A Garganta da Serpente
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Da arte de envelhecer

(Gildemar Pontes)

Agora trago oitenta anos. Hoje amanheci disposto. Vou caminhar um pouco, faz bem. Reverei as flores do jardim da dona Rosália. Formigas e outros animaizinhos verei caminhando como sempre, desde que surgiram as primeiras formigas, naquele dia nublado, em que o Deus delas disse: e dentro de cada buraquinho da terra surjam bichinhos iguais a mim ou parecidos, de oito pernas, mas podem vir de seis, num tem problema não, e que comecem a roer e a escavacar tudo por aí.

Atravessarei a esquina e tomarei fôlego, seguirei em frente. Vou mesmo, que oitenta anos pesam e ir é bom. Atento para esse fato e, de fato, estou-me a ir pelas ruas e pelas estradas que restam.

A casa do Aluísio é logo ali. Desembargador aposentado, velho barrigudo. Quando vem à nossa casa bebe toda a cerveja. Está com uma mania esquisita de cuspir dentro de um chapéu de soldado feito de papel que ele traz no bolso. Ainda quer ser rapaz, peguei-o comprando uma bermuda jeans, uns óculos escuros e uma camisa colorida, invejou de mim.

- Tu já vai começar com essas besteiras com ele de novo, a Dodora disse que vocês estão brigando todo dia. - Essa é a dona Encrenca.

Vou vingar-me e beber todo o seu vinho. E não vou deixar ele ir lá para casa hoje à noite. Ele pensa que não tem oitenta anos como eu. A gente nasceu no mesmo ano!

- Olá, velho barrigudo!

- Barrigudo é você, velho Aluísio.

- Não vou te dar vinho hoje, ontem você bebeu uma garrafa sozinho.

- E anteontem, que você bebeu minhas cinco latas de cerveja e ainda deixou um chapéu de soldadinho cheio de cuspe debaixo da mesa.

- Mentira.

- É, pois não vou mais te dar folha de papel.

- Eu levo de casa.

- Olha ali.

- Aonde?

- Ali, velho cego, aquela senhora carregando um cachorrinho.

- É um tapete, velho burro.

- Burro é você.

- Ah é, então você é cego também.

- Já tomou café hoje?

- O quê?

- Café?

- Sim.

- Sim o quê?

- Deixa de ser besta.

- E tu?

- É em São Paulo.

- Vamos entrar logo deixa de velhice.

- Só se você jogar fora o saco que tem dentro do bolso. Eu encontrei o saco de mijo que você deixou em cima do guarda-roupa.

- Eita, ele ainda nem encontrou o que eu deixei dentro da gaveta do birô.

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