A Garganta da Serpente
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O Citadino e o Suburbano

(Gilberto Felinto)

Primo Severino é homem da roça. Veio de longe com sua pré-história. Resíduos de um sapé com trilhas estreitas partindo galhos sequiosos de velhas juremas e crianças papudas assistiram o seu nascimento.

O medo do desconhecido, as lembranças do rio Banabuiú em tempos de enchente, os mistérios da selva de pedra, vinham como flashes em sua mente. Estradas, divisas, folhagens. Tudo flertava seus olhos - admirados da janela do ônibus -, com o mundo em permanente movimento. Correr léguas naquelas terras longínquas, ouvindo histórias de mundos distantes e suas inexistências.

Havia enviado uma carta a seu primo Wesley Ramon, adolescente letrado, com muitos dotes, entre os quais, o de armar ciladas para os outros.


"Santa Crus do Siridó, deiz de maiu deçe mesmo ano.

Antes de lhe manda Eça carta, acaitituei mutcho aqui cus meus miolo. Será que inscrevo, será qui num inscrevo? No frigir dos ovos da pata, primo, eu num pudi me conte. Inscrevo cum ecas umilde palavras, pru mode cidizê qui preciso cunhecer Eça cidadi. Um caipira nunca devi de renega seu lugá, mais no frigi dos ovos da merma pata maninha, num guento mais fica imaginando esse mundão de preda qui vocês vivi.

Inscrevi duas carta pro modi aqui chega primeiro lhi avisa qui chego no dumingo de ramu, as dispois de meio dia, no ispreço da boas esperança.

Mi dissero, qui vois micê é chei de num mi toqui, todo fesquin, mais nun creditei innada disso.

Um abraço du primo du campo, Sivirino."



O terminal estava lotado, passou entrecortando a multidão atônita, cada qual a seu modo tentando se localizar. Não foi difícil encontrar Severino. Era como se colocar uma abelha numa população de moscas, vinha esbarrando em tudo, com ferroadas do cabo da peixeira quase à mostra,abalroando todos e já no último degrau tropeça e cai estatelado à sua frente.

Tinha o modo de falar dos roceiros. A vomitar palavras num ritmo estonteante. Duas ou três ao mesmo tempo, como se tivesse a língua bífida das jararacas do sapezal.



Havia colocado um terno velho azul marinho com gravata de bolinhas, e uma flor no bolso. Calças mais curtas que suas dimensões mostravam meias lilazes e as canelas finas como galhos de juá. Nada assustador diante de tantos imigrantes espalhafatosos que costumeiramente transitavam nas ruas.

Seu jeito dócil de amatutar-se escondia a astúcia e malícias próprias de um sapezista.

- Que diacho sô! Cuma cresceu o menino Esly. Ta mais cumprido que dia de fomi.

E deu um abraço de estalar costelas, sacudindo como se sacode saca de arroz para socar a palha.

Primo Wesley não se conteve em olhar detalhadamente e já ardiloso, comenta:

- Primo vamos fazer uma transmutação no seu New Apear.

- Óia Primo, se mexe na minha bunda num mi resposabilizo. Já mi avizaru dum monti de travesti daqui de Sum Paulo.

- Calma primo. É só mudar um pouco a sua aparência.

Era um salão badaladíssimo. Veio um cabeleireiro rebolando mais que jibóia em tempo de cio, e os interpelou:

- Pois não! O que os gatinhos desejam.

Tentou correr mais foi impedido.

- Precisamos de uma mudança radical.

- Deixa comigo docinho. Vou fazer do olhar alheio uma lente de aumento para o seu ego.

- Ô Primu! Esse cara num mi viu mijando. Meu ego não é tão pequeno assim não.

Severino sai de lá um híbrido de Michael Jackson com Falcão.

Primo Wesley diz: "Falta o vestuário, vamos ao shopping".

E lá severino comenta:

- Pra tê que Assubi essa iscada rorante, haja ovo de galinha caipira, sô.

Na genialidade diabólica de sua infâmia cauculista primo Wesley, leva-o num festival de roqueiros, põe-lhe uma jaqueta jeans com adesivos emblemáticos de rock pauleira. Calças rasgadas com botões de prata nos lados, cinto com fivelas largas e colares de prata com medalhas grandes.

O andar ainda é o único trejeito que abalava a carapaça de Blad Hander. Nada que uma boa aula de soltar os ombros, coçar os ovos com agudeza de gozo, e falar manso como surfista em campeonato, não desse jeito.

- Ô primu, eu sei a mode comu é. É só imitar o Zé tem-tem quando abre as perna pra infrentá boi brabo.

- Cara de machu, corça o cuião com o anerlá insquerdo e dá uma cusparada de um quilo de baba de fumo pelos canto do beiço.

Em sua ardileza maquiavélica, primo Wesley o leva a uma dessas boates quentíssimas, tinha espelhos por todos os lados, strip-tease, um strober que faz com que todo mundo pareça em câmera lenta e muita fumaça.

E comentou:

- Pareci aquelis prédiu qui o bin ladi istorô lá nos istranja.

- É miozim.



Nessa hora começa uma briga no salão provocada pelo grupo dos motoqueiros "Lobos da estrada". Todo mundo apanha (até primo Wesley). Mas devido parecer um deles Severino é o único que é poupado.

- Os cara tão arrevortados, pensei até lhis dá um cascudão na tampa dos miolo.

Frustrado no seu intento, o citadino resolve trocar a roupa com Severino para não correr risco. Entra numa boate ainda mais agitada, a Over Night. Lá já entram com cascos de garrafa interpelando suas testas. A porrada come, é a turma que apanhou dos motoqueiros na outra festa, e haja peia em primo Wesley, confundido com motoqueiro. Severino novamente sai ileso.

- Parecia uns gringo strangeiro, maiz puto dento-das-carça.

Já no hospital com os ligamentos do joelho rompidos, quatro costelas quebradas e um traumatismo leve no crânio, o citadino recebe um bilhete do sapezista.

- Óia eu de novo.

- Primu Esly, num mi Levi a mar, mais discunfiu qui ocê quiria arma pra eu.

- To viajandu pro modi num lhi dá mais uns tapa na fuça.

- Recuperi e venha mi visitá, que aqui no lajero tem muita cobra braba qui gosta de sagui de menino fresquin assim como ocê.

- Di seu primu Sivirino.

  • Publicado em: 15/05/2017
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