A Garganta da Serpente
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Sala de espera

(Giselle Del Pino)

Cheguei na hora mas tive que esperar..

Detesto isso! Cumpro horários, palavra, compromissos. E não perdoo facilmente quem me deixa esperando.

Tenho regras rígidas de boa convivência.

Já não começo bem, mas engulo.

A atendente me olha como se fosse ela, o analista.

Sinto-me problemática, louca.(risos).

O que poderia ela estar pensando?

"Mais uma deprimida. Provavelmente já tentou se matar umas três vezes. Ou talvez tenha um desvio de conduta...cleptomaníaca, ninfo, alcoólatra...talvez tenha taras..."

Começo a rir sozinha e ela me encara meio sem graça, com um risinho no canto da boca.

Nossa! Se ela estiver pensando isso tudo mesmo, provavelmente já deve estar com medo de mim....

Não aguento e começo a rir mais alto.

Acho que agora exagerei, pois a pobre atendente me perguntou se eu precisava de alguma coisa.

Respondi que não, que estava me lembrando de uma situação engraçada.

Olhei o relógio. Acho que não vou esperar.

O que me levou a aceitar a sugestão de amigos?

-Fazer análise!

No meu grupo isso era moda e eu não poderia fugir a regra.

Diante de meu pseudocaos interior me convenci que deveria pagar para ouvir-me falar coisas que provavelmente nunca imaginei.

Meu monólogo da solidão. Sem foco luminoso, sem plateia interessada. Aqui eu pago para ser atriz, enquanto minha única plateia recebe para não me aplaudir.

Mas até que ponto eu sustentaria meu texto?

Isso vai depender.

Francamente, tenho uma visão profundamente individualizada dos conceitos psicanalíticos.

Minhas leituras sempre me remeteram a assombrosa conclusão de que a análise é um ponto de vista apenas.

Tirando as taras, manias e perversões, que qualquer droga química atenua, me sinto inteira de mais para deflagar-me em culpas e conclusões precipitadas.

Sei, exatamente, (hoje eu sei!) onde me dói a alma e em que tempo de mim deixei-me vazia.

Concluo nesta espera que a evolução mental é que norteia toda a nossa conduta.

Freud e seus mecanismos de aproximação e a delícia de poder ter no sexo a explicação mais que contemporânea para sua própria terapia.

Jung e seus sonhos de castelos e jardins, delineando o mais belo de nós nas metáforas e alegorias do inconsciente que apesar de tudo, é a nossa parte mais densa e mais verdadeira.

A visão de Lou Salomé e seu delicioso jogo de não culpa. De vida pela vida. De amor e liberdade.

Ser e só se ser para se ter completamente. Consciente da individualidade de sentimentos únicos e pessoais.

Como desdobrar-se e desconstruir-se como um quebra cabeça de peças tão minúsculas? Seria para isso que eu teria vindo até aqui?

Lembro-me de Renato, tão poderoso e arrogante,falando de seu processo de análise. Processo esse que já durava quase vinte anos, e ele continuavam bebendo, cheirando e cultuando neuras.

Talvez seu processo seja mais longo e umas quatro encarnações poderá concluir, enfim, que ele não passa de um porra louca mesmo.

Vânia estava há uns doze anos em processo e ficava clara sua paixão homossexual por essa tirana de programa que sugava seu dinheiro e seus olhares.

Mesmo batendo no peito e dizendo-se hetero, nunca conseguiu ficar muito tempo com homem nenhum.Mas isso faz parte da transferência....

E eu estou aqui.

O que faço quando entrar?

Tiro a roupa?

Declamo Silvia Plath?

Faço um discurso teatral ou dou-me o prazer de ficar calada?

Ainda não sei.

Fico pensando...e o pobre? O assalariado que não pode dispor de dinheiro? Como faz ?

Provavelmente um banquinho de Preto velho no Centro da Cabocla Jurema seja mais eficaz que os vinte anos de Renato mais os doze de Vânia (risos)

Mas estou sendo contraditória: adoro Psicanálise! A sua literatura sempre me fascinou e a compreensão de seus labirintos me envolve.

Então, onde estão errando?

Ou não estão?

Deveria ter tentado terapia de vidas passadas....

Minha amiga Beth me indicou esta terapeuta com ótimas referências ao seu trabalho.

Lacaniana., bem sucedida. Participava sempre de congressos e seminários, evidenciando sua atualização profissional.

E eu com isso? (risos)

Pelo que ela cobrava deveria incorporar o próprio Lacan.

(a atendente continuava a me olhar vez em quando)

- Como eu era cruel!-

Tenho um emprego prazeroso, uma situação econômica satisfatória, um relacionamento maduro e duradouro (embora não moremos juntos- Simone e Sartre estavam certíssimos!!-)

O que estou fazendo aqui?

É certo que acordo vez em quando de mau humor.

Que minto sobre a idade.

Fumo antes de dormir.

Adoro cozinhar tomando um Brandy.

Ouço Roberta Miranda e Mozart como se tudo fosse normal.

Sou apaixonada pelo meu cachorro e converso muito com ele.

Como de mais à noite e nada durante o dia.

Adoro Salvador Dali e não gosto de Picasso.

Amo Van Gogh e me identifico com a loucura secular dos imortais. (só não corto as orelhas!)

Deve ser por isso tudo que preciso de análise....

Será que depois deixarei de rir á toa?

Tomar banho de mar nua, à noite?

Viajar de madrugada ?

Chorar com filmes?

E depois como serei?

Como Renato? Como Vânia?

Não me reconhecerei, e talvez, somente a medicação me dará chances de viver.

Que loucura!

A atendente vem me tirar do transe:

- Senhora! ... A senhora entrará em cinco minutos.

Aturdida não compreendo de imediato.

Ela repete e enfim entendo.

Levanto-me, pego a minha bolsa e digo a ela que preciso ir.

- ...Esqueci que iria ao cinema.

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