O dia em que conheci Coiote Martinez, 'o cão', estava só e sentado 
  no fundo do bar bebendo uísque barato e fumando charuto paraguaio. Isso 
  já faz um tempo. Estava um tanto torpe e já não distinguia 
  mais os Te-eNe-Tês dos ACiDeCis. Só sabia que eram bandas de rock 
  e que levavam siglas nos nomes. Se me lembro bem, era inverno. Garoava e fazia 
  um pouco de frio lá fora. 
  Entrei lentamente no bar. Luz baixa, uma garçonete bêbada que estava 
  mais para frequentadora do que para empregada e um garçom recrutado 
  dos confins periféricos da cidade. Mesas sujas e bocas sujas, assim como 
  o chão do bar. Pisei leve no assoalho para não acordar um antigo 
  conhecido bêbado, metido a escritor, que dormia e babava na mesa ao lado 
  da porta. Esse cara era muito chato quando bebia. Sóbrio, continuava 
  chato, mas nem tanto, dava para tolerar. Fui em direção ao balcão, 
  precisava beber algo para afastar a melancolia de uma noite fria e sem esplendor. 
  Naquela noite, saí a caça. Fracassei. Nada pior do que um caçador 
  sedento que sai em busca da caça e só encontra outros caçadores. 
  Tentei não olhar para o rosto do bodegueiro, mas não teve jeito, 
  tive que encara-lo. Cabelos que, de tão duros, imitavam a cabeleira do 
  Jimi Hendrix nos tempos da psicodelia e toda aquela loucura dos anos sessenta. 
  Seus dentes da frente eram tortos e podres. Seu olhar, sarcástico e duro, 
  intimidava a parcela mais medíocre da freguesia, que só se arriscava 
  no pedido com os garçons. Com um cigarro semiaceso no canto esquerdo 
  da boca, pediu sem sutilezas o que eu iria beber. Pedi algo forte e que fosse 
  barato. Fui servido com um uísque de quinta categoria que serviu para 
  esquentar a garganta e um pouco do corpo umedecido pela garoa. Depois de alguns 
  tragos, puxei do bolso do casaco que um mês antes havia adquirido em um 
  brechó (desses que se encontram numa esquina qualquer), um charuto, dos 
  baratos também, que já fazia alguns dias que estava ali guardado 
  (ou algumas semanas?). Só depois da terceira dose do veneno que o bodegueiro 
  chamava de uísque e de algumas várias tragadas de tabaco, é 
  que percebi a presença no canto do balcão, de um indivíduo 
  que como eu, bebia seu tempo, depois da frustração de uma noite 
  sem caça. Encoberto por um sobretudo preto, o outro caçador me 
  pareceu, a primeira vista, uma criatura inóspita. Seu olhar triste e 
  profundo denunciava sua solidão. Seu semblante indicava que naquela mente, 
  haviam pensamentos longos e divagantes. Fiquei ali, durante um tempo pensando 
  o que um ser notívago como aquele fazia naquela espelunca numa hora daquelas 
  (levando em conta que já passavam das três da madrugada), alheio 
  a toda a situação. Aquele homem estava deslocado, como eu. Então 
  percebi que já não estava mais só no recinto. Cansado do 
  balcão e da cara repulsiva do bodegueiro, resolvi alçar voo. 
  Levantei dali e caminhei até o fundo do bar. Sentei-me na região 
  mais escura. Depois de um certo tempo, o indivíduo que antes dividia 
  comigo o balcão, levantou-se e, lentamente, pôs-se a andar em minha 
  direção. Sentou-se na mesa ao lado, silenciosamente. Naquela altura, 
  já me encontrava embriagado e já não sabia mais se o indivíduo 
  que estava no balcão era o mesmo que agora sentara na mesa vizinha. Aquilo 
  me intrigou. Como não sou acostumado a acostumar-me, a aquietar-me em 
  situações duvidosas, virei para o lado e de súbito perguntei: 
  
  - Ei! Por acaso era você que estava bebendo sentado no final do balcão?
  - Sim, era, porque?
  - É que me deu uma viajem aí, te vi lá e logo já 
  não sabia se era você.
  - Mas e daí, o que isso importa?
  - Não importa nada, só fiquei preocupado...
  - Comigo?
  - Não, comigo.
  O indivíduo não mostrou os dentes. 
  - Desculpe, estou um pouco bêbado, não quis importuná-lo. 
  
  - Não...
  - Tudo bem, tudo bem, não precisa aceitar minhas desculpas.
  - Não é isso. Só não entendo o porquê da justificativa. 
  
  - É que não costumo ser intransigente assim. 
  - Sem desculpas. Senta aí e bebe um trago.
  Neste momento encontrei algo que me pareceu verdadeiro naquele bar.
  - Certo.
  Sentei-me na mesa e tentei iniciar um diálogo, mas percebi que o indivíduo 
  não era de muito papo. "Talvez seja seu jeito, fala pouco" 
  - pensei tentando me convencer de que o dito cujo não fosse um amargurado 
  insensível, além do mais, também não sou de muita 
  conversa (quando não se tem assunto, ou quando o assunto não interessa). 
  Mas sua voz resurgiu:
  - Não acha este lugar uma espelunca? - perguntou.
  - Acho, mas não só este lugar. - respondi.
  - Como?
  - Esta cidade toda é uma espelunca. 
  - Sim, concordo.
  - Pois é, te notei quando estava lá no final do balcão. 
  
  - É, também te notei, e notei a batalha que travava para não 
  olhar para o rosto do bodegueiro. 
  - Pois é...
  - É difícil não? - disse ele seriamente.
  - É, muito difícil.
  Por alguns instantes, o silêncio retornou, mas logo se foi:
  - Droga!
  - Quê?
  - Merda! Saí em busca de diversão e acabo a noite aqui, bebendo, 
  numa imundície de bar, onde as vozes das pessoas me são tão 
  incomodativas. 
  - Então temos algo em comum. Me sinto um tolo aqui. Parece que falo outra 
  língua. As vezes nem enxergo os demais. Só vejo as garotas ao 
  meu redor, sem suas vozes, sem suas queixas ou seus cantos. Só a carne 
  e os gestos. Algumas até me dizem algo pelo olhar, mas só algumas. 
  
  - É, já não suporto esta música, este fedor de cigarro, 
  estas vozes. Vou-me embora.
  - Antes que se vá, poderia ao menos me dizer teu nome?
  - Para que? Não tem importância. 
  - Talvez não tenha, mas...
  - Martinez. Coiote Martinez, e o seu?
  - El Tango. Carlito del'Tango. 
  - É, realmente, temos algo em comum! - neste momento pude ver os caninos 
  afiados (e amarelados) do coiote em forma de um sorriso irônico. 
  Apertou-me a mão firmemente. Virou-se e pegou o rumo da rua. 
  A noite terminara, eu sem a caça e sem dinheiro para pagar a conta. O 
  bar quase vazio, não fosse a garçonete que se encontrava desmaiada 
  naquele instante com o garçom sonolento deitado sobre seu corpo seminu, 
  o bodegueiro, ainda com seu duro olhar, seus dentes podres e seu cabelo em pé 
  e o conhecido metido a escritor, que continuava babando e dormindo na mesma 
  mesa de sempre. Dei no pé. Perdi a droga do dinheiro que escapou-me pelo 
  furo de um dos bolsos do velho casaco. Talvez volte àquele bar um dia 
  para pagar a conta e, quem sabe, encontrar uma caça. 
  Naquela noite, a caçada fracassou. Ainda bem que a Glorinha, minha vizinha 
  dos fundos, sacia minha fome, mesmo que parcialmente. Acho que também 
  sacio a dela, pois vejo em seu olhar a fome, a imensa fome de uma garota faminta 
  que ainda não deixou de sonhar. 
  Encontrei algumas outras poucas vezes 'o coiote', sempre em eventos inúteis 
  ou em noites vagas, e em locais obscuros onde pairam a melancolia e a efemeridade 
  (às vezes me pergunto porque frequento esses tipos de locais, onde 
  a decadência faz morada. Talvez haja mais sinceridade neles do que em 
  outros ambientes, penso. Acho que é isso). Até que ele desapareceu 
  (ou fui eu que deixei de aparecer?). Depois de um certo tempo, descobri que 
  'o coiote' já se chamou 'cão celestial' um dia, já foi 
  poeta e lutador de boxe, além de garimpeiro que nunca achou ouro. Nas 
  suas empresas o fracasso sempre encontrou lugar privilegiado (e isso nos é 
  comum). Hoje, Martinez, 'o coiote', vaga pelas ruas imundas de alguma metrópole, 
  com um andar só dele, com seu mesmo ar soturno, solitário em meio 
  á multidão, como eu... eternamente.