A Garganta da Serpente
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Os surgimentos

(Haroldo P. Barboza)

No início dos tempos semi-humanos, quando cada ancestral nosso (gorilas, talvez) começou a caminhar apenas com os pés e usou as mãos para afastar os cabelos da frente dos olhos para enxergar melhor seus semelhantes, surgiu o amor.

Decorria o ano 98 D. H. (depois da humanidade). Adão e Eva faleceram na mesma semana com dois casais vizinhos contemporâneos cujos nomes dos componentes não constam dos relatos herdados ditos sagrados. A causa provável foi a ingestão de alta quantidade de cogumelos envenenados numa refeição realizada no dia anterior. Bem que um amigo deles chegou a preparar um chá de ervas quando notou que eles se contorciam com dores no estômago. Mas a bebida não fez efeito a tempo. Aí surgiu a homeopatia.

Tal fato causou considerável surpresa na população mundial momentânea, composta por menos de 450 pessoas convivendo em grutas e árvores ocas num raio menor que 800 metros. Os descendentes da 1a. geração de humanos não tinha prática em lidar com cadáveres, pois estes eram os primeiros óbitos que enfrentavam. Os descendentes passaram alguns dias atordoados sem a guia dos mais sábios. Aí surgiu o medo.

A falta de conhecimento e a enorme falha na comunicação vocal dificultavam o consenso e as ações lógicas para tratar dos corpos inertes. A perplexidade era predominante e as hipóteses para o "sono" demorado chegavam a ponto de culparem os dejetos de baratas e ratos pelo acontecido. Aí surgiu a injustiça.

A decomposição dos seis corpos após cinco dias ao ar livre atraia insetos e causava um cheiro desagradável perto da fonte de água potável. Os usuários chegaram a um acordo através de gestos grotescos. Concordaram em amarrar os corpos com cipós e carrega-los para um desfiladeiro afastado quase 2 km do centro da comunidade. Aí surgiu a parceria.

Apesar de não ter havido velório, orações e certidões de óbito pelos entes falecidos, suas condutas de equilíbrio, fraternidade, harmonia, boa vontade e justiça para com os que viviam em torno deles, deixaram lembranças doces entre seus admiradores. O carpinteiro da região entalhou suas figuras em seis árvores próximas. Aí surgiu a saudade.

A partir desta tragédia, nos 5 anos posteriores o relacionamento social começou a sofrer leves abalos. As mulheres que usavam lustrosas folhas verdes de parreira na cintura e dois buquês de hortênsias cobrindo os seios, desfilavam sorridentes pela beira do plácido lago contemplando suas imagens na superfície límpida das águas. Aí surgiu a vaidade.

As que tinham menos tempo para estes prazeres, passavam o dia carregando madeira, tecendo mantas com folhas de bananeira e usavam folhas amareladas nos quadris retilíneos e um punhado de folhas de repolho no colo, não se cuidavam. Franziam a testa, desviavam o nariz e cerravam os lábios. Aí surgiu a inveja.

Foi iniciado um intenso ciclo de produção artesanal decorativo, voltado para as vestes, para as hastes usadas como ferramentas ou para os cômodos dos habitáculos onde dormiam e se abrigavam das chuvas. Começaram a ocorrer trocas semanais de artefatos e utensílios diversos. Aí surgiu o comércio.

Os mais preguiçosos em desenvolver alguma tarefa habilidosa, realizavam apenas o trivial. Pescavam, recolhiam frutas, limpavam o "quintal" de suas moradias. Durante a madrugada faziam rápidas incursões às tocas próximas para subtrair algumas frutas mais saborosas ou artefatos em fase de elaboração. Aí surgiu o gatuno.

E à medida que o tempo decorria a população se aglomerava apesar do amplo espaço inexplorado disponível. Os transtornos se avolumavam pela falta de diálogo entre os habitantes, que encontravam dificuldades para relacionar as necessidades de uns que passavam a ser problemas para outros. Então, um belo dia, um sujeito começou a estalar uns cipós em frente a um enorme paredão, em pé sobre um grande pedregulho liso na beira do lago. Através de sorrisos e mímicas, ilustrava utensílios que iria oferecer aos que ali estavam parados ouvindo seus gemidos. Aí surgiu o comício.

Enquanto rosnava, com um pedaço de carvão ele começou a desenhar no paredão, modelos de ocas alinhadas com um riacho largo (havia um além da montanha vermelha), tendo ao fundo algumas árvores frutíferas e carreiras de hortênsias delimitando fronteiras entre as residências. Na areia, desenhou uma figura, tendo um rosto com uma cabeça ornamentada com a orelha esquerda pela metade, como a sua própria! Na altura da cintura, esta figura segura um cesto onde as demais pessoas depositavam grãos de milho, que na época era a "moeda" corrente, devido à sua atraente cor amarela. Aí surgiu a adoração pelo ouro.

Depois de 2 horas de gestos e rabiscos, a galera que a tudo fitava coçando o queixo e olhando para o companheiro ao lado, percebeu que ele estava propondo algum tipo de organização social, onde os integrantes da comunidade deveriam contribuir com algum tipo de doação. E ele seria o arrecadador, fato que ele confirmou posteriormente por mímicas. E também desta forma prometeu que de posse destes recursos, em 2 anos realizaria benfeitorias para o agrado de todos os contribuintes. Aí surgiu a propaganda enganosa.

A maioria dos assistentes iludidos balançou as cabeças em atitude de aprovação. Os desconfiados foram empurrados para o fundo do bloco humano murmurando impropérios. Depois de alguns rugidos e tapinhas nas mãos nervosas dos sovinas, chegaram a um acordo sobre a quantia de grãos a ser ofertada a cada nova Lua: 50 grãos. Aí surgiu o imposto.

O "Meia-orelha" recebia as doações com um sorriso nos lábios e um forte abraço nos contribuintes. Após dois anos de arrecadação, sua gruta exibia sintomas de luxo, com coloridas peles de diversos animais espalhadas no seu interior, vários cocos verdes empilhados numa pedra que servia de prateleira, goteira no fundo da mesma servindo de chuveiro, palha espessa servindo de cama, dezenas de hortênsias para uso da esposa e outros utensílios decorativos. Quanto ao projeto original além das montanhas vermelhas (apagado do rochedo pelas chuvas regulares), apenas tocos de cana demarcavam os futuros lotes planejados. O povão começou a reclamar sem objetividade da demora no andamento das obras. Aí poderia ter surgido o PROCON.

O administrador, usando gestos elegantes e suaves, alegou que os recursos obtidos eram insuficientes para adquirir lanças para enfrentar os enormes e ferozes animais locais, superar as adversidades existentes no terreno escolhido e pagar os 10 caroços de milho exigidos pelos 2 operários contratados através de seu irmão. Aí surgiu a terceirização.

Com estes fracos argumentos tentava explicar porque as obras estavam em ritmo lento. Mas prometeu que se aumentassem as doações em 10 grãos e confiassem nele por mais 2 anos, eles lhes daria o paraíso prometido com outras benfeitorias ainda não reveladas. Aí surgiu o caráter do político de carreira.

Durante 24 anos "Meia-orelha" ficou embromando a população insatisfeita mas pacífica, inventando novos "problemas" e vendendo "soluções" mirabolantes. Contratou os dois sobrinhos para que na tarde de cada 7 dias apresentassem números de malabarismo e truques na clareira existente a 100 metros do centro nervoso da comunidade para distrai-los. Aí surgiu o circo.

O ingresso de dois grãos de milho dava direito a um coco verde e uma folha de parreira contendo desenho feito pela esposa com óleo de peixe. E a cada nova Lua, acontecia um sorteio usando conchas do rio onde o prêmio era uma sacola feita de pele de morcego para transportar cocos verdes. Aí surgiu o bingo.

Quando outros sujeitos de baixo nível cultural e moral começaram a perceber que tal esquema trazia altos lucros com o mínimo de gastos, fundaram grupos para lotear a população (que nesta época já atingia quase 3600 pessoas) e dividir a arrecadação das doações. Aí surgiram os partidos políticos.

"Meia-orelha" não achou por bem entrar em atrito com as novas raposas que afirmavam possuir um dossiê sobre suas ações suspeitas e se contentou com o acordo proposto pelas outras 3 facções desde que garantissem que seu filho mais velho ficasse como gerente da área Leste, mais perto do riacho. Ele por sua vez, colocaria parentes de outros desafetos como assessores de seu gabinete. A negociação foi lavrada com talhadeira rústica na areia da praia (para que o vento apagasse qualquer vestígio comprometedor) e assinada com os polegares molhados com sangue de rato. Aí surgiram os conchavos.

Aí surgiu o caos global.

  • Publicado em: 16/01/2006
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