A Garganta da Serpente
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Em terreno baldio

(Geraldo Ramiere)

Era realmente belíssima, não havendo um único homem que resistira a seus encantos. Gostava de se ver, pois seu maior gozo era procurar defeitos e não encontrar sequer uma pequena irregularidade. Já foi cobiçada por jovens, velhos, solteiros, casados, viúvos, médicos, advogados, políticos, comunistas, milionários, poetas, músicos..., recebeu convites até de mulheres. Teve vários amantes, amara tantos que acabou não amando ninguém. Possuía um corpo análogo a uma escultura de Bernini, uma pele de cor neve, longos cabelos avermelhados, como seus grossos lábios, e um rosto de simetria perfeita, onde olhos marinhos, como céu em dia claro, complementavam sua angelicalidade. Diziam que nenhum ser humano conseguiria não se apaixonar quando destilava um sorriso. Também era sabido que muitos suicidaram quando recusara casamento, o que nunca aceitou, ou quando terminava um caso. Raramente ficava com apenas um, jamais se prolongando muito com algum amante. Seu deleite estava em ser cortejada, desejada, disputada, ovacionada, tudo o que pudesse saciar não somente sua vaidade de bela, mas também de artista. Seu grupo teatral viajava por quase todas cidades do país, e em cada uma delas teve uma aventura amorosa; quando partia, sendo que a companhia não ficava muito tempo em um mesmo lugar, deixava para trás um rasto de homens caídos, relacionamentos arruinados e corações despedaçados, indo novamente em busca de novos riscos, homenagens e amores, sem freios ou limites, dividindo sua airada vida entre prazeres e dias. Em tempo algum se incomodou com críticas alheias, pois sempre as considerou como mera inveja de alguma traída ou desdenho de um dos seus menosprezados, e continuava em seu caminho áureo, sempre com seu jeito felino de ser. Nesta hora reparava em si, a branda maquiagem harmonizando perfeitamente com as sobrancelhas feitas e o batom carmim, com um vestido azul-escuro, pequenos brincos prateados e seu colar de pérolas, tão deslumbrante que quase se espantou com sua própria beleza. Mas acima de tudo, era jovem, jovem, jovem!... "Aaaahhhh!!!!!".

Os três funcionários do asilo corriam na direção da qual escutaram o medonho agudo grito. Quando chegaram viram apenas a septuagenária senhora assentada sobre o colchão, com o olhar perdido no espaço, segurando uma antiquíssima foto sua, em preto e branco. A lacrimação nos olhos denunciava-lhe a dor. "- Dona Dafne, tudo bem?", perguntou-lhe carinhosamente a gorda negra enfermeira, acompanhada por uma outra, magra e ruiva, e por um jovem auxiliar. "- Dizem que foi uma famosa atriz dos anos cinquenta...", cochichava a outra no ouvido do rapaz, "... também diziam que era muito bonita e que fica assim porque se lembra dos seus longínquos dias de glória". A outra ainda tentava reanimá-la, amiúde encontravam-na daquele jeito, estupefata e espavorida, mas nenhum dos seus apelos traziam-na de volta a si. Então o auxiliar aproximou-se, talvez movido por algum sentimento de compaixão, até sentar ao seu lado. "- Minha senhora...", liricamente falava o caridoso moço, "... não fique assim, não devemos nos agarrar com coisas do passado, especialmente a aspectos físicos...", por fim acrescentou, "...o importante é o que está dentro de nós!". Num movimento brusco, como desperta por alguma serena ira, a idosa disparou a cortante pergunta: "- Você faria amor comigo?".

O jovem estava pálido, pasmo, assombrado, surpreendido, mudo, de olhar fixo naquela decrépita mulher, ponderando-a melhor, com aquela massa corpórea desfigurada e cadavérica, revestida por uma membrana flácida e enrugada, com brancos fios de cabelos ralos por causa da calvez, a boca murcha e desdentada, e com aquela grande afta encravada no pescoço, como uma estrela, talvez a sua última. A enfermeira negra saíra, depois de não ter contido seu riso sardônico, imediatamente seguida pela outra, encabulada. Ele estava só, perdido perante aquela prova da decadência e senilidade, diante daqueles credores olhos, quase apagados pela amaurose.

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