A Garganta da Serpente
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Pensamentos

(Gato Preto)

Muitas vezes me pego pensando. E meus pensamentos me alegram. Boas recordações de amigos engraçados; dos antigos desenhos animados; dos brinquedos que quebrei; das peladas na rua com os amigos; dos gibis; das poucas mas formidáveis viagens; dos amores que deram certo.

Então, me olho no espelho. Vejo meus cabelos brancos apontarem. O olhar perdido e sem perspectivas. Os dentes amarelos e pedindo manutenção urgente.

E me pego pensando novamente. E, desta vez, meus pensamentos me deprimem. A idade avançando e fazendo meus sonhos ficarem para trás; o bolso vazio à duas semanas do próximo salário; a interminável prestação do apartamento; o suspiro cansado da minha mulher; a cozinha, a sala, o banheiro, tudo improvisado há quase dez anos porque não sobra dinheiro; o emprego chato, monótono, sem opções; as merecidas férias que, desde que me casei, nunca consegui tirar; os sonhos de independência ficando cada dia mais inalcançáveis; os exames médicos de rotina que minha mulher precisa fazer e não tenho como pagar; o cigarro necrosando minhas entranhas; os currículos enviados que não deram retorno algum; a hora de ir para o maldito trabalho chegando.

Então, levo as mãos ao rosto. Sinto os olhos marejarem e o desespero começando a chutar a porta do meu autocontrole. O coração apertado e dolorido. As lágrimas escorrendo geladas entre os dedos. O cansaço e a desesperança me abraçando e me envolvendo. Um misto de raiva e autopiedade me queimando pouco a pouco.

E me pego pensando novamente. E, desta vez, meus pensamentos me enraivecem. Penso na faculdade que não cursei; nos amores que nunca declarei; no meu casamento apressado e inconsequente; na frustração dos planos inocentemente arquitetados; nos vários cursos sobre várias coisas que deixei de concluir; na bondade sádica de Deus, me puxando à tona somente o necessário para não me afogar; nas aulas de guitarra que suspendi na adolescência; na fragilidade e dependência de minha mulher; nos problemas alheios, muitas vezes piores que os meus; penso em parar de pensar. Para sempre.

Então, levo as mãos à cabeça. Puxo os cabelos tentando arrancar o turbilhão de imagens e sons que rodopiam no meu cérebro. E chicoteiam minha alma. Passo soluçando e cambaleando em frente ao quarto, onde minha mulher ainda dorme. Abro a janela da sala e olho o horizonte. Num gesto idiota e piegas, ergo o braço tentando alcança-lo. Inútil. E desabo em lágrimas. Ponho a cabeça para fora da janela e sinto o vento em meu rosto. Vejo um pássaro voando. Olho para baixo. Treze andares para baixo. Crianças brincam no gira-gira do playground, girando sem parar. Me apóio nas laterais da janela. Fecho os olhos e respiro. Respiro fundo e... paro. Paro para pensar.

E me pego pensando novamente. E, desta vez, meus pensamentos me traem. Penso como sou covarde. Covarde por ter desistido de muitos sonhos quando não tinha nada a perder; por não ter esmurrado o cara mais valentão do colégio; por não terminar um casamento fracassado, com medo de ver minha mulher desolada e desprotegida; por não ter me declarado à muitos amores, por pura timidez; por me esquecer dos meus amigos antigos como a desculpa de não ter tempo pra nada; por não tirar meu violão da poeira e tentar recomeçar um sonho de adolescente; por tentar encobrir meus erros e minha pouca força de vontade com os problemas que surgem à minha volta; por querer que Deus resolva todos os meus problemas.

Então, caio de joelhos. Peço perdão pela minha covardia, pela minha fraqueza, pela minha intolerância, pela minha ganância, pela minha inveja, pela minha incompreensão, pela minha pouca fé. Choro novamente. Desta vez, de vergonha. Sinto um pouco de conforto. Os terríveis pensamentos param de girar e ficam desfocados, como se fossem nuvens em meu cérebro que não se desmancharam, mas estão lentas e mais brancas. Enxugo as lágrimas, lavo o rosto e não me atrevo a me olhar no espelho novamente. Entro no quarto, beijo minha sonolenta mulher e saio correndo para o trabalho, pois estou atrasado.

E não penso em nada importante. Apenas penso em como o ser humano é afortunado em poder pensar.

...será?...

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