixado de lado faz tempo.
Neuma assustou-se quando não reconheceu a esquina. Havia um muro de
tijolos vermelho ladeando todo o espaço, mas podia se ver o interior
do terreno onde somente uma parte do monte de areia ainda subsistia. O monte
de pedrinhas cinza havia desaparecido. O casal que dois dias atrás aparecia
exuberante e quase de mãos dadas naquele terreno, hoje era o retrato
de uma imagem ceifada, abortada da visão de quem buscava harmonia nas
diferenças, de quem estava atrás de algum sinal que mostrasse
ser ainda possível viver lado a lado o restante de seus dias.
Plano próximo de Neuma. Ela tem um ar de desolação.
Praticamente nem se mexe, mas sente quando Dorival toca seu braço.
DORIVAL: Você está bem, meu bem?
Neuma vira-se e olha Dorival.
Tem um olhar tão profundo quanto triste.
Desaba num choro e agarra-se aos braços do marido.
DORIVAL: Que aconteceu, Neuma? Eram só dois montes ora! Vem me
dizer que você não sabia que eles iam servir para fazer cimento?
Neuma pára de chorar e olha Dorival com ternura.
NEUMA: Quero ir para a casa, Dorival. Estou muito triste, muito triste...
Compreender a alma humana e de mulher sempre foi o meu fraco. Talvez porque
sempre quis ser um cara compreensivo, embora não tenha tanta aptidão
assim. Vendo-a assim tão frágil e insegura, pude compreender que
ela era sensível a ponto de chorar por dois montes que viraram concreto.
Engraçado mesmo. Ela não chorava por mim, mas chorava por eles.
Por isso eu queria compreender o incompreensível, a emoção
ilógica que acompanha o coração da alma feminina. Queria
tanto que acabei sem ela. Quero acreditar nisso e não na influência
daqueles dois montículos de merda, que viraram pedra. Porque eles não
têm sentimento. Nem Neuma, que me deixou. Hoje falo daqui, dessa esquina
suntuosa, da casa, que foi comprada e edificada por mim. Não ia deixar
tudo isso em branco. Preto eu sou, e um grande projetista. Ou vocês acreditaram
nela que achava que eu pintava? Agora sozinho, meu sonho tornou-se realidade.
Pintei o quadro de Neuma e o coloquei na parede da sala. Alguma coisa pelo menos
para lembra-la. Se você souber onde ela anda, chame-a para ver o seu retrato
pelas minhas mãos. Ela não vai acreditar. Porque a alma feminina
eu não procuro mais entender. Só contemplo de longe, através
de uma tela de concreto.
FIM