A Garganta da Serpente
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A casa morta

(Glauber Ramos)

- Acorda, Inácio. Já está na hora!

- Mas já?

- Sim... precisamos arrumar o restante das coisas!

O caminhão da mudança chegaria às sete. A maior parte dos objetos já havia sido levados no dia anterior. Restavam somente alguns vasos de planta, a cama das crianças e a mesa do café. Hermínia observava atenta o transporte dos móveis. Quando a última cadeira foi colocada no caminhão, trancou a porta da frente e dirigiu-se para o carro.

- Vamos, crianças. O papai está nos esperando!

Inácio ainda deu uma última olhada, como quem dissesse adeus a um amigo que sabia nunca mais ver. Bruna entretinha-se com sua boneca nova, sem dar muita importância para a ocasião. No momento em que Hermínia deu a partida, o garoto pulou do carro, correndo e agarrando-se ao portão da casa.

- Daqui eu não saio!

- Vamos filho... você sabia que isso ia acontecer!

- Não vou, já disse!

- Muito bem! Vou telefonar para o seu pai! Você já é um rapaz, pare de agir feito criança!

De certo modo, aquelas palavras feriram o orgulho de Inácio. Bem sabia que dez anos era uma idade de cumprir certas responsabilidades e obrigações, embora se visse no meio do embate entre duas personalidades: a do garoto que ainda no ano passado brincava seminu no meio da rua e a do novo jovem que ali nascia, ordeiro cumpridor das suas tarefas. Como doía ter de crescer! - pensava.

O pai de Inácio conseguiu uma boa quantia pela casa, o suficiente para comprar outra deveras mais espaçosa e bonita. Na sua entrada, um jardim bem cuidado, e nos fundos, um amplo quintal cimentado. O jovem não suportou aquela visão e rompeu em lágrimas.

Saudade mesmo sentia do formoso pé de manga cravo, cujos frutos carnudos saciavam a fome de qualquer cristão. E o que dizer dos dois cajueiros da Bahia? Cajus enormes. Engraçado era que cada um dos pés dava um tipo diferente da fruta. De um nascia cajus redondos e gorduchos - esse era o preferido da meninada - que pelo formato mais pareciam um tomate. Do outro pendiam frutos alongados, muito doces, e esse era o melhor para o suco. Inácio agora tinha que se conformar com o novo quintal, cinza pardacento e escaldante depois do meio dia. A tristeza doía aguda, como uma espada de samurai atravessando os internos.

Mas por que tamanha crueldade, vender a casa, por quê? A gente vivia bem ali, era bom... - essa e tantas outras perguntas surgiam sem resposta na sua conturbada cabecinha. Só então descobriu que aquela região havia valorizado muito e que ofereceram um excelente valor pela casa. Pelo menos havia o consolo de passar diante dela todos os dias, no regresso da escola, pois era caminho obrigatório.

E foi assim durante uma semana: Inácio passava rapidamente de carro, tendo a sensação de que sua mãe acelerava mais que o de costume só para passar logo. Mesmo assim, não deixava de contemplar aquela estranha solidão. A casa parecia chamá-lo como um doente que desesperadamente agoniza pedindo ajuda. Era como se cada cômodo, cada pedaço de sombra da mangueira e dos cajueiros se transformassem num forte campo magnético a atrair-lhe o corpo franzino. Em vão. A casa continuava lá, imersa em lamúrias e tristezas. Mas de certa forma em seu interior ainda residia boa parte da alma de Inácio.

O tempo corria. Ao passar pela rua, já não olhava mais com tanto interesse, bastando um relance de soslaio. Agora era Hermínia quem parecia procurar alguma coisa no interior da casa, talvez alguma lembrança perdida dos filhos brincando no quintal, ou quem sabe, um furtivo momento de carícias ao lado do marido.

Certo dia, reparou Inácio em certas máquinas que se encontravam diante da casa.

- Para que servem essas máquinas, mãe?

- Não sei filho... olha, hoje você tem que estudar para a prova de matemática. Nada de rua! - dizia Hermínia num tom mais ríspido, embora sua intenção era distrair os pensamentos do filho. Que dia difícil se desenhava amanhã... mas tornara-se inevitável fugir.

Inácio obedeceu às ordens da mãe, embora fosse impossível esquecer a visão medonha do maquinário. Não queria pensar no pior, não quis dormir com medo dos sonhos (ou pesadelos) que o deus grego Hipnos, o deus do sono, lhe reservava.

Embora tenha dormido sem maiores problemas, o espírito amanheceu fustigado. Na volta do colégio, a mãe bem que tentou:

- E a prova, como foi?

- Bem, como sempre...

O carro dobrou a esquina e o coração do garoto começou a palpitar. De longe, viu os galhos que despendiam do alto da mangueira. Ao se aproximar, não podia acreditar na voracidade com que a escavadeira trabalhava.

- Pára o carro, mãe! - gritou desesperadamente.

Quis tomar alguma providência, se colocar diante da escavadeira. Mas perdeu qualquer controle sobre seus músculos. O máximo que conseguiu foi ficar de cabeça erguida, enquanto sentado na calçada oposta assistia àquele espetáculo de horror. Do fundo do quintal, um homem sustentado por uma corda e segurando uma moto-serra fazia cair os galhos mais altos da mangueira. Um a um, foram sendo podados, até restar somente o tronco pelado, que logo viria ao chão. Depois, os cajueiros. Inertes, porém dignos, sucumbiram à fúria da moto-serra.

A escavadeira, essa sim, era a pior de todas. Sua enorme pá caía sobre o telhado, fazendo-o prostrar-se sem qualquer espécie de compaixão. Logo invadiria a sala, a cozinha, os quartos. De repente, Inácio parou de chorar. A escavadeira, que agora tratava de derrubar as últimas paredes, fazia subir uma espessa nuvem de resíduos que avançava por toda a rua.

- Saia daí, Inácio! Você vai se sujar todo!

Mas ele não escutou, não quis escutar ou não estivesse ali. Viu desgrudar de si a sua sombra, espécie de éter negro animado, a qual se dirigiu em direção aos escombros. Deitou-se tranquilamente, sendo posteriormente sepultada sob a cortina de poeira que se precipitava como um véu de luto.

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