A Garganta da Serpente
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Em meio a multidão surda os fracassados cantam...

(Herman G. Silvani (Niko)

O dia em que conheci Coiote Martinez, 'o cão', estava só e sentado no fundo do bar bebendo uísque barato e fumando charuto paraguaio. Isso já faz um tempo. Estava um tanto torpe e já não distinguia mais os Te-eNe-Tês dos ACiDeCis. Só sabia que eram bandas de rock e que levavam siglas nos nomes. Se me lembro bem, era inverno. Garoava e fazia um pouco de frio lá fora.

Entrei lentamente no bar. Luz baixa, uma garçonete bêbada que estava mais para frequentadora do que para empregada e um garçom recrutado dos confins periféricos da cidade. Mesas sujas e bocas sujas, assim como o chão do bar. Pisei leve no assoalho para não acordar um antigo conhecido bêbado, metido a escritor, que dormia e babava na mesa ao lado da porta. Esse cara era muito chato quando bebia. Sóbrio, continuava chato, mas nem tanto, dava para tolerar. Fui em direção ao balcão, precisava beber algo para afastar a melancolia de uma noite fria e sem esplendor. Naquela noite, saí a caça. Fracassei. Nada pior do que um caçador sedento que sai em busca da caça e só encontra outros caçadores. Tentei não olhar para o rosto do bodegueiro, mas não teve jeito, tive que encara-lo. Cabelos que, de tão duros, imitavam a cabeleira do Jimi Hendrix nos tempos da psicodelia e toda aquela loucura dos anos sessenta. Seus dentes da frente eram tortos e podres. Seu olhar, sarcástico e duro, intimidava a parcela mais medíocre da freguesia, que só se arriscava no pedido com os garçons. Com um cigarro semiaceso no canto esquerdo da boca, pediu sem sutilezas o que eu iria beber. Pedi algo forte e que fosse barato. Fui servido com um uísque de quinta categoria que serviu para esquentar a garganta e um pouco do corpo umedecido pela garoa. Depois de alguns tragos, puxei do bolso do casaco que um mês antes havia adquirido em um brechó (desses que se encontram numa esquina qualquer), um charuto, dos baratos também, que já fazia alguns dias que estava ali guardado (ou algumas semanas?). Só depois da terceira dose do veneno que o bodegueiro chamava de uísque e de algumas várias tragadas de tabaco, é que percebi a presença no canto do balcão, de um indivíduo que como eu, bebia seu tempo, depois da frustração de uma noite sem caça. Encoberto por um sobretudo preto, o outro caçador me pareceu, a primeira vista, uma criatura inóspita. Seu olhar triste e profundo denunciava sua solidão. Seu semblante indicava que naquela mente, haviam pensamentos longos e divagantes. Fiquei ali, durante um tempo pensando o que um ser notívago como aquele fazia naquela espelunca numa hora daquelas (levando em conta que já passavam das três da madrugada), alheio a toda a situação. Aquele homem estava deslocado, como eu. Então percebi que já não estava mais só no recinto. Cansado do balcão e da cara repulsiva do bodegueiro, resolvi alçar voo. Levantei dali e caminhei até o fundo do bar. Sentei-me na região mais escura. Depois de um certo tempo, o indivíduo que antes dividia comigo o balcão, levantou-se e, lentamente, pôs-se a andar em minha direção. Sentou-se na mesa ao lado, silenciosamente. Naquela altura, já me encontrava embriagado e já não sabia mais se o indivíduo que estava no balcão era o mesmo que agora sentara na mesa vizinha. Aquilo me intrigou. Como não sou acostumado a acostumar-me, a aquietar-me em situações duvidosas, virei para o lado e de súbito perguntei:

- Ei! Por acaso era você que estava bebendo sentado no final do balcão?

- Sim, era, porque?

- É que me deu uma viajem aí, te vi lá e logo já não sabia se era você.

- Mas e daí, o que isso importa?

- Não importa nada, só fiquei preocupado...

- Comigo?

- Não, comigo.

O indivíduo não mostrou os dentes.

- Desculpe, estou um pouco bêbado, não quis importuná-lo.

- Não...

- Tudo bem, tudo bem, não precisa aceitar minhas desculpas.

- Não é isso. Só não entendo o porquê da justificativa.

- É que não costumo ser intransigente assim.

- Sem desculpas. Senta aí e bebe um trago.

Neste momento encontrei algo que me pareceu verdadeiro naquele bar.

- Certo.

Sentei-me na mesa e tentei iniciar um diálogo, mas percebi que o indivíduo não era de muito papo. "Talvez seja seu jeito, fala pouco" - pensei tentando me convencer de que o dito cujo não fosse um amargurado insensível, além do mais, também não sou de muita conversa (quando não se tem assunto, ou quando o assunto não interessa). Mas sua voz resurgiu:

- Não acha este lugar uma espelunca? - perguntou.

- Acho, mas não só este lugar. - respondi.

- Como?

- Esta cidade toda é uma espelunca.

- Sim, concordo.

- Pois é, te notei quando estava lá no final do balcão.

- É, também te notei, e notei a batalha que travava para não olhar para o rosto do bodegueiro.

- Pois é...

- É difícil não? - disse ele seriamente.

- É, muito difícil.

Por alguns instantes, o silêncio retornou, mas logo se foi:

- Droga!

- Quê?

- Merda! Saí em busca de diversão e acabo a noite aqui, bebendo, numa imundície de bar, onde as vozes das pessoas me são tão incomodativas.

- Então temos algo em comum. Me sinto um tolo aqui. Parece que falo outra língua. As vezes nem enxergo os demais. Só vejo as garotas ao meu redor, sem suas vozes, sem suas queixas ou seus cantos. Só a carne e os gestos. Algumas até me dizem algo pelo olhar, mas só algumas.

- É, já não suporto esta música, este fedor de cigarro, estas vozes. Vou-me embora.

- Antes que se vá, poderia ao menos me dizer teu nome?

- Para que? Não tem importância.

- Talvez não tenha, mas...

- Martinez. Coiote Martinez, e o seu?

- El Tango. Carlito del'Tango.

- É, realmente, temos algo em comum! - neste momento pude ver os caninos afiados (e amarelados) do coiote em forma de um sorriso irônico.

Apertou-me a mão firmemente. Virou-se e pegou o rumo da rua.

A noite terminara, eu sem a caça e sem dinheiro para pagar a conta. O bar quase vazio, não fosse a garçonete que se encontrava desmaiada naquele instante com o garçom sonolento deitado sobre seu corpo seminu, o bodegueiro, ainda com seu duro olhar, seus dentes podres e seu cabelo em pé e o conhecido metido a escritor, que continuava babando e dormindo na mesma mesa de sempre. Dei no pé. Perdi a droga do dinheiro que escapou-me pelo furo de um dos bolsos do velho casaco. Talvez volte àquele bar um dia para pagar a conta e, quem sabe, encontrar uma caça.

Naquela noite, a caçada fracassou. Ainda bem que a Glorinha, minha vizinha dos fundos, sacia minha fome, mesmo que parcialmente. Acho que também sacio a dela, pois vejo em seu olhar a fome, a imensa fome de uma garota faminta que ainda não deixou de sonhar.

Encontrei algumas outras poucas vezes 'o coiote', sempre em eventos inúteis ou em noites vagas, e em locais obscuros onde pairam a melancolia e a efemeridade (às vezes me pergunto porque frequento esses tipos de locais, onde a decadência faz morada. Talvez haja mais sinceridade neles do que em outros ambientes, penso. Acho que é isso). Até que ele desapareceu (ou fui eu que deixei de aparecer?). Depois de um certo tempo, descobri que 'o coiote' já se chamou 'cão celestial' um dia, já foi poeta e lutador de boxe, além de garimpeiro que nunca achou ouro. Nas suas empresas o fracasso sempre encontrou lugar privilegiado (e isso nos é comum). Hoje, Martinez, 'o coiote', vaga pelas ruas imundas de alguma metrópole, com um andar só dele, com seu mesmo ar soturno, solitário em meio á multidão, como eu... eternamente.

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