A Garganta da Serpente
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O Labirinto

(Fernando Tamietti)

O primeiro método que inventei não deu muito certo. Colocava os pacotinhos com as balas nos retrovisores dos carros nas três filas. Quando o sinal abria eu ficava perdido entre os veículos e vários pacotes caíam no chão.

Muitos sendo esmagados pelos pneus. Alguns dos motoristas recolhiam sem pagar.

Passei a fazer a distribuição numa só fila. Daí volto pro primeiro carro e vou catando o dinheiro ou as balas. Com o tempo decorei o tempo do sinal.

Sei exatamente em quantos retrovisores posso deixar os saquinhos.

Ouço de tudo no meu ponto. Me chamam de vagabundo, de trapaceiro, de retardado, de maluco e mais um monte de coisas.

Acho que fiquei mesmo com cara de retardado. Pois passei a rir involuntariamente sacudindo a cabeça de um lado pro outro. Isso aconteceu depois que eu saí daquele hospital. Foi depois disso também que minha memória começou a falhar.

Mas até que essa cara tem me ajudado, pois algumas pessoas me olham com pena e acabam dando alguma coisa. Principalmente as mulheres. Apesar dos protestos dos maridos que as recriminam dizendo que é por isso que gente como eu não trabalha, que é por isso que esse país não vai pra frente. Fico com vergonha de ser culpado do país não ir pra frente. Mas não compreendo bem o porquê.

Uma vez olhei num retrovisor e vi minha cara de retardado. Achei graça.

Realmente as pessoas tinham razão. Me acostumei com ela e passei até a gostar quando percebi que as crianças me sorriam. Contei isso pra assistente social e ela também riu. Daí me lembrei que quando era criança, algumas pessoa diziam que eu tinha cara de bobo. Contei pra Marisa, a assistente social. Ela percebeu que eu estava me lembrando de alguma coisa e se ouriçou:

- O que mais que você lembra?

Mas eu recolhi minha cabeça entre os joelhos e chorei baixinho pra ela não ver. Tenho vergonha. Sempre fico triste quando ela me pede pra lembrar das coisas.



Marisa fala que eu devo estar chegando nos quarenta. Fala que sou inteligente e que tive boa educação. Ela acha que eu devo ter estudado numa faculdade.

- Você fala tão bem, escreve poesias lindas...

Tem ora que eu lembro, tem ora que eu não lembro. Não conto tudo o que lembro pra ela. Não conto das duas crianças. Que eu brincava com elas no parque, que eu nadava com elas no clube e que elas me abraçavam e me chamavam de pai. Não conto porque essas lembranças me deixam muito triste e a Marisa vai ficar fazendo perguntas e eu vou ficar ainda mais triste.

Outra lembrança que não conto de jeito nenhum é sobre a mulher sem rosto.

Na verdade eu mais sonho do que lembro disso.

É sempre o mesmo sonho. A mulher fica me apontando o dedo e gritando. Ela usa as mesmas palavras dos motoristas raivosos. Sai um raio verde da ponta do dedo que ela balança na minha cara. Esse raio me atinge e vou diminuindo de tamanho. Até que ela me pega e fico todo dentro da sua mão. Daí ela começa a me espremer e chega o rosto gigante bem perto do meu e só vejo dentes. Sempre acordo gritando.



Marisa joga xadrez comigo. Ela descobriu que eu sabia jogar no dia que me bateram na praça sete.

Eu ficava lá olhando e queria jogar também, mas não deixavam - diziam que eu era mendigo e que mendigo não joga. Não sou mendigo, nunca pedi esmola.

Pra me vingar fiquei dando palpites nos jogos deles. Dei uma dica certeira e o jogador a aproveitou. O adversário ficou indignado. Começaram uma briga e chegaram a conclusão de que eu era o culpado. Aí me desceram o cacete. Perdi mais dois dentes. Se ela não tivesse aparecido, eles acabariam me matando. O que não seria de todo ruim - já que eu mesmo não conseguia fazê-lo.

Quando ela perguntou porque haviam me batido, lhe contaram:

- Esse maluco filho da puta ficou dando palpite no jogo.

- Mas só por isso que vocês o espancaram? - era só ignorar.

- Ignorar como dona, esse doido mostrou pro Serjão onde mexer o cavalo e ele me deu cheque mate - respondeu o perdedor.

Depois que voltamos do João XXIII, ela me perguntou:

- Você sabe mesmo jogar xadrez?

- Acho que sei.

Ficou pensativa dentro de um sorriso leve.

No dia seguinte apareceu com um tabuleiro e me levou pra escadaria da igreja São José. Disse que gostaria de aprender.

Enquanto eu montava, ela acompanhava num papel. Fui falando sobre o movimento de cada peça:

- O cavalo você só pode mexer fazendo um "L" - Assim ó! - o Bispo em diagonal, a torre em linha reta...

Ela ia conferindo no manual. Parecia realmente muito surpresa. Quando terminei, havia lágrimas em seus olhos:

- A cada dia que passa fico mais surpresa com você. - Falou enquanto fazia a costumeira caricia na minha cabeça lisa.

- Você é um mistério fascinante - concluiu.

Até me deu o tabuleiro de presente. Mas acabou sendo roubado. Agora, quando quer jogar, ela trás o tabuleiro e o leva de volta. Eu ganho quase sempre.

Às vezes perco por querer pra ela não ficar chateada.

Não me lembro quando aprendi a jogar, mas me lembro de ter jogado na cadeia.



Geralmente sei os horários que ela vem e enterro a garrafa de pinga. Mas ela cheira meu hálito:

- Andou bebendo né?

Faço minha melhor cara de retardado e ela deixa pra lá. Pergunta onde eu dormi:

- Por aí.

Quer saber porque eu não me fixo num lugar. Eu não quero contar que de madrugada, se a gente fica sempre no mesmo lugar, apanha da polícia. Tenho medo da polícia.

Fico feliz por ela aparecer, mas não gosto do interrogatório. Ela insiste em me salvar de alguma coisa que ela nem sabe o que é. Eu não quero ser salvo de nada.

- Você pode fazer tratamento num hospital.

- Não tô doente.

- Mas é tratamento pra melhorar sua cabeça, pra você lembrar das coisas.

- Não quero lembrar de nada e hospício é cemitério dos vivos.

Mostrou-se surpresa com a resposta, mas creio que não percebeu a citação de Lima Barreto - deve ter achado que saiu da minha cabeça maluca. Eu ia explicar pra quê?



Domingo é o dia mais triste de todos. Não tem Marisa e a cidade está vazia e cansada. É o melhor dia pra morrer. Já passei várias tardes de domingo no viaduto Santa Teresa contemplando o Arrudas e os trilhos. Nunca tive coragem de pular.

Vejo as pessoas no parque municipal. Fico olhando para os pais brincando com seus filhos. Sei que tive alguma coisa a ver com isso. Mas sinto tanta dor no peito que fecho os olhos.

Teve uma vez que vi um pai gritando com seu filho - ameaçando o menino com uma cinta e o sacudindo. Não sei o que me deu que corri na direção deles. O homem se assustou e jogou a lata de cerveja em mim. Pegou no meu olho. O menino começou a chorar. Apareceram os guardas do parque e o homem disse que eu queria atacar o menino. Eu não queria, mas não conseguia falar nada. Me expulsaram do parque à ponta pés. Hoje em dia, quando vou lá, fico escondido atrás das árvores só olhando.



Marisa me perguntou várias vezes o que tinha acontecido com minha perna - eu não dobro o joelho direito. Sempre digo que não lembro. Apesar de, às vezes, passar alguns flashes na minha cabeça de alguns homens me espancando e pisando nela.

Sei que foi na cadeia. Mas é outra coisa que não gosto de lembrar também.

Isso porque sempre me vem na cabeça o dia que me prenderam. Lembro da menininha chorando - estendendo os bracinhos e me chamando de papai - enquanto os policiais me algemavam. Disseram que era porque eu não paguei pensão alimentícia. Não gosto de lembrar porque as crianças não merecem meus pensamentos.

Cansei de falar pra ela que não sei meu nome. Documento eu não tenho nenhum. Ela não gosta de me chamar de Manquinho - como todo mundo. Ô povo ignorante que não sabe diferenciar uma pessoa que manca de outra que arrasta a perna. Vô me importar pra quê? Já me acostumei. Ela me chama de vários nomes pra ver se eu lembro. Afonso, Nelson, Eduardo, Victor, Júlio e tantos outros. Eu não respondo.

- Quê que vale um nome?

Ela não soube responder.

- Eu tento fazer você se lembrar das coisas e você parece se esforçar pra esquecer.

- Não tenho nada pra lembrar.

- Não tem nada pra lembrar ou não quer?

Nessas horas que pressiono as laterais internas dos joelhos contra as orelhas e cubro a cabeça com as mãos. Ela faz gestos de resignação.

- Você tem medo de quê?

- Eu não sei.

- Você tem algum bloqueio. É alguma coisa do seu passado que te alienou.

- Você também me acha um doido né? - digo infantilmente.

Sei qual a recompensa. Ela acaricia minha careca cheia de relevos.

- Eu te acho uma pessoa sensível, porém fora deste mundo. É como se você estivesse perdido num labirinto; que é sua própria razão.

Finalmente ela conseguiu me deixar pensativo com esse negócio de labirinto.

Ficamos um tempo em silêncio.

Marisa volta a ler as poesias em silêncio.

- Por que você não rima?

- Rima só serve pra mentir.

- Mas rima fica bonito.

- Eu não escrevo pra ficar bonito. Escrevo pra arrancar alguma tristeza do peito e aprisioná-la no papel.

- E dá certo?

- Não, ela sempre volta.

- Quer dizer que escrever é inútil e dolorido?

- É sempre dolorido e quase sempre inútil.

- E porque escrever então?

- Pra sobreviver.

- Sobreviver como, se você não ganha dinheiro com isso.

- Sobreviver pelo ato criador - citei Artur Bispo (outro doido). Mas explicar pra quê?

- Parece coisa de Deus; criar apesar da dor e se sacrificar pela humanidade, Mesmo sabendo que não adianta nada. Mas você me disse que não acreditava em Deus?

- E não acredito. Também não quero me sacrificar por humanidade alguma. Pra mim, criar, é essência do ser humano. Deus somos nós criando.

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