Agora trago oitenta anos. Hoje amanheci disposto. Vou caminhar um pouco, faz
bem. Reverei as flores do jardim da dona Rosália. Formigas e outros animaizinhos
verei caminhando como sempre, desde que surgiram as primeiras formigas, naquele
dia nublado, em que o Deus delas disse: e dentro de cada buraquinho da terra
surjam bichinhos iguais a mim ou parecidos, de oito pernas, mas podem vir de
seis, num tem problema não, e que comecem a roer e a escavacar tudo por
aí.
Atravessarei a esquina e tomarei fôlego, seguirei em frente. Vou mesmo,
que oitenta anos pesam e ir é bom. Atento para esse fato e, de fato,
estou-me a ir pelas ruas e pelas estradas que restam.
A casa do Aluísio é logo ali. Desembargador aposentado, velho
barrigudo. Quando vem à nossa casa bebe toda a cerveja. Está com
uma mania esquisita de cuspir dentro de um chapéu de soldado feito de
papel que ele traz no bolso. Ainda quer ser rapaz, peguei-o comprando uma bermuda
jeans, uns óculos escuros e uma camisa colorida, invejou de mim.
- Tu já vai começar com essas besteiras com ele de novo, a Dodora
disse que vocês estão brigando todo dia. - Essa é a dona
Encrenca.
Vou vingar-me e beber todo o seu vinho. E não vou deixar ele ir lá
para casa hoje à noite. Ele pensa que não tem oitenta anos como
eu. A gente nasceu no mesmo ano!
- Olá, velho barrigudo!
- Barrigudo é você, velho Aluísio.
- Não vou te dar vinho hoje, ontem você bebeu uma garrafa sozinho.
- E anteontem, que você bebeu minhas cinco latas de cerveja e ainda deixou
um chapéu de soldadinho cheio de cuspe debaixo da mesa.
- Mentira.
- É, pois não vou mais te dar folha de papel.
- Eu levo de casa.
- Olha ali.
- Aonde?
- Ali, velho cego, aquela senhora carregando um cachorrinho.
- É um tapete, velho burro.
- Burro é você.
- Ah é, então você é cego também.
- Já tomou café hoje?
- O quê?
- Café?
- Sim.
- Sim o quê?
- Deixa de ser besta.
- E tu?
- É em São Paulo.
- Vamos entrar logo deixa de velhice.
- Só se você jogar fora o saco que tem dentro do bolso. Eu encontrei
o saco de mijo que você deixou em cima do guarda-roupa.
- Eita, ele ainda nem encontrou o que eu deixei dentro da gaveta do birô.