01
A máquina gira em paralelo as figuras. Aparecem três, uma é
diferente. Balaxita dá uma porrada no lado direito do caça níqueis.
Seu Madureira, que está atrás do balcão lavando copos,
levanta os olhos em sua direção. Apesar dos seus quase dois metros,
Balaxita respeita o velho dono do bar. Com um sorriso tímido, o negro
faz seu pedido de desculpas. Tira do macacão de frentista a moeda remanescente
e a coloca no orifício. Gira a alavanca e aguarda.
É preciso que três figuras iguais se alinhem e isso não
acontece novamente.
Sente ainda mais raiva, mas não bate na máquina. Vai ao balcão.
Balaxita sabe que dali pra frente, qualquer dinheiro que gastar do salário
que acabou de receber no posto, estará comprometendo seu orçamento.
Porém ele tem aquela sensação de que hoje é seu
dia. Tira uma nota de cinco do bolso.
- Troca pra mim seu Madureira.
O comerciante ainda lhe lança um olhar que poderia ser o de um pai repreendendo
o filho desajuizado. Mas nada diz. Despeja as moedas de vinte e cinco centavos
no balcão e pega a nota. Novamente se escuta o tilintar da máquina.
Os frequentadores daquele bar são quase sempre os mesmos. Todos
conhecem o Balaxita. Alguns torcem por ele, outros o secam na surdina. Mas ninguém
se preocupa com o fato dele estar apostando demais. Já estava ali a mais
de meia hora depositando moedinhas.
02
Primeiro prêmio! Fato inédito no bar. As moedas caiam sem parar
na pequena cumbuca metálica do caça níqueis. Balaxita ficou
paralisado - custou a acreditar. Seus olhos brilhavam mais que o cromo da máquina.
Logo apareceu um puxa-saco com uma sacolinha para auxiliá-lo.
Já no balcão, depositou as moedas; eram realmente muitas.
- Não falei seu Madureira - disse arreganhando os dentes - os otários
deixam o dinheiro de dia e eu venho buscá-lo à noite.
Quando recebeu do comerciante as cédulas, ainda estava extasiado. Era
mais do que o dobro do seu salário. Pagou os atrasados do bar, deu dez
reais pro puxa-saco e saiu com uma latinha de cerveja em punho.
Na fila do ônibus, pensava no que fazer com a grana: "Pagar os quinhentos
reais que devia dos alugueis atrasados do barraco para o sogro, quitar a dívida
na venda do seu Ernani e quem sabe fazer um passeio com a Dora e as crianças
no Parque Municipal". Porém, acima de tudo, sentia-se um rei.
03
Talvez por estar sob este feitiço, Balaxita demorou a notar aquela moreninha
bonitinha e gostosíssima atrás dele na fila. Lembrou-se ainda
de Dora; o quanto era bonita quando se conheceram. Talvez até mais que
esta atrás dele. Mas depois de três filhos e esperando o quarto,
sua mulher, de apenas vinte e um anos, não era mais a mesma. Principalmente
depois que passou lavar roupa pra fora.
Entretanto aquele remorso foi fugaz. Balaxita sentia-se um Príncipe Etíope
e a sorte finalmente lhe dava reconhecimento. Resolveu investir:
- Ei, tudo bem? - disse sem esconder nenhum dente.
Ela o olhou. Apesar daquele tamanhão, Sônia não o havia
notado. Até agradou dele. Era um negro forte e apanhado. Pensou em sacanagens
e medidas, mas se conteve, seu negócio era outro. Mesmo assim decidiu
deixar rolar o papo:
- Tudo bem - respondeu sem encará-lo.
Balaxita se desconcertou. Não sabia muito bem como continuar a conversa.
Porém sua autoestima favorecia.
- Você mora no Cantagalo?
Evidentemente ela não poderia dizer que estava indo buscar umas gramas
de branco com um mala que mora na região.
- Não, eu vou visitar uma tia que está doente.
Balaxita ficou contando vantagens afim de impressionar a menina. Seu sucesso
no jogo era o combustível para a repentina confiança. Nem notou
que a menina quase não lhe prestava atenção. Mas isso foi
até ele narrar como ganhou o primeiro prêmio. Acabou por revelar
a quantia em dinheiro que dispunha. Ela nunca imaginou que poderia pegar um
otário numa fila de ônibus de subúrbio. "Mas por quê
não?". Pensou.
Balaxita intensificou a resenha quando percebeu que a menina passou a lhe dar
mais atenção. Quanto mais falava, mais cegava.
04
Quando ele finalmente a convidou para tomar uma cerveja num bar ali perto,
ela teve que se conter para não aceitar de imediato. Fez um doce antes.
- Mas só uma tá.
Com um pouco mais de atenção, Balaxita teria notado qual era a
daquela menina. Afinal, uma microssaia vermelha e aquela minúscula frente
única, já eram informações suficientes.
Para os clientes da zona, Sônia era conhecida pelo codinome de Arabela.
Tinha dezenove anos e a dois estava em beaga. Veio de Vigário Geral no
Rio de Janeiro, depois que o noivo, traficante, foi morto pela policia. Uma
amiga de infância, a Darlene, que a trouxe. Foi ela também quem
lhe arrumou vaga na zona.
No início foi um pouco difícil. Mas com a ajuda das drogas acabou
se acostumando. Hoje Arabela faz um tremendo sucesso. Com seu corpinho mignon
bem distribuído e aquele sorrisinho infantil, passou a ser uma das mais
solicitadas. Começou a chover na sua horta. Porém gastava quase
todo o dinheiro com cocaína.
Geralmente buscava a droga de táxi. Era a primeira vez que iria de ônibus.
Mas a semana foi difícil e o dinheiro estava à conta. Sua salvação
era aquele otário.
05
Realmente foi difícil para ela aceitar ser beijada. A primeira lição
que aprendeu na zona foi jamais beijar os clientes na boca. Tirando um gigolô
que teve, não havia beijado ninguém depois do noivo. Até
que gostou.A preocupação maior era com o horário. Até
quando o Mala a esperaria.
Assim, quando Balaxita finalmente a chamou para irem num motel, ela teve que
fazer outra cena para não dar bandeira.
- Ah! sei não - falou tentando demonstrar constrangimento - até
hoje eu só dormi com um homem. O meu noivo que morreu de acidente de
carro no Rio - como te falei.
Depois de alguma insistência, Sônia aceitou o convite de Balaxita.
Foram para um dos pulgueiros na Avenida Santos Dummont. Ela ainda chegou a pensar
na pão duragem do rapaz que, com tanta grana, poderia chamá-la
para um lugar mais decente. Por outro lado pensou: "Quanto menos ele gastar,
mais sobra pra mim".
Sônia Teve que usar todo o seu repertório sexual para exaurir o
rapaz.
Chegou mesmo a dar um tirinho no banheiro para manter o pique.
Depois de ter trabalhado no posto desde as seis da manhã, de ter tomado
algumas cervejas e de ter transado como um animal no cio, finalmente Balaxita
apagou.
Com cuidado ela foi tirando o dinheiro da carteira que estava no bolso do macacão.
Só deixou os vales-transporte. Saiu do quarto pisando em ovos. Na portaria,
ainda pagou a conta.
06
Pegou um táxi e deu o endereço do traficante.
Apertou a campainha. Uma menina de uns dez anos, despenteada e descalça,
atendeu.
- Seu pai taí?
- Tá sim dona, pode entrar.
Foi levada para uma pequena sala do barraco. Sentou-se no sofá de couro.
Havia uma tevê de trinta e duas polegadas novinha, um DVD e um aparelho
de som de última geração. "Tráfico dá
mais dinheiro que na zona", pensou ela.
O Mala veio do quarto com cara de sono:
- Achei que você não vinha mais.
- Tive uns contratempos - falou demonstrando ansiedade - mas cadê o pó?
- Melô minha filha, vendi pruma turma que vai dar uma festa na Pampulha.
Ela se exasperou.
- Se tá brincando né? - Ao menos um pouquinho você deve
ter aí.
- Não tem nada, nem papelote. Agora só amanhã.
Ela se levantou e ficou andando impaciente pela sala. Estava na fissura.
- Não é possível, você tem que ter alguma coisa.
Eu preciso cara! - falou se aproximando dele - eu preciso de pó agora!
Ele já presenciou aquela cena várias vezes. O desespero dos viciados.
Ela faria qualquer coisa para ter a droga.
- Pra hoje, só se você subir o morro. Mas já são
mais de dez horas e é muito perigoso.
- Vai comigo por favor - Suplicou.
- Sem chance. Eu não subo o morro de jeito nenhum, quanto mais à
noite.
Esqueceu que sou concorrente deles. Me fecham antes que eu ponha o nariz lá.
Sônia continuava andando desesperada pela sala.
- Como é que eu faço pra ir lá? Quem que eu devo procurar?
Ele pensou em não fornecer as informações. Sabia que a
menina estava se arriscando. Mas sabia também que se não desse,
ela não sairia da sua casa.
Poderia lhe trazer problemas.
- Fica no final da avenida principal do bairro. Aquela que o ônibus vem.
Sabe qual é?
- Sei sim.
- Pois é, no final da avenida começa o morro. Chegando lá
você procura o seu Jonas. Nesse horário, só ele mesmo.
Ela pediu pra ele chamar um táxi.
07
O motorista parou no final da avenida.
- Por que você parou cara? - é lá em cima.
- Não subo aí de jeito nenhum - falou decidido.
- Puta que o pariu cara! - é só subir mais um pouquinho até
eu achar alguém, Quebra o galho pô. Eu te dou uma grana extra.
- Por dinheiro nenhum eu subo esse morro.
Sônia pagou a corrida indignada. Desceu do carro xingando. Só não
chamou o motorista de doce de leite.
Lembrou de Vigário Geral. Aqueles becos. "Favela é igual
em todo lugar".
Começou a subir.
Logo avistou um boteco. Era minúsculo. Não havia mais do que meia
dúzia de pessoas - incluindo o proprietário. Chegou no balcão.
- O senhor sabe como que eu faço pra encontrar o seu Jonas?
O dono do bar, que servia uma pinga para um velho bebum no balcão, olhou-a
de cima em baixo:
- Quê que cê quer com ele menina?
- Foi o Jarbas que me indicou.
Os ouvidos de um homem magro, que estava jogando uma partida de bilhar, se aguçou
ao ouvir aquela conversa. Quando Sônia saiu do bar procurando identificar
as instruções fornecidas pelo comerciante, foi seguida por ele
e pelo outro jogador.
08
Ferrugem se encaixava nas descrições lombrosianas: Magro, curvado,
queixo encolhido e olhos pequenos. O rosto cheio de pintas e os cabelos desgrenhados
e ruivos fazem justiça ao seu apelido. O outro é mais baixo e
muito forte. Tem aquele olhar doce dos mentalmente alienados. Era conhecido
por Rino; alguém achou semelhança nele com o imponente animal
(rinoceronte).
Ferrugem era seu mestre. A única pessoa que ele tinha no mundo. Não
conheceu seu pai e sua mãe morreu quando ainda era criança.
Rino é mudo. Não porque nasceu assim. Um dos muitos amantes de
sua mãe arrancou-lhe a língua com uma faca. Pois se irritou com
a voz débil do menino tentando impedir que sua mãe fosse espancada.
Foi criado em orfanatos e casas de correção. Ferrugem tinha alguma
compaixão por Rino e o usava como proteção, pois este dava
medo.
Seguiram Sônia e quando já estavam mais afastados do bar, se aproximaram.
- Então se tá procurando o seu Jonas menina? - falou Ferrugem.
Sônia se assustou, pensou em correr, mas desistiu quando viu Rino.
- Pois é, o dono do bar já me falou onde fica. Obrigada viu.
Ferrugem ficou andando ao redor dela.
- Mas você não pode ir até lá sozinha - uma menina
tão bonitinha assim, pode se machucar. Nós te acompanhamos.
Pensou em alguma maneira para se livrar deles.
- Não esquenta não, eu sei me virar.
- Mas nós somos gente do seu Jonas - temos obrigação de
proteger os clientes dele. Além do mais, pra ir até lá,
vai ter que passar pelo beco da morte, que é escuro e você pode
se perder.
Sentiu-se mais aliviada e deixou-se acompanhar.
09
Ferrugem mentiu. Era apenas um vagabundo vivendo de pequenos golpes. Nunca
trabalhou para o traficante Jonas.
Quando chegaram na entrada do beco da morte, Sônia percebeu que aquele
caminho divergia das instruções que recebeu do dono do buteco.
Antes que seus pensamentos se ordenassem, foi violentamente empurrada para a
entrada do beco. Caiu sentada num barranco.
Através de um simples olhar do mestre, Rino soube o que fazer. Pegou
a menina pelo braço e começou a arrastá-la para o interior
do beco. Ferrugem se aproximou:
- Então a putinha veio buscar pó né?
Sônia ficou apavorada - não conseguia nem gritar. Seu braço
esquerdo estava sendo esmagado pelo animal. Abraçou a bolsa como a um
filho em perigo.
Ferrugem percebeu.
- A grana taí né? - falou olhando para a bolsa - é só
você me dar que fica tudo bem.
Ela observou Rino e decidiu obedecer.
Estava muito escuro. Ferrugem fuçou na bolsa, mas não encontrou
dinheiro algum.
- Sua vagabunda, eu sei que tem grana aqui! - sei que puta sempre tem esconderijo
na bolsa - disse lhe devolvendo - tira o dinheiro e me dá a grana. Sem
gracinhas heim, senão meu amigo aqui esmaga sua cabeça.
Ela olhou mais uma vez a figura monstruosa de Rino, começou a mexer na
bolsa, sob o olhar atento dos dois.
Havia mesmo uma repartição secreta na bolsa, Sônia retirou
dela um gordo maço de notas de cinquenta. Os olhos de Ferrugem brilharam.
Mas quando tentou pegá-lo das mãos da menina, esta jogou as notas
para cima. Estava ventando e o dinheiro se espalhou. Os dois tentaram deter
as notas no ar, mas estava muito escuro. Na confusão, a menina correu.
Foram em seu encalço beco adentro. Rino tinha dificuldade para correr.
Ferrugem Conseguiu alcançá-la e começaram a lutar.
10
Ela chegou a ficar feliz quando a ponta da sua bota atingiu as bolas dele.
Este caiu no chão gemendo. Mas a alegria da menina durou pouco. Nem percebeu
de onde vinha aquele murro. Acertou-a na fronte, caiu quase desacordada. O nariz
sangrava. Tentou levantar-se. Rino ainda desferiu outra pancada no olho esquerdo
da menina - que desabou novamente. Ela ficou caída e ele foi socorrer
o amigo que estava se contorcendo no chão.
Quando Ferrugem se recuperou, a primeira coisa que fez foi se dirigir a Sônia.
Viu seu rosto todo ensanguentado. Ela estava meio grogue, mas não
totalmente desacordada.
Tirou uma faca da cintura e se agachou até a menina.
- Eu vou te rasgar todinha sua vadia - falou encostando a lâmina em seu
pescoço.
O metal frio a despertou um pouco. Mas estava muito ferida para sentir medo.
Ele então afastou a faca.
- Mas antes eu vou me divertir um pouco.
Começou então a desabotoar a braguilha.
11
Curim é um menino tão escuro quanto a noite. Além disso
é ágil, leve e esguio. Com aquele short de nylon preto e sem camisa,
foi só não abrir o bico e nem mostrar os dentes para passar desapercebido.
Assim, ele presenciou toda a cena com Sônia, desde que esta havia saído
do bar, até a hora que o dinheiro voou.
Quando eles começaram a perseguir a garota pelo beco, Curim aproveitou
para catar muitas notas com sua boa visão noturna.
Como ele era avião do seu Jonas e havia escutado o seu nome, estava ali
contando tudo a ele.
- Uma menina de uns dezoito anos você disse? - me procurando?
O menino confirmou.
Jonas se lembrou da filha que estuda Direito em Juiz de Fora. Ela prometia visitá-lo
a qualquer momento. As descrições físicas que Curim deu
coincidiam com as da filha.
Jonas estava há horas negociando um fornecimento com o filho do deputado
Castro Gomes. Pediu desculpas ao seu interlocutor, chamou os dois seguranças
e se virou pro menino:
- Me mostra aonde você viu isso tudo.
Junior, o filho do deputado, preferiu segui-los a ficar ali sozinho.
13
Rino nunca havia estado com uma mulher na vida. Vendo seu amigo estuprar a
menina toda ensanguentada, ele sentiu-se confuso. Não conseguiu
acompanhar a cena imune. Afastou-se e foi vomitar atrás de uma árvore.
Assim, quando Jonas e seu séquito chegaram, não o viram.
Estava escuro no beco, mas o traficante observou o vulto dos corpos e achou
que poderia mesmo ser sua filha debaixo daquele homem. Ergueu a arma.
- Ei! - gritou - seu filho duma puta!
Só teve tempo de olhar pra trás. A primeira bala foi na testa.
Caiu de lado. Jonas aproximou-se descarregando o revolver entre a cabeça
e o peito.
Depois se abaixou e perscrutou Sônia, que estava desacordada. Sentiu um
alívio.
- Ah! Graças a Deus! Graças ao bom Deus, não é ela
não! Viu doutor, não é ela não. Deus é pai.
O traficante foi se afastando seguido pelos capangas. O filho do deputado estava
em estado de choque. Olha para o homem morto desfigurado no chão e a
menina ao seu lado. Ela deu uma estremecida:
- Seu Jonas! - gritou ele - ainda ta viva.
O traficante se virou.
- E daí rapaz! - é só uma viciada - e continuou andando.
Junior se abaixou e sentiu a respiração da menina. O peito nu,
ofegante. A calcinha fora arrancada, a saia estava acima da cintura. Ele a pegou
nos braços e seguiu. O traficante ainda olhou pra trás com reprovação
e continuou andando.
14
Rino saiu de trás da árvore e correu pra onde estava o amigo.
Ficou olhando aquele corpo inerte e desfigurado ali no chão. Ainda conseguiu
avistar o vulto do filho do deputado carregando a menina. Ao lado do corpo estava
a faca. Rino apanhou-a e disparou.
O grunhido que se ouviu foi algo mais animalesco do que humano. Junior tinha
acabado se sair do beco; havia iluminação. Quando olhou pra trás,
atraído pelo grito horrendo, ainda conseguiu ver a origem daquele som:
o pedaço de língua cortada do homem que disparava em sua direção.A
faca atravessou seu pescoço de cima para baixo. Tombou para trás
e Sônia caiu sobre seu corpo - formando uma cruz no chão. No mesmo
instante, os leões de chácara do traficante se viraram e alvejaram
os três corpos. Todas as balas foram gastas.
A polícia só chegou pela manhã.