Zanata, professor aposentado de Matemática, viúvo com mais de
94 anos e sem filhos, vivia sozinho no seu médio e confortável
apartamento de último andar, à beira da praia. Sua aposentadoria
lhe permitia pagar bem a uma empregada para efetuar a limpeza da casa, lavagem
de roupa e preparação do almoço. À noite, tomava
uma lata de cerveja com biscoitos amanteigados.
Tinha boa visão e todo dia fazia sua caminhada matinal ao longo da areia,
o que lhe ajudava a não ultrapassar os 108 quilos. Era bem quisto por
todos os vizinhos da região. Quando solicitado, ajudava aos estudantes
atrapalhados com as frações e equações ameaçadoras.
Nas épocas festivas, distribuía comida e brinquedos entre as crianças
mais pobres do bairro. Nas festas natalinas, ele se fantasiava de Papai Noel
há mais de 15 anos. Nas reuniões do condomínio, sempre
opinava com equilíbrio e moderação. Participava de qualquer
mutirão para obras de conservação do edifício ou
do bairro. Os moradores do prédio admiravam sua disposição,
em função das diversas doenças que lhe atormentavam desde
os 60 anos : tuberculose, cirrose, artrite, úlcera, quatro ataques cardíacos,
tendinite e rins. E mesmo assim, não dispensava fumar dois maços
por dia, uma garrafa de conhaque por semana, feijoada, vatapá, maionese
e comidas apimentadas. Sua esposa Dora falecera aos 75 anos, esbanjando saúde.
E ele, aí estava apesar de todo seu descuido.
No primeiro domingo de agosto, pela manhã (folga da empregada) nublada,
ao sair para seu passeio matinal, abaixou-se para pegar o envelope azul sobre
o tapete em frente à porta da cozinha (não usava a porta social,
obstruída pela mesa que abrigava o micro e a impressora). Tinha seu nome
e endereço. Não havia indicação do remetente. No
seu interior, uma tira de papel com letras tipo courier new dizia:
"Querido Zanata: hoje você
está recebendo o primeiro algarismo (2) do número de um telefone
especial. Antes do início de outubro, você receberá os demais
algarismos. Assim que receber o décimo, telefone. Temos uma ótima
notícia para lhe dar."
Guardou a tira no bolso e desceu. Perguntou ao porteiro se ele havia colocado
algum envelope sob sua porta. A resposta foi negativa. Imaginou tratar-se de
alguma brincadeira de alguma adolescente que também gostava de Matemática
e estava lhe preparando algum enigma. Esqueceu do assunto e foi ao passeio na
beira da praia quase deserta.
E como anunciado no 1º bilhete, os demais foram chegando a cada semana.
Os oito algarismos seguintes, foram: 9, 9, 4, 9, 2, 0, 2 e 4.
Faltava um. No último domingo de setembro, acordou com o ruído
das fortes trovoadas. Levantou-se, fez sua higiene pessoal e abriu a porta sanfonada
da varanda da sala. Como o envelope azul conseguiu chegar até a cadeira
de balanço? Depois pensaria nisso. Desceu o toldo, pegou seu celular,
sentou-se na cadeira e abriu o envelope, com o coração palpitando
de curiosidade, sem se importar com os pingos da chuva que lhe atingiam devido
ao vento. Leu o último bilhete da série:
"Querido Zanata: conforme combinado,
aqui está o último algarismo (2) prometido. Agora, faça
contato."
Assim que digitou o último algarismo do número 2-994-920-242,
aguardou apenas um toque. Do outro lado, surgiu a voz inconfundível de
Dora. Também lhe pareceu sentir o aroma de gardênia, que ela usava.
"- Querido Zazá: apesar do seu relaxamento com sua saúde,
você foi preservado por ser útil à humanidade. Mas sua missão
já foi cumprida. Este número que você acaba de discar, corresponde
à quantidade de segundos de alta qualidade que você viveu nestes
quase 95 anos! É a senha para chegar até onde estou. Venha, meu
bem, pois há mais de 15 anos eu o espero para vivermos nossa felicidade
eterna."
Um raio desceu pela antena do celular e Zanata morreu fulminado com um doce
sorriso nos lábios.
(3º. lugar no 1º. C L Castro Alves da Academia Rio-Grandina de Letras - RS - mar/09)