A Garganta da Serpente
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No 1º de abril, a natureza pregou sua peça

(Henrique)

Era uma terça-feira, dia 1º de abril 2003, o casal dentro do carro, conversando, ao procurar um isqueiro o namorado nota, na bolsa de sua tão querida namorada, um objeto, a princípio muito simples, mas que seria o pontapé inicial dessa saga interminável.

Digo interminável psicologicamente, porém, para manter a fidelidade ao tempo decorrido, registro que tal fato durou somente 5 dias, cinco enormes dias, dos quais serão relatados aqui apenas quatro. Retornemos, então, ao objeto encontrado na bolsa pelo namorado. Não era foto de homem, não era bilhetinho rabiscado com número de telefone suspeito e nomes identificadores como "A", "B" ou quaisquer outras letras do alfabeto utilizadas para evitar perguntas indiscretas e suposições indesejáveis, não era nada disso, o objeto era um mero, um simples, um cotidiano e mais do que comum absorvente. É, tudo começou com um simples absorvente.

Ao notar que aquele objeto tão solitário jazia na bolsa de sua namorada, local onde não encontra utilidade alguma para si mesmo e calculando, meio por alto, que já era tempo de a natureza manifestar-se, num atestado rouge, sobre a inexistência de formação de uma nova vida, ele indagou, timidamente, primeiro a si mesmo e somente depois, à sua namorada o que significava a presença daquele objeto ali, dentro da bolsa dela. Seria um reserva? Pensou, mesmo sabendo ser esse um pensamento ignorante, mas não deixou de pensa-lo em nome da esperança. Os homens não entendem tanto quanto gostariam sobre certos fenômenos que foram reservados à parcela privilegiada e feminina da humanidade.

Ao chegar da resposta, notando a expressão de ansiedade e preocupação no rosto dela, o namorado tornou-se também um pouco preocupado, porém antes disso, foi preciso perguntá-la mais duas ou três vezes se aquilo era verdade, por coincidência era 1º de abril, o dia da mentira, o dia perfeito para ouvir esse tipo de verdade em que não se acredita nem em dias normais. Era também era um aniversário de namoro. Não era bem aniversário pois não faziam anos, mas é bem sabido que antes do primeiro ano, comemoram-se os meses, talvez porque, na velocidade em que tudo começa e se acaba hoje em dia, tem-se medo de esperar o 1º ano e acabar se rendendo pelo meio do caminho e no fim não se ter comemorado nada.

Confirmações proferidas, ele tenta se adaptar àquela nova dimensão, àquela inacreditável chance de que, mais uma vez na história, a natureza tenha superado o homem e toda sua tecnologia, motivo de tanto orgulho. É fato que a natureza pode ser estudada e, em partes, explicada, porém nunca duvide da sua capacidade natural de cumprir os fins para os quais Deus a criou. E foi assim, nem ele e nem ela duvidaram totalmente daquela possibilidade que se apresentava.

Cada um, dentro de suas possibilidades e características pessoais, começou, desde então, a traçar hipóteses, a simular situações, a tentar se convencer do contrário, mas a inquietação e a ansiedade eram inevitáveis. Ambos perderam algumas horas de sono nessa primeira noite tentando digerir a nova situação apresentada a eles, situação que nem sequer bateu à porta ou pediu licença para entrar, como se fosse, essa situação, aquela pessoa "mais importante" para quem as portas estão sempre abertas e para a qual dispensam-se apresentações pois a sua figura fala por si mesma. Assim foi o dia 1 da saga.

Nasceu um novo dia e com ele parece que tudo anda nascendo, é bicho nascendo, é gente nascendo, é propaganda de bebê, ver criança de colo na rua tornou-se um martírio, a criança poderia até ser bonitinha que a ansiedade não estava nem aí. Ainda que se tratasse de uma mera possibilidade, a capacidade humana de fantasiar e de autofragilização não faz feio em horas como essa.

Cai a noite do dia 2, o casal, diga-se de passagem que eram e ainda são universitários, se encontra na Universidade. Depois de terem trabalhado o que manda a sina de cada um, encontram-se novamente naquele ponto comum, comum como um absorvente, mas que já não era tão comum assim visto de dentro da bolha daquela nova situação. Decidiram que a aula não seria o melhor programa, ficar ouvindo professor como música de fundo para pensamentos insistentes e preocupantes, definitivamente, não era a melhor pedida. Resolveram conversar, conversar o quê? Conversar tudo, conversar qualquer coisa, tentar se entender, tentar se acalmar mutuamente. Aquela situação tão séria era muita novidade para um casal tão brincalhão e divertido.

Conversaram, não muito, mas o bastante e de certa forma se entenderam, por não ter muito o quê prometer, nem pela facilidade do problema que por sinal não era pequeno, e nem por ter muito em que se agarrar, para não serem levados por uma tempestade que ameaçava chegar, prometeram o que poderiam naquele momento, prometeram que não seria essa situação hipotética, em caso de confirmação, que os separaria tão rapidamente, prometeram implicitamente que dariam o melhor de si um ao outro para enfrentar seja lá o que fosse que se apresentasse. Não assistiram nenhuma aula completa nesse dia, o clima não estava para o exercício das atividades inerentes a todo estudante universitário quando não se está matando aula no barzinho da esquina.

Deu-se início ao dia 3, não esquecendo de mencionar que a noite do dia 2 também não foi a melhor "dormida" da vida deles, cada um na sua casa, com sua família, com seus problemas pessoais e uma dúvida em comum, será que é gravidez? Como poderia a natureza ter sido tão astuta num momento tão inesperado? Mas os dias iam passando, o tal manifesto da natureza não chegava por nada nesse mundo, menstruação pode até ser desagradável para a maioria das moças, na maioria das vezes, mas naquele momento o tal fenômeno estava sendo mais desejado do que nunca pela namorada de nosso texto, pelo menos é o que pensa esse autor que, diga-se de passagem, não tira a razão presente nesse desejo. Isso é papo muito sério para surgir assim, como um oásis no deserto às avessas.

O dia três não foi palco de muita conversa sobre esse assunto, até porque a necessidade do momento era de fatos e de ação, de saber do sim e do não e das atitudes que deveriam ser tomadas em caso de um ou de outro. Tomaram uma decisão, fariam um exame, tomariam uma atitude rápida, não poderiam mais ficar sustentando tantas hipóteses, marcaram o exame para o dia seguinte, uma sexta-feira, aliás, ótimo dia para se saber se será papai ou mamãe. Deixando de lado a ironia, pelo menos teriam um sábado e um domingo para pensar, conversar, tentar achar soluções, dar notícias ou, simplesmente e mais provável, chorar o leite derramado. Só de falar em leite os coitados se angustiavam.

A tensão aumentou relativamente. A namorada pensava no desgosto do pai e o namorado, por incrível que pareça, também. É certo que a família dele ficaria chocada, mas para a mulher é mais complicado, envolve muito mais sacrifício, é barriga grande, tem que parar de estudar e trabalhar durante um certo tempo, enfim, não é nem um pouco fácil.

Nem comentarei a noite do dia 3, não sei ao certo o que se deu nessa noite. Felizmente, ou não, chegou o dia marcado para o exame, era agora, naquele dia em especial que aquelas duas pessoas saberiam se estariam unidos somente por um sentimento muito especial, um amor, uma paixão, um gostar ou se estariam unidos também, não menos para sempre pois os sentimentos também marcam, para sempre unidos por um filho e as barra que enfrentariam tentando dar a esse filho a melhor vida possível, mesmo sendo eles relativamente jovens.

Haviam combinado que ela ligaria para ele e os dois se encontrariam para o tal exame. Ele, preocupado com ela e com ele ao mesmo tempo, não resistiu e ligou primeiro, interrompendo a prova de espanhol dela. Ele ainda pensou, meio triste, na possibilidade de que ela tivesse que parar com seu curso de espanhol, com sua faculdade, com sua vida normal devido a um fato a quem não se poderia atribuir culpa, haveria apenas que existir resignação e compreensão, uma sensação leve de culpa tomou conta dele, mas ele não a deixaria perturbá-lo por mais que cinco minutos.

Ela ligou, o encontro foi marcado, não era para tomar um choppinho, nem para ir ao show do Djavan, era para saber, definitivamente, o que estariam fazendo daqui para frente, se continuariam a vida normal de casal jovem, feliz e despreocupado ou se teriam que assumir novas responsabilidades, responsabilidades talvez muitas pesadas para um casal tão jovem, mas nada que não pudesse ser vivido. Encontraram-se, definiram o local do exame, juntos, foram desvendar essa dúvida, colheram sangue, dela é claro, o dele de nada serviria a não ser de objeto de desejo do sogrão que não ficaria nada contente com a notícia, caso ela fosse positiva.

Feito o exame é hora de aguardar o resultado, o tempo se arrasta até a hora marcada para a tão esperada morte daquela dúvida. Pura ironia, a resposta para uma dúvida tão concreta, pessoal, até mesmo física, seria virtual, são os dias de hoje, tudo é virtual, digo, felizmente, quase tudo. Aguardavam o resultado pela internet.

A natureza não vacila quando prega suas peças, naturalmente a resposta foi quase simultânea, uma competição acirrada entre natureza e tecnologia, a natureza venceu. Esse era o medo e essa foi a boa notícia que a tranquilizou, não seria agora que ela teria que exercer o papel de mãe e nem ele o de pai. Engraçado esse negócio de ser filho e ser pai ou mãe ao mesmo tempo, é meio que uma coisa dentro da outra (não pensem besteira que o assunto é sério), o melhor mesmo é esperar.

Como toda ironia, essa ironia da natureza acabou justamente como começou, em um absorvente. Ambos ficaram aliviados. Perderam um filho virtual e ganharam a antiga realidade de volta, a chance de continuar lutando por seus sonhos sem ter que sonhar por um novo ser, já é difícil sonhar para si mesmo, ganharam, ambos, a chance de se prepararem melhor para um dia, juntos ou não, fazerem novamente o tal exame, mas dessa vez torcendo por uma nova vida, por um filho.

O tal namorado, confesso, meu amigo há muitos anos, deixou escapar a mim alguns segredos. Agora ele gosta ainda mais dela, uma nova vida não vai nascer, mas outra coisa nasceu dessa gravidez fictícia, nasceu algo mais do que real, um sentimento ainda mais forte do que já existia.

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