A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Seu dorso nu

(Geraldo Ramiere)

Antes que pudesse ser retido por alguma súbita hesitação, enxugou os óculos molhados pela chuva, e após o instintivo gesto de destrancar a porta, pôde sentir o brusco tépido ar do apartamento bater-lhe na fronte. Vagarosamente tirou a jaqueta ensopada, tendo cuidado para não produzir qualquer barulho. Sentou-se no sofá. O vão ato dos olhos em vasculhar a limitada extensão dos cômodos escuros em busca de algum movimento apenas aumentou-lhe o desencanto. Como dissimular a angústia tendo consciência da imprevisibilidade de qualquer acontecimento posterior? O quase automático movimento das mãos à boca escolheu o fumo como opção momentânea mais prudente. Não conseguiu deixar de fitar novamente a atadura que envolvia sua mão talhada. Uma velha música rasgava a taciturnidade da noite, até chegar aos seus ouvidos, redesencadeando uma melancolia outrora coloidal. Com o circungirar da cabeça pode perceber que a porta do seu quarto mantinha-se fechada. O filtro umedecia-se nos lábios salivantes. "Será que ela está dormindo?". Sua atenção foi atraída pela súbita luminosidade do cigarro acesso, fazendo-lo desistir de qualquer outro questionamento especulativo. Por entre a tênue cortina de fumaça tentava se esconder da escuridão implacável. O que seria mais sensato: desafiar a tranquilidade aparente unhando a ferida ainda não cicatrizada ou deixar o cenário do crime antes que fosse engolido pela mágoa transbordante? Uma repentina luz lunar lustrou a aliança na mão trêmula. "Por que persistir?". O ato de abaixar a cabeça em nova reflexão levou seu olhar à fotografia deles no porta-retrato despedaçado sobre o chão. O amargor da garganta seca inibiu a continuidade dos pensamentos. "- Dane-se!". Lançando o toco queimado pela janela, levantou-se num ímpeto, rumo ao dormitório. "- Abra a porta!", disse ao término de três batidas sucessivas. Nenhuma resposta. "- Abra!". Esmurrou o umbral após o berro. Desistindo de qualquer outra insistência, arrombou a porta, após sentir o forte impacto da madeira contra seu ombro. Recuperando o raciocínio, conseguiu mirar o corpo feminino sobre os lençóis amarrotados. "- Precisamos conversar". O único ruído ouvível era da sua respiração espaçada. "- Precisamos conversar!", repetiu, elevando a voz. Ela continuava muda. Aproximou-se lentamente. Percebeu que ela estava descoberta da cintura para cima. "- Acorda!", falava em tom grave. Apenas uma peça íntima impedia a nudez total. "- Acorda! Precisamos conversar!", insistia. Seu rosto conservava-se imerso na almofada. "- Acorda!", gritava. Mantinha-se inerte. Movido pelo impulso de ira, projetou-se para virá-la, mas interrompeu o movimento ao sentir a gelidez do seu corpo, erguendo-se subitamente. Não soube muito bem o que pensar, até que sua atenção pousou no frasco de remédios esvaziado sobre a mesa. Suspirava, sem conseguir concatenar nenhum sentimento concreto. Permaneceu em pé por mais alguns segundos. Observava-a, ainda de longe, tentando entender o óbvio. Finalmente reaproximou-se, sentando-se no colchão. Contemplava suas costas desnudas. Depois de um instante, arriscou um toque. Tentava se acostumar com a inexistência de calor. Notando que a pele permanecera macia, continuava o lento tatear de dedos sobre a delimitada dimensão despida. Já controlado o receio anterior, beijou-a, bem devagar. Repetia o gesto várias vezes, seguindo a linha traçada pela espinha. Chegou próximo ao pescoço. Embriagava-se no perfume dos seus cabelos. Olhou o cadáver novamente, e após um suspiro, manteve a face sobre a carne nua. Não quis encarar seu rosto. Tinha medo dos seus olhos. Permaneceu assim por quase uma hora. E mesmo com todo esforço, não conseguia chorar.

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br