A Garganta da Serpente
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Alzira e o fim do mundo

(Gisela Cesario)

Há semanas, a Alzira estava deprimida. Não acontecia nada. Nem um terremoto, nem um furacão, nem enchente, nem porcaria nenhuma. O passatempo predileto da Alzira era assistir à TV. Não novelas, filmes e essas bobagens, gostava dos noticiários, mas não de qualquer noticiário. O melhor programa para Alzira era acompanhar um desastre, uma tragédia onde quer que fosse, quando tinha cobertura 24 horas então, era o máximo. Alzira nem dormia, se um canal parasse de falar no assunto, mudava pra outro. As pessoas normais só têm um enorme interesse por coisas que acontecem perto da sua casa ou que venham ter uma influência direta em suas vidas. Mas a Alzira tinha esse interesse por tudo no mundo todo. Estados unidos, Tunísia, baixada fluminense, ciclone, maremoto, chacina.O importante era a grande comoção. Como era sozinha, Alzira morava no seu planeta onde era a única habitante. Só acontecimentos desse porte a faziam se sentir parte de uma grande comunidade. Por isso, falava cinco línguas fluentemente, o que lhe permitia acompanhar os mais importantes noticiários internacionais, em vez de assistir simplesmente aos jornais locais. Pois, se as pessoas atingidas e interessadas mudavam a cada tragédia, a espectadora Alzira era sempre a mesma. Estava sempre lá. Ela e os repórteres das grandes redes mundiais. Para eles, uma catástrofe de proporções gigantescas era sempre uma catástrofe de proporções gigantescas, mesmo que fosse outro lado do mundo.
Nesse dia de depressão, Alzira ligou na sua rede internacional preferida e reparou que o apresentador parecia solitário na sua bancada. Não via aquelas pessoas passando atrás dele, aquelas que a gente não sabe se estão fingindo ou trabalhando mesmo enquanto o jornal acontece. O lugar parecia só ter ele, até a câmera dava a impressão de estar parada, não havia cortes, ângulos. Estranho, pensou Alzira, acho que esses caras estão falindo. Já ia mudar de canal quando o jornalista gritou: "- Não!"
Alzira se assustou, ela não tinha aumentado o volume, ele gritara mesmo. Ficou olhando fixo a Tv para descobrir "não" o quê, mas ele não disse mais nada. Ela fez menção de pegar o controle novamente.

-Não, por favor, Alzira, não mude.

Ela fechou os olhos aterrada, depois abriu devagar para se certificar de que não estava sonhando. O repórter continuou.

- Aconteceu uma coisa, eu estava assim sem jeito de te dizer, mas se você mudar de canal vai descobrir.
- Aconteceu alguma tragédia? - perguntou sem se dar conta de que falava com a tv
- Sim, bem grande.
- Onde? Nos Estados Unidos? - gostava das tragédias americanas porque tinham a maior cobertura.
- Também.
- Também, como? Outro país foi atingido?
- Sim.
- Qual?
- Todos. O mundo inteiro.
- Não pode ser. O mundo todo? Que ótimo! Quer dizer, que horror! Vamos ver logo o que está acontecendo! É a onda gigante?
- Não sabemos, ninguém sabe e não podemos ver nada.
- Como assim? Cadê os repórteres? Cadê o Alan? A Jackie? O Robert? - já sabia o nome deles de cor.
- Não sobreviveram. Sabe como eles são, têm mania de ficar no meio da confusão, acabaram indo também.
- Mas quem diabos está cobrindo essa desgraça? E como se chama?
- Se chama fim do mundo Alzira, e não tem ninguém cobrindo porque todos se foram. O mundo acabou.

Alzira se recostou no sofá, pálida. A informação lhe trouxe a consciência de que estava conversando com o jornalista da tv, pensou que estava louca e pegou o controle decidida.

- Não mude, Alzira
- Você não manda em mim!

Mudou para o maior concorrente da rede, nada, chiados, em outro canal de notícias, a mesma coisa, tentou todos, todos fora do ar, passou para outros canais, culinária, entretenimento, canais pornográficos, esportes, qualquer coisa, mais chiado e chiado, acabou voltando ao jornalista que tinha um sorriso compreensivo no rosto. Sentiu que ele olhava para ela.

- George? - Alzira sabia o nome dele também.
- Não falei, Alzira, não sobrou nada, não queria que você passasse por essa decepção, mas você foi teimosa.
- Como você sabe o meu nome?
- Você também sabe o meu.
- Mas você se apresenta toda noite. Diz, boa noite, eu sou George Williams e esse é o jornal da noite...
- E você sorri e responde, boa noite, george, eu sou a alzira..
- Você ouve?
- Ouço tudo.
- Que vergonha.
- Não precisa, ainda mais agora, só sobramos nós dois. O jornalista e a espectadora.
- Mas como foi isso? Me conta, George.
- Não posso.
- Não pode porquê? Você sempre me conta o que está acontecendo. Tudo que eu sei sobre furacões, por exemplo, aprendi com você. O olho do furacão, o aquecimento das águas, como as coisas começam, onde se esconder...
- Sim, Alzira - respondeu, de cabeça baixa, quase envergonhado - Mas eu recebia essa informações de outras pessoas, gente que ficava na rua, gente que conversava com os cientistas, com os presidentes, com os líderes populares. Eu mesmo não sabia de nada antes que eles me dissessem e também nada questionava, apenas lia o que vinha escrito para mim.
- E agora você não tem nada para ler. E nada sabe?
- Nada. Eles se foram antes que pudessem escrever me contando o que aconteceu. Você nunca reparou que estou sempre sentado aqui nessa bancada, como poderia saber de alguma coisa? Sei tanto quanto você que está sempre sentada aí nesse sofá.
- Vai ver foi por isso nós sobrevivemos, não estávamos no mundo lá fora.
- Pode ser, Alzira. Pelo menos ainda temos um ao outro.
- É. Meio chato, né?
- Chato?
- De que adianta ficar viva num mundo sem notícias? Quer dizer, não vai acontecer nada, nenhuma bomba vai explodir, nenhuma guerra vai começar, ninguém mais ficar indignado, nem furioso, nem será injustiçado ou premiado. Que vamos fazer?
- Podíamos conversar. Você podia me falar da sua vida e eu falava da minha.
- Vida? Que vida? Minha vida é assistir você e a sua é me contar o que está acontecendo. O que poderíamos dizer um ao outro? Nossa vida acabou.
- Peraí, Alzira, o que você quer dizer com isso?

Notou que Alzira tinha um brilho estranho no olhar. Viu a levantar do sofá e vir na direção da TV.

- Alzira, não faça uma besteira dessas, nós sobrevivemos juntos a tantas desgraças, o aquecimento global, a tsunami, até ao fim do mundo nós sobrevivemos. Não podemos desperdiçar isso, vamos encontrar um jeito, vamos fazer um abrigo, chamar os paramédicos, pedir doações à cruz vermelha, se bem que...

Percebeu que seus argumentos não tinham mais lógica. Estava apenas repetindo o que se sempre dizia a cada tragédia. Mas a deles era diferente. Diferente e solitária. A vida deles estava realmente acabada. E Alzira o olhava com um misto de convicção e pena. Estava de pé, junto a TV.

- Despeça-se dignamente - disse ela.
- Por favor, Alzira...
- Ande logo, você sempre soube manter a dignidade mesmo ante às maiores desgraças! Ande logo! Não ouse choramingar.
- Boa noite - disse, fungando...
- Você sabe que não é assim.

Recuperou o fôlego e encarou com bravura sua plateia, a eterna algoz.

- O Jornal da Noite fica por aqui. Uma boa noite a todos.
- Boa Noite - respondeu Alzira, como sempre fazia.

Depois disso veio um clique e a escuridão. Era o botão de desligar da TV . Mas foi como o gatilho de um revólver.

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