Em sinal de protesto, Duílio parou de frente àquela casa. Na verdade,
era um casarão térreo circundado por uma área arborizada
onde algumas espécies de plantas recendiam a pureza essencial da vida,
propagando uma espécie de frescor de vitalidade por todo aquele trecho.
Duílio lançou seu olhar para o interior do casarão. E
ficou por instantes parado à entrada do portão e junto a uma mesinha
respaldada por um guarda-sol de lona quadriculado no qual podia se ler o nome
de Bloomberg Imobiliária.
Aquela casa era a casa dos seus sonhos. A imagem havia se concretizado tão
cristalina quanto à dor que o envolvia. Lembrara-se momentaneamente do
facão que passou e cortou o seu coração ao meio. A obsessão
de sua tia em despojá-lo de seu sonho.
"Mas quem lhe disse que o sonho é real?", dizia a ele tirando-lhe
a razão. De sua parte, tinha certeza que era. Só não era
imaginação. Mais que isso: nos sonhos, ele vivia uma realidade
que só mais tarde saberia. O sonho era o despertar no não-revelado
ou manifestado. Era a ação filmada do inconsciente transformada
em realidade tão pulverizadora quanto à poeira dos ventos que
tocava seus olhos agora.
Esfregou-os com os nós dos dedos suas órbitas. O casarão
à venda. Um lugar que aparecia somente recluso ao seu sonho. "Absurdo!",
continuava a sua tia a dizer. Ela achava que as certezas de Duílio eram
puras fantasias, portanto o contrário daquela pureza essencial da vida
que ora lhe recendia. Os seus sonhos na visão da tia eram irreais e não
producentes. "Ninguém vive de sonho", tornava ela, sempre muito
astuta com as frases feitas e pensamentos habituais.
Era a própria imagem do regaço. O casarão à venda
tinha a imponência natural de um lugar à sombra verdejante dos
frutos da natureza. Duílio pensava no deleite de poder ficar ali para
o resto de seus dias, sem ser importunado pelas grossuras da vida que precisava
enfrentar cotidianamente. Afinal, se estava irremediavelmente pensando lá
na frente, ele via o fim de tudo ali mesmo, naquele casarão que parecia
agora perscrutar seus pensamentos e descobrir seus desejos mais íntimos,
doloridos, que inchavam só de pensar.
Ficou com medo de avançar, de dar outro passo. Havia um corretor de
plantão ali no fundo que, com certeza, lhe atenderia com prazer e interesse.
Interesse?
"A merda toda é que conheço você bem", prosseguia
contumaz a sua tia. Não adiantava querer ele se esconder atrás
de subterfúgios mecânicos de outras vontades escamoteadas. Ela
conhecia-o fantasticamente bem.
Por que ela precisava intrometer-se em sua vida e tirar-lhe a paz? Duílio
era tão pacífico, medroso, paranóico. A sua liberdade via
naquele sonho real um enorme casarão à venda.
Olhar de lince.
"Você é incompetente, então não adianta andar
na direção do corretor que na hora H você vai ficar mudo",
continuava ela no pensamento de Duílio. Era a Serpente tentando-o para
vê-lo falhar como o deus do pecado. Ele poderia virar às costas
e sair dali, mas não era justo que fosse afrouxar na coisa que mais se
agarrava até hoje: seu sonho.
A imagem da vista acolhedora ganhava altitude diante do olhar vacilante de
Duílio. O corretor de imóveis notara e se aproximara para falar
a ele.
- Posso mostrar a casa para o senhor?
- O senhor?
- Sim, claro. Dorival, muito prazer.
- Claro, prazer é todo meu...
- Vamos entrar, seu...
- Duílio. Mas deixe o senhor de lado, okey.
- Como não; Duílio e não se fala mais nisto. Ah! Ah!
- Está rindo de mim, seu Dorival?
- Não, Duílio, que loucura?
- Por que se o senhor estiver pensando que eu não posso comprar esta
casa...
- Longe de mim, Duílio; se eu pensasse isso não estaria querendo...
- Esta casa tem quanto tempo?
- É... Mais ou menos uns 60 anos, acho eu. Na verdade, eles só
não querem vender o fundo. Ali, está vendo?
- Sim. Mas eu quero comprar tudo. Não quero alugar nada.
- O senhor, me desculpe, Duílio, acho que não entendeu bem:
aquele cômodo ali não está à venda. É uma
herança antiga que deu o maior problema.
- Briga de família?
- Isso. Acertou.
- Então não quero. Sonhei toda a casa, não posso comprar
uma casa pela metade.
- Mas é só um depósito que não fará falta
ao senhor, tenho certeza.
- Como sabe? Não me conhece.
- Aí é que se engana. Você não é sobrinho
da Marlene?
- Conhece minha tia?
- Fui namorado dela tempos atrás.
- Como?
- É... Namorado não é bem a palavra... Eu é
que gostava dela, só isso.
- Nunca ouvi minha tia falar do senhor.
- Nem poderia.
- Por quê?
- Porque ela existe só no meu pensamento, e o meu pensamento não
faz parte do pensamento dela.
- Confuso. Muito confuso.
- Deixa pra lá. Então, vamos ver a casa?
Parecia que entrara no quarto de Alexandre, da Macedônia. Tal eram as
formas das garatujas douradas que ganharam o meu assombro, duas bolas de ferro
incrustadas na parede, a armadura escudada em bronze, um sonho medieval que
se concretizava diante de mim e de meu espanto.
O corretor Dorival estava a meu lado, acompanhando com minúcia o movimento
de minha cabeça e olhos. A curiosidade mesclada a espanto somava-se a
uma desarticulação momentânea pela qual uma pasmaceira deitava
e rolava em meu cérebro, como se ele fosse um baralho de cartas tibetano.
Não tinha certeza de nada. Nem que no Tibet havia cartas de jogar. Reagir
a alguma coisa, mesmo que inexplicável a outros olhos, implica saída
do ponto de repouso e eu saltei para trás e acertei o calo do corretor.
Desgraçado, ele xingou. Fiquei pior, quer dizer, mais confuso, e, diante
do imprevisto, corri dali.
Seu Dorival, que tinha sentado no chão a fim de segurar a perna enquanto
sentia a dor subir-lhe até a cara rosada, o nariz premido pelo bigode
que entrava em suas narinas, a testa repleta de linhas paralelas, as orelhas
fumegando, ficou ali gemendo...
Corri. Não sei do que uma pessoa é capaz quando atingida em seu
calo.
A casa começava a desmoronar lentamente. Na minha frente, a figura de
minha tia, dedo em riste, acusador, repressor. "Afogue os desejos, imbecil!"
Luz em foco mostrava minha face de desespero, medo, fobia, pânico, luz
alta dentro de mim iluminando o desconhecido que meu medo teme e me faz correr.
Parei quando passei o portão. O palco estava atrás de mim em
ruínas, em bolas de ferro sonhável que jaziam pregadas na massa
de parede esfarelada.
O cérebro fez igual. Sensação estranha, sobrenatural.
Eu ainda estava ali. "Garoto estúpido!", gritou minha tia com
sua voz estridente e mal-humorada.
INSERT. APARIÇÃO INSTANTÂNEA
Um guarda entra em cena. Guarda medieval mesmo, com armadura de ferro, o rosto
quedado por um queixo quadrado, que quase quonverteu em Q minha queda em
Alexandria. Ele varou-me com o olhar e disse:
- Pressinto que estás fugindo. Roubaste esta casa desmoronada?
- Meu sonho ruiu, acabou, partiu, entende?
- Estás preso. Vai-te a masmorra.
- Estás sendo desumano. Nunca teve um sonho partido?
- Acreditas em sonho? É além de tudo um tonto.
- Então não acredita nele?
- Perda de tempo.
- Não pode ser; é o tempo que o alimenta.
- Basta de nove horas. Estás querendo ganhar tempo.
- Mas você mesmo disse que meu sonho é perda de tempo.
- Não, quis dizer do meu. Não me compreendeste bem.
- O meu acabou, já disse. Olhe a casa que estava à venda.
- Não existe mais casa. Tu arrasaste-a.
- Estou dizendo que foi o meu sonho. Você morava naquele quarto. Volte.
- Para a minha tumba?
A lógica do sonho era esquisita. Não tinha pé nem cabeça;
apenas bolas de ferro. Mas pensar em lógica não tinha cabimento
quando se tratava de sonho. As imagens predominavam, eram a sua argamassa essencial
e tudo transparecia como se fosse uma cidade de guetos e vielas a se perder
de vista no emaranhado do cérebro.
Eu não acreditava nisso. No cérebro, estou dizendo. Sei lá,
ele é uma máquina encaixada no meu crânio que já
vem com um piloto automático. Sempre gostei de dirigir e ele era um intruso.
O sentido estava claro: adiante. Olhar adiante e encontrar um caminho possível
e revelador. Sem cérebro mesmo; apenas com o sonho, o meu sonho.
Sempre gostei de revelações também. Acho que por isso
sonhava. Sentia uma ardência nas mãos e acordava. Mas o sonho continuava.
Ele envolvia a carne e a massa cerebral. Um giro em torno das plêiades
do insensato inconsciente que cobrava em códigos coisas que só
eram afeitas a fenômenos do mundo interior, onde um reino de infinitas
portas se avizinhava do ser desconhecido da realidade e que só se amarrava
no sonho com lenços de seda esfiapados.
A nuvem passa.
Branca quase transparente.
A imagem se dissolve e a visão encontra o azul celeste.
O sonho tinha cor.
EXTERIOR. NOVA DIMENSÃO. CÉU AZUL
Duílio está abrindo os olhos. Pisca tanto que a cor dissolve
e tudo fica embaçado.
- Nada poderia ser mais infame!
Disse uma voz grave com indício de náusea.
Quando olhei para trás e vi quem era, meu queixo caiu. Nada mais esdrúxulo
que encontrar o fariseu do Judas Iscariotes. Não tenho certeza que era
um fariseu, mas só podia ser. Não dava para ser grande coisa depois
do que fez com o Santo.
Nervosamente, olhei para o brilho dos seus olhos e desferi:
- Algum problema?
- Muitos.
- Não me diga?
- Digo e digo mais: você é um traidor.
- Eu traidor?
- Alguém que precisa vir aqui em sonho é alguém não
depositário de confiança.
- Que papo é esse? Este lugar é público.
- Público o escambau. E não estranhe não: escambau
aprendi com vocês.
- Vocês quem?
- Vocês, ora! Sua civilização.
- Não pode estar falando sério, seu Judas!
- Qual é o seu nome?
- Duílio, por quê?
- Com este nome, não devia estar aqui.
- Mas isso é discriminação! Tenho direito a ir e vir.
É sagrado este direito.
- Mas não aqui. Lugar de Duílio é no escaninho da letra
D. Ali naquele corredor.
- Isto aqui funciona assim é, com alguns pobres cenários separados
por letras?...
- Por letras e épocas. Eu estou só dois mil e cinco anos na
frente do senhor.
- Você é um miserável mesmo, Judas Iscariotes. Tanto
tempo se passou e você não melhorou nada. Um tiquinho que fosse.
- Melhorar é só um valor de qualidade. Não tenho nenhum
interesse por isto.
- Prefere ser um traidor para o resto de sua vida? Não acredito...
- A vida é sonho. E sonho muda toda noite. Então para que
mudar?
- Mas como pode ser? Você morreu há dois mil anos atrás!
- Dois mil e cinco, não roube. Posso ser traidor, mas você
é burro.
- Desisto. Então para onde me dirijo agora?
- Segue reto no corredor e passe a primeira entrada. Vai ver um bando de
pazzo querendo fugir. É ali que deve ficar.
- Você é um verme, Judas! Nunca mais quero ver o seu rosto
sem cor.
E assim saí. Com a jugular dando sinais que ia explodir se ficasse um
segundo que fosse com aquele miserável que não merecia sequer
um pedaço de pão. O mundo não merecia alguém que
desprezou Deus como se fosse um Duílio qualquer. Não adianta pensar
que há solução para os canalhas do mundo. Nem em sonho
eles nos deixam em paz.
Que raiva, que raiva...
A justiça tem ficado cada vez mais a dever.
Luz em foco no seu rosto ilumina a sua indignação. Mas, um lapso
de motivação impele movimento a suas pernas, a cabeça a
mil, a cólera maltratando os neurônios... Duílio congela.
Sua imagem se dissolve surgindo pesadas pálpebras embebidas em sono.
Música na madrugada. Duílio esquecera o rádio-relógio
ligado na estação romântica mais ouvida pelos namorados
de motel.
Que luxo de banheira é este a que o prazer reverencia e se banha?
Ele sentiu o perfume das suaves fragrâncias que evaporavam da sua pele
ensaboada.
Auto-libido.
Sensação de olhar para dentro de si e se masturbar com o pensamento.
Corte.
INTERIOR. BANHEIRO. MADRUGADA
Luz. Bem suave e que vem do abajur do quarto anexo invadindo a porta do banheiro
entreaberta.
Duílio lava o rosto com sabonete de odorística fragrância.
Pisca os olhos negros diante do espelho. Um sorriso cândido que vai se
transformando em sardônico assoma de sua boca. Aos poucos, seu sorriso
fica largo e a alegria contagia toda a sua expressão.
Primeiro plano de sua boca. Pelo gogó a imagem invade e se afunda no
mar vermelho das artérias, dos grossos condutos das veias, nos escaninhos
de órgãos...
Luz total.
A máquina continua trabalhando.
A imagem das entranhas vai ganhando a forma de uma mulher de faces rudes, ossuda
mesmo. O sorriso sardônico vai abrindo espaço em sua boca, aumentando
o volume com seus dentes amarelados, e sua voz desenha no ar a figura de um
rapaz em batas brancas, olhar perdido, olhos umedecidos pela crucificação
de sua língua diabólica.
Eles se cumprimentam. O conclave de forças ocultas morava no íntimo.
Ali nas entranhas onde não havia tempo ou época que separasse
imagens dessemelhantes. Eram figuras que tinham peso na vida de Duílio,
que o impressionaram pela força da palavra, dos atos que um dia soube.
Tia e Traidor. Duas potentes sentenças que martelavam a mente e o corpo
de Duílio com impulsos de morte, segundo o grande Dr. Freud.
Duílio não o conhecia. Sonhava, apenas. Sonhos de um inconsciente
agora revelado. Infame, nocivo, sem explicação.
A última imagem na cama é a de ele dormindo tudo aquilo que lhe
deixou marcas. As pálpebras tinham cerrado relações com
as figuras simbólicas.
Tentativa vã, conclui-se.
Fim.
Sobem créditos finais.