A Garganta da Serpente
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O Rei Do Xadrez

(Gato Preto)

A praça foi ficando vazia. As pequenas mesas e bancos onde os moradores mais velhos se reuniam para jogar dominó, xadrez e truco, estavam se esvaziando e, logo, não haveria mais ninguém.

Um velho ainda continuava numa das mesas, fitando as peças no tabuleiro. A última partida tinha sido muito boa. Ele vencera novamente e agora admirava a disposição das peças no momento do xeque-mate. Ele encheu de fumo seu cachimbo, mas não o acendeu.

O velho enxadrista preparava-se para guardar as peças na surrada caixa de madeira, quando o jovem chegou e parou em frente a mesa. O velho sobe o olhar e encara o jovem forasteiro.

O rapaz estava bem vestido, enfiado num terno de fibras artificiais. Cabelos negros bem curtos com um pequeno e ridículo topete. Olhos pequenos e aguçados. Sobre a camisa branca, uma gravata de nó falso. Um brinco discreto na orelha esquerda. Sem dizer uma palavra, ele senta-se defronte ao velho.

O ancião também o encara. Seu rosto, vivido, enrugado. Seus olhos, no entanto, eram claros, brilhantes, vivos. Seus longos cabelos brancos balançam à frente de seu rosto, bailando ao som da brisa que antecede às chuvas de verão.

Eles começam a montar o palco da batalha. O jovem termina rapidamente de dispor suas negras peças, enquanto espera com certa impaciência o seu adversário. O velho é cuidadoso e lento. Talvez de propósito, analisando a reação de seu oponente. Finalmente o ancião termina de desenhar seu pequeno e alvo exército. Dois batalhões frente a frente. Reis, rainhas e suas cortes a postos, protegidos por uma fileira de peões limitados, mas corajosos e fiéis. O velho olha nos olhos do rapaz, que o encara também. Ele não consegue enxergar emoção alguma naqueles olhos.

O velho enxadrista faz um gesto, cedendo o início da partida ao rapaz. No xadrez, as peças brancas sempre iniciam o jogo, mas - desta vez - ele deixou a formalidade de lado, como forma de respeitar a juventude impaciente do seu adversário.

O jovem olha o tabuleiro, respira rapidamente e coloca o peão do rei em movimento, duas casas à frente, libertando o bispo do rei e a rainha. O velho faz o mesmo movimento. Dois peões frente a frente. Olhos nos olhos. Armas em punho. Apesar de muito próximos, eles não podem guerrear. Peões somente atacam quem estiver na diagonal logo à frente. Eles sabem que suas posições naquele momento são meramente estratégicas. E estavam certos. Rapidamente, o rapaz desloca o bispo do rei.

O velho enxadrista se decepciona e, de certa forma, se sente ofendido ao ver o bispo do rapaz apontando para o peão diagonal do seu rei e prevendo a intenção do afoito jovem. O "Mate do Pastor" é coisa de amador. Trata-se de uma linda jogada - apesar de tudo - onde se dá xeque-mate depois de apenas quatro lances; dois por jogador. Somente quem está iniciando, ou está muito distraído, cai nessa velha armadilha. Por isso, o ancião se sentiu ofendido. Tudo indicava que seu oponente não passava de um arrogante novato e que pensa que o Mate do Pastor é o modo mais rápido de se ganhar uma partida. Talvez ele sequer conheça o "Mate do Leão", ou "Mate do Louco", onde se põe o oponente em xeque-mate em apenas dois lances. Ele olhou seriamente para o rapaz, acendeu seu cachimbo e pegou o cavalo do rei.

O cavalo é uma arma importante que nem todos sabem usar. Dissimulado, ele se movimenta num pequeno "L", entrando em espaços vazios e surpreendendo os mais distraídos. O velho usa então seu cavalo do rei para defender o peão ameaçado e desfaz o "Mate do Pastor" a tempo.

O rapaz mira o tabuleiro e dá um sorriso cínico para o experiente enxadrista. Sua arrogância não intimidou o velhote que, pelo visto, ia dar mais trabalho do que ele imaginou. Endireita-se no banco, estuda brevemente o jogo e decide recuar seu bispo. Enfim, o jogo começa de fato.

O ancião mudava muito pouco a formação de seu exército, mantendo uma firme, porém irregular fileira de peões que avançavam vagarosamente. Os bispos de ambos iam e vinham, desenhando vários "X" no tabuleiro, levando um ou outro peão inimigo. O jovem, mais impetuoso, insistia em tentar encurralar o rei branco com seus corcéis negros. Um deles sucumbiu ante a poderosa torre alva.

Apesar das diferentes personalidades e dos diferentes estilos dos oponentes, o jogo se mantinha equilibrado. Enquanto os minutos passavam, guerreiros eram tombados. Planos eram desfeitos. O velho evitava olhar para o rapaz, preferindo se debruçar no jogo enquanto batia suavemente o seu cachimbo em sua própria cabeça. O jovem forasteiro afrouxou a gravata e silenciosamente ficava contando algo com a ponta dos dedos. O velho tinha peças mais importantes, mas acabou perdendo dois cavalos e um bispo. O rapaz tinha mais peças, todas mais vulneráveis e limitadas. Ele ainda tinha um cavalo, dois bispos, uma torre e um bom número de peões. Sua preciosa rainha tombara num momento de distração.

O intervalo entre cada jogada aumentava à medida que o jogo ficava mais decisivo. Os reis de ambos os lados agora estavam aparentemente desamparados. Aparentemente. Seus escudeiros sempre voltavam para defendê-los caso fosse necessário.

O ancião esfregava o rosto com frequência, mostrando um visível sinal de cansaço mental. O rapaz não conseguia se manter sentado numa mesma posição. Enquanto isso, as nuvens pesadas e o vento tomavam conta do lugar.

Quase duas horas de disputa se completam quando o ancião vislumbra um potencial xeque-mate em três lances. Contudo, teria que deixar seu rei vulnerável e também sob a ameaça de um mate. Sua lânguida e poderosa rainha teria que ameaçar o rei inimigo e forçar a torre negra a recuar. Então a sua torre e seu bispo terminariam o trabalho. Isso se o jovem não perceber a brecha e aproveitar-se dela.

O idoso e experiente jogador sabe que o xadrez não é um jogo somente estratégico e lógico. É também psicológico. A arte está em confundir o adversário, distraí-lo ou ainda forçá-lo ao erro. E o velho agora tinha essa chance. Ele evitou olhar para o tenso jovem à sua frente, tentando parecer o mais natural possível. Seria este o momento de arriscar tudo numa jogada ao mesmo tempo triunfal e suicida? O ancião sentiu que não aguentaria a pressão do rapaz por muito tempo. Logo o quase-garoto iria começar uma sucessão de xeques que fatalmente iriam desconcentrá-lo a ponto de fazê-lo errar.

Então, com uma naturalidade forçada, o velho enxadrista pôs seu plano em prática. Quando o rapaz viu a rainha branca colocar seu rei em xeque, ficou paralisado por um momento. Franziu a testa e deitou a cabeça um pouco para a esquerda. Encarou o seu oponente com um ar de desconfiança. O velho desviou o olhar rapidamente, voltando-se para o tabuleiro. O jovem respirou profundamente. Dois longos minutos se passaram até que ele, enfim, moveu sua torre de ébano, protegendo seu rei. O velho queria muito fazer a jogada seguinte rapidamente, tamanha a ansiedade. Seu velho coração batia forte dentro do peito. Mas conteve-se e continuou o antigo teatro da guerra. Fez que pensou e deu seu próximo movimento, comendo um peão negro.

O céu começou a retumbar, como um grande estômago vazio. O jovem olhou o jogo. Desviou o olhar por um instante, tentando ouvir um trovão. Voltou a fitar a pequena arena de madeira. Então suas sobrancelhas arquearam, com um ar de surpresa. O coração do velho parou por um segundo. O moleque teria descoberto seu plano? Se descobriu, teria visto a sua chance de encerrar a partida? Agora não havia como voltar atrás. Apenas esperar. Talvez, pelo pior.

De repente, algo acontece. Num pulo, o rapaz coloca as mãos nos bolsos do paletó e tira de um deles um celular vibrante. Dá uma olhada no visor, aperta alguns botões e volta a colocar o aparelho no bolso. Olha para o seu adversário, que agora também o encara. Desce os olhos para o tabuleiro e faz um último movimento. Ele tomba seu próprio rei.

O jovem afastou o surrado banco de madeira e, sem olhar para o velho, levantou-se, virou-se e se foi. O terno esvoaçando no forte vento que anuncia uma tempestade iminente. O ancião, com os olhos marejados, viu o jovem sumindo no horizonte cinza, quase negro. Ele olhou novamente para o tabuleiro. Viu o rei de ébano caído antes do fim da partida. Muitas dúvidas giraram em sua cabeça, tal qual o redemoinho de folhas secas ao pé da velha ameixeira. O rapaz podia ter vencido, mas não o fez. O velho também podia ter vencido, mas a vitória lhe foi ceifada antes de poder ser colhida. Contudo vencera afinal, pois o rei inimigo estava ao chão. Mas, por mais que tivesse sido uma vitória de fato, ela tinha um gosto amargo na boca do velho enxadrista. Ou pior; tinha um gosto de derrota. Sob sua esvoaçante cabeleira branca, uma verdade se fez nítida. O jovem perdeu simplesmente porque não quis ganhar. Talvez por respeito ao velho oponente. Talvez por pura diversão e humilhação ao seu adversário.

Os relâmpagos se fizeram cada vez mais luminosos e os trovões cada vez mais retumbantes. O velho se sentiu cansado. Suas rugas ficaram mais profundas que nunca. Sua respiração ficou difícil. Seus olhos vivos e brilhantes ficaram opacos e vazios. Uma única lágrima escorreu pelo seu rosto pálido. Ele perdera. Agora tinha consciência disso. Ganhara de um rapaz que, embora tivesse perdido de propósito, ainda teria muitas partidas a disputar. Ao contrário dele. Um velho rei que jogou a última partida de sua vida. E pela última vez, ganhou.

O ancião levanta-se com dificuldade. Nem as peças, nem o tabuleiro importam mais. Não haverá mais outra batalha para ele. Tudo o que deseja agora é dormir e sonhar com suas vitórias. Mas, antes, ele se vira novamente para o tabuleiro. Olha para seu rei de marfim. O velho homem deita a pequena peça uma última vez.

O rei está morto. Viva o rei.

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