Ele gostava de filosofia, amava, era absolutamente "vidrado" nesse
assunto. Eu soube disso depois de ter-me interessado por ele em um sarau, onde
declamou um poema de Cora Coralina. Ah!, poesia também era uma de suas
paixões. Meu filosofo até chegou a dizer que escrevia alguns poemas.
São lindos os homens que escrevem poesia, não?
Depois de tê-lo visto no sarau, passei a segui-lo. Sei que isso não
é algo politicamente correto, mas eu o fiz. Foi, então, que descobri
que meu pretendido frequentava a biblioteca todos os dias úteis,
de segunda a sexta, sempre no mesmo horário, ao meio-dia. Apaixonei-me
por sua pontualidade e passei a tentar imitá-lo: todos os dias, cinco
para meio-dia, lá estava eu o esperando.
Meio-dia em ponto ele chegava. Lia os jornais, passava os olhos por alguns poemas,
para depois, enfim, seguir em direção à estante de filosofia,
onde, meticuloso, ia passando o dedo pelos títulos até encontrar
um que fizesse brilhar seus lindos olhos. Pegava esse livro e ia ao balcão,
onde pedia à antipática atendente (como eu invejo aquela mulher
que todos os dias o olhava nos olhos e ouvia o "Boa tarde!" de seus
lábios grossos) que carimbasse a sua tão cheia carteira de leitor.
Depois ia embora, me deixando sozinha.
A rotina era essa. Mas houve um dia em que ele não cumpriu esse ritual.
Nesse dia, eu cheguei no mesmo horário e me sentei na cadeira de sempre,
em frente à dele. Coloquei meus óculos de grau para fingir que
lia enquanto o admirava por trás de sua intelectualidade. Pensava no
que haveria por dentro daquela fachada de mistério e metodismo do meu
filósofo. 'Como seria sua vida?', eu me perguntava. 'Com quem ele conversava
esses assuntos?', afinal, os jovens de hoje são tão vazios, ao
contrário dele, do meu filósofo, tão jovem, bonito e inteligente.
Imaginava olhar por dentro dele até descobrir o que ele gostava em uma
mulher. Com certeza, gostaria de mim (e não da atendente que invejo);
afinal sou uma mulher bonita, de meia idade, bem mais velha que ele, é
certo, mas bonita e, por essa beleza, o final dele deveria ser comigo - ao menos
na minha opinião. Aliás, eu pensava, 'Qual costuma ser o destino
dos filósofos?'.
Alheia nesses pensamentos, não percebi que o tempo já tinha passado.
Era meio-dia e meia, e nada do meu pretendido aparecer. De nervosa, já
estava tamborilando os dedos (é o que faço quando fico nesse estado).
Barulho demais para uma biblioteca e, por isso, eu já ouvia "psius"
pelo ar. Era melhor eu ir embora...
Da porta da biblioteca, notei um certo burburinho dali a dois ou três
quarteirões. Cheia de curiosidade e a fim de esquecer o "bolo"
que acabara de levar, fui até lá. No caminho, xingava o meu pretendido
em pensamento. "Quem ele pensa que é para me dar um fora assim?"
(sem lembrar que o coitado mal sabia da minha existência). Eu tinha de
esquecer o "fora" e me distrair.
Cheguei lá. Era um prédio muito alto com uma multidão de
curiosos, como eu, em volta de uma daquelas faixas amarelas de "Mantenha
a distância!". Havia também bombeiros e um carro de ambulância
por perto. Fui me infiltrando, morta de curiosidade, até onde eu podia
ver os enfermeiros da ambulância. Não podia ver o que faziam, mas
senti uma pontada no peito.
Alguns senhores que estavam ao meu lado naquela multidão, animados por
espalhar tragédia, falavam em morte e suicídio, apontando para
o cadáver de um homem em volta do qual estavam aqueles enfermeiros. Esse
homem, segundo os velhinhos que me contavam a tragédia, parecia gostar
de filosofia - ele teria gritado o nome de alguns filósofos famosos antes
de se jogar do alto do prédio. Homem, corpo, filosofia; foi então
que eu chorei.
(Setembro - 2004)