Quando chegámos à Fornada, já a missa de corpo presente
ia a meio, o padre estava a ler, segundo ele próprio anunciou, uma passagem
de um testamento antigo. Pensei cá para os meus botões: "mal
se morre, começa-se logo a falar em testamentos!". Para ser franco,
nem me lembro da passagem lida. Porque o certo é que a questão
dos bens do defunto ainda hoje, já lá vão cinco anos, não
está resolvida. Os herdeiros, os três filhos legítimos do
defunto, casados e já com netos, embrulharam-se de tal forma em quezília,
que agora só em Tribunal se poderá decidir a questão. Mas
um dos filhos teria que mover as acções necessárias, e
pagar a bons advogados, para desembrulhar o assunto. Habilitação
de herdeiros, partilha e sei lá que mais. O mais rico dos herdeiros utiliza,
porém, a pobreza dos irmãos como garantia de que nenhum deles
terá a necessária "coragem" para empreender as acções.
E ele está-se nas tintas.
No entanto, o que me leva a escrever este apontamento é apenas recordar
aquele funeral de há cinco anos de Miguel Santos, nascido em 1914 no
Chão de Pedreira, perto da Fornada. Homem dos mil ofícios que,
aos sete anos, guardava ovelhas e, com onze, foi mandado para Lisboa, para casa
de um parente rico, para servir como moço de mercearia e caixeiro. E
que, de tão pequeno que ainda era, tinha que subir para cima de uma caixa
de madeira para atender os clientes. Foi ali, naquela mercearia, que conheceu,
mais tarde, a mulher com quem se casou aos dezoito anos (casava-se cedo na altura),
e de quem teve os três referidos filhos. Filhos que agora, depois de ele
morrer, não se entendem uns com os outros.
Pouco tempo depois de estar casado, Miguel zangou-se com o tal parente dono
da mercearia, porque o "raça" do velho começou a atirar-se
à mulher dele. Perdeu o emprego, como já era de esperar. Passaram
um mau bocado, ele e a mulher. Tão mau que, por vezes, tinham que ir
à noite, pela calada, pedir couves emprestadas em hortas alheias para
com elas fazerem uma sopa e enganar a fome. Felizmente, um fornecedor da mercearia
do tio, que conhecera o Miguel como excelente empregado da mesma (ainda por
cima honesto e orgulhoso), perguntou por ele e mandou chamá-lo para lhe
oferecer trabalho como vendedor à comissão. Era tempo de guerra
e havia muitas oportunidades para "negócios".
Na terrinha longínqua, Miguel deixara os pais e os irmãos mais
novos de quem ele nunca se esqueceu durante todos esses anos de vida citadina
e a quem desejava livrar da miserável vida do campo. Hoje, os irmãos
(alguns ainda vivos), ou os seus descendentes, estão todos bem na vida.
Graças a ele, Miguel Santos. Dos irmãos, apenas recebeu ingratidão
em paga, mas isso faz parte de uma outra história que pouco tem a ver
com o funeral de há cinco anos, nem viria muito a propósito contar
agora. Noutra altura, talvez.
Logo que juntou algum dinheiro das comissões, o Miguel comprou uma casa
na Fornada, cedendo aos pais e irmãos a parte de baixo da mesma para
montarem um café, de onde todos pudessem usufruir, e viver remediados
sem ter que enfrentar as lides do campo e da aldeia. O café, que ainda
lá está, continua na posse da família de Miguel - o café
"Príncipe Perfeito". Mas ele entendia que o futuro, a terra
prometida para todos os da sua família, era Angola. Munido de algum capital,
que realizou nos "negócios" e com a venda da parte superior
da casa da Fornada, embarcou decidido para Angola, levando a mulher e os dois
filhos mais velhos que, entretanto, tinham nascido. Foi em 1945, no final da
guerra, quando os "negócios" não iam já de feição,
e também fez a viagem no paquete "Príncipe Perfeito",
em terceira classe. O mais novo dos filhos nasceu em Angola. Mas é, por
sinal, o mais safado deles todos.
Em Angola, Miguel não parou de progredir devido ao seu jeito inato para
os negócios. Aquilo sim, aquilo é que foram anos de progresso.
Trabalhador e honesto como era, rapidamente passou de empregado por conta de
outrem numa casa comercial de Luanda (que o contratara logo à chegada)
para um negócio por conta própria. Foi um verdadeiro colono! Estabeleceu-se
num lugarejo do Norte de Angola. As mercearias vindas da Metrópole, que
ele ia comprar a Luanda, trocava-as por café aos agricultores nativos.
Depois vendia o café aos exportadores de Luanda com lucro, claro está.
Era muito amigo dos pretos. Chamavam-lhe o Tata (pai, em kimbundo). E dele também
diziam os nativos: "Muene a mu zola kual'etu" (ele é amado
por nós).
Mas esta vida de viajante não durou senão uns anitos. Miguel acabou
por ter a sua própria roça de café, com pessoal e todas
as infraestruturas necessárias para secar, debulhar e ensacar o café.
E lojas, mercearias, cinema, e também foi fotógrafo, os pretos
adoravam tirar fotografias e pagavam em café. Até agente do BNU
também foi. Estava, por assim dizer, a construir um pequeno império,
era a pessoa mais importante da pequena localidade onde se instalou, estimado
e venerado por todos, brancos e negros. Ou quase todos.
Depois de fincar bem as raízes em solo angolano, mandou chamar alguns
dos irmãos, montou-lhes negócios vários, de que sempre
saiu a perder. Os filhos dele, do Miguel, foram criados num ambiente de prosperidade,
de abundância e ausência total de preocupações materiais.
Mas só um deles, o mais velho, enveredou pelos estudos e veio para Lisboa,
antes do 25 de Abril, fazer uma licenciatura em engenharia e por cá ficou,
e casou. Era modesto e ajuizado, o rapaz. Não se deixou ofuscar pelo
dinheiro do pai (a quem admirava, respeitava e amava), mas quis seguir a sua
própria vida. Teve, contudo, pouca sorte. Uma esclerose múltipla
atirou-o para o desemprego, aos quarenta e tal anos. Pouco depois, a mulher
deixou-o entregue à sua sorte e amancebou-se com um homem casado. A filhas
seguiram atrás da mãe. O camelo que ela desviou do redil quando
se separou do marido, morreu em plena cópula e não lhe deixou
nada. O sacana, o triste. Há quem diga, à boca pequena, que mãe
e filhas vivem agora de expediente, têm mesmo ar de vacas, as cabronas.
Mas todas engalanadas com chocalhos de ouro ao pescoço, nos braços
e até nas pernas. Cá se fazem, cá se pagam, pensei eu,
rogando-lhes uma praga silenciosa. O engenheiro estava no funeral. E elas também
lá estavam, as vacarronças. Mas muito entravado pela doença,
o homem. Qual homem, um rapaz dos seus sessenta anos, como eu, nascido em 1940
ou 41. Tão carcomido, tão sumido! Não merecia tanto padecimento.
Físico e moral. Ao fim e ao cabo, onde é que ele errou? Será
por ter pedido a bênção ao pai em vez de dinheiro?
O filho do meio de Miguel Santos só queria saber de carros e farra, já
desde os tempos de Angola. Casou-se cedo com uma filha de um compadre do Miguel
(ele teve tantos compadres!), mas ficou sempre, com a imensa prole que crescia
de ano para ano, às custas do velho. Agora que ele morreu, de repente
e sem aviso prévio, não podia, por ironia do destino, dispor das
coisas do velho. Porque o irmão mais novo, que é casado com uma
ricaça, entendeu que nem as terras nem as casas devem ser vendidas para
efeitos de partilha. Alega que seria uma falta de respeito à memória
dos pais. Mas é tudo mentira, o fito dele é, certamente, ficar
dono de tudo por "tuta e meia", obrigando os irmãos a aceitar
o que ele se propuser pagar pelas partes. Depois de ter tudo em nome dele, pode
fazer um bom negócio com os imóveis que o pai reuniu em vida.
Mas o Miguel, enterrado há cinco anos, não sabe, seguramente,
destas coisas que por aqui se passam. Se soubesse, haveria de escoicear tanto
na sepultura que provocaria um tremor de terra, mais violento que o de 1755
em Lisboa. Ele, que tanto lutou pelo bem estar e pela união da família
e que, mesmo depois de ter ficado viúvo - a mulher morreu de tristeza
e de trabalho a alimentar aquelas bocas todas -, continuou a trabalhar para
deixar, filhos e netos, todos bem! Depois de tanta labuta, ver esta pouca vergonha
por causa duns tostõezinhos? É demais! Santo Deus, faz com que
o Miguel nunca saiba do que se passa, cá por estas bandas. Para que o
justo não venha a pagar pelo pecador, como é costume.
Miguel teve que abandonar Angola, com o coração em fanicos, por
causa da guerra. Ele jamais sairia de lá se não fosse a guerra,
e veio de mãos a abanar, uma à frente, e outra atrás. De
tão honesto que era, nem sequer trouxe feijão branco para
vender e poder recomeçar a vida, como fizeram muitos que ainda se arvoram
em grandes senhores da ribalta. E cujos descendentes pertencem hoje à
fina flor da sociedade. Pois Miguel não precisava de artifícios,
era daqueles homens que se pode pôr no meio do deserto, sem roupa e sem
nada, e que consegue, mesmo assim, arranjar um negócio qualquer; e prosperar!
Quando chegaram de Angola (ele, mulher, filhos, cunhada e netos), foram hospedados
num hotel do Algarve por conta do IARN. Foi nesse hotel que o filho mais novo
conheceu a futura (e actual) mulher dele: a filha única de um industrial
de Lisboa de quem depois herdou uma grande fortuna. Essa herança foi
limpinha. Por isso é que os ricos defendem que só se deve ter
um herdeiro, ou dois, no máximo.
Miguel esteve apenas seis meses por conta do IARN. Mal recuperou do traumático
"Angola é nossa", começou a magicar numa forma de recomeçar
a vida. Descobriu um furo comercial no Algarve, apesar das enormes dificuldades
por que passava o país nessa época remota da sua história
recente. Foi ele, Miguel, que lançou o time-sharing no Algarve,
sem um tostão na algibeira, e muito antes da rebelaria que se seguiu.
O time-sharing foi uma ideia séria do Miguel, mas que deu no que
deu, ou seja, em nada, porque em Portugal, quando um negócio está
a dar, todos se atiram a ele se puderem, mas todos se afundam, também
solidariamente. É preciso visão e criatividade para os negócios,
e Miguel tinha estas duas qualidades. Mas desta vez, face à desleal concorrência
que logo emergiu, Miguel não conseguiu construir o almejado império.
Porém, como pioneiro que foi deste negócio, ainda fez um óptimo
pé-de-meia. Deixou vários andares no Algarve e, como era um visionário,
adquiriu, para maior segurança, diversos terrenos baratos que hoje são
cobiçados para futuras urbanizações turísticas e
campos de golfe. Tudo indica, no entanto, que estes haveres só vão
engrossar ainda mais a imensa fortuna do filho mais novo. O cabrãozinho
é mesmo danado. Nem se entende porquê: ele tem 55 anos ainda, mas
a idade vai começar a avançar - disso ninguém escapa. Para
mais, só tem uma filha que é médica e casada com um magnata
de Cascais. Vivem numa casa com piscina e minigolf, na Quinta da Caveira, com
carros, jipes, "sopas, gravatas e tudo" como diria o Raul Solnado,
fazem férias na neve nos melhores hotéis, vão todos os
anos à Nova Zelândia onde até já têm um apartamento,
etc.. Enfim, o dinheiro foge só para os ricos, assim como a água
foge para o mar.
Não vi ninguém chorar no funeral. O engenheiro nem abriu a boca,
creio que não quis dar aos presentes ocasião para se comprazerem
também com a sua tristeza, para lá do que já se comprazem
com a doença dele. "É a vida", diziam todos os presentes,
com natural desenvoltura. E eu pensava: "pois é, são os vivos!".
No trajecto da igreja ao cemitério, que foi feito a pé pelos participantes
no acto fúnebre, diria mesmo macabro, foi uma algazarra. Creio que nenhum
dos parentes faltou ao funeral, e um deles até veio oferecer-se, como
advogado, para tratar das coisas. A família alargada, já é
lugar comum dizer-se isto, só se encontra nestas ocasiões. Até
anedotas porcas contaram durante o funeral. Francamente!
No cemitério, o padre despachou a coisa o mais rápido que soube
e foi-se embora, deixando as pessoas entretidas a conversar disto e daquilo,
sobretudo a contar como tinham tido sucesso na vida. Os que tiveram, ou seja,
quase todos menos os dois filhos mais velhos daquele que foi o timoneiro de
toda esta família "relaxada", mas a quem não só
a morte, mas também a vida, principalmente ela, traiu.
Fica lá onde estás, Miguel, que estás bem. Os vivos não
te merecem! Nunca me hei-de esquecer deste funeral de Miguel Santos, que assisti
de perto porque alguém tinha que acompanhar o seu filho doente, e lá
fui.